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A saúde bucal

Cuidados desde a infância / Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Cuidados desde a infância / Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Por: REGINA ABREU

Quase uma hora de carro depois de desembarcar na estação Itaquera, a última parada do metrô da zona leste da capital paulista, chega-se à Cidade Tiradentes, bairro que, apesar do nome, faz parte do município de São Paulo. Por ser tão longe do centro, seria de se supor que esta fosse quase uma zona rural, com sítios e chácaras. Ledo engano: densamente povoado, o bairro possui o maior índice de construções verticais da América Latina, reunindo centenas de prédios de pouca altura, conjuntos habitacionais destinados à população de baixa renda. Vendedora autônoma de maquiagem, Antônia Aparecida do Carmo, 43 anos, é uma dos 300 mil habitantes da região. Está muito feliz: apenas 15 dias após extrair os dentes da arcada superior na unidade básica de saúde, já está tirando o molde para a dentadura no Centro de Especialidades Odontológicas (CEO), da Cidade Tiradentes. Ali também ela fez tratamento periodontal da arcada inferior e recebeu uma ponte que lhe devolveu a capacidade mastigatória e a estética. Antônia, que vai receber a dentadura sem pagar nada, diz que “se fosse para pagar, eu ficava sem dente”. O CEO Tiradentes é um dos 1.033 Centros de Especialidades Odontológicas do programa Brasil Sorridente.

O escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) dizia que o brasileiro tem “complexo de vira-lata”. Ou seja: um complexo de inferioridade em relação às outras nações que o leva a minimizar e a desvalorizar suas conquistas, mesmo as grandes. Eis uma delas. Relata a professora associada do Departamento de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), Simone Rennó Junqueira, que 85% da população depende do Sistema Único de Saúde (SUS) e que apenas os 15% restantes têm plano de saúde ou podem pagar pelo tratamento do próprio bolso. Como o país tem 200 milhões de habitantes, pode-se afirmar que o SUS é o maior plano de assistência médica e odontológica do mundo. Para se ter uma ideia, até no Canadá, que disponibiliza assistência médica universal, há limitações para o tratamento dos dentes, que depende da capacidade financeira do paciente e fica fora do sistema público.

Não cuidar dos dentes tem consequências sérias: a infecção bucal pode despejar micro-organismos na corrente sanguínea e levar à endocardite (inflamação do músculo do coração); a perda dentária obriga os dentes que sobraram a se movimentar, alterando a mastigação e ocasionando problemas na articulação – por isso, os idosos mudam o padrão alimentar, podendo gerar distúrbios estomacais e desnutrição; e grávidas com doença periodontal correm o risco de dar à luz bebês de baixo peso em partos prematuros. Além de tudo isso, há sinais na boca que alertam para doenças como diabetes, que provoca boca seca, e uma ferida na boca ou na língua, que demora mais de 15 dias para cicatrizar, pode ser um câncer.

A professora lembra que, até os anos 1950, ou um pouco mais, só quem trabalhava com carteira assinada e pertencia a um dos institutos de classe, como o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) e o Instituto de Aposentadoria e Pensões do Comerciários (IAPC), tinha acesso a atendimento médico. Tratamento odontológico, só o emergencial e olha lá. O grande marco, segundo Simone, foi a Constituição de 1988, que criou o SUS e colocou a saúde como direito do cidadão e dever do Estado. Desde então, a saúde bucal, até aí quase ignorada, começou a fazer parte das preocupações governamentais. Outro fator para a melhoria da saúde dos dentes dos brasileiros foi a fluoração da água. São Paulo passou a fluorar a água a partir de 1985 e os dentifrícios começaram a ganhar flúor em 1988.

Necessidades da população

Iniciativa conjunta do governo federal, estados e municípios, o Programa Brasil Sorridente foi criado em 2004. A professora da USP cita o último levantamento, feito pela Pesquisa Nacional de Saúde Bucal, em 2010, com o objetivo de traçar o diagnóstico de saúde bucal naquele período mediante comparação com a pesquisa de 2003 (uma avaliação do impacto do Brasil Sorridente teria o propósito de planejar ações de saúde bucal para os anos seguintes). A pesquisa foi realizada em 177 municípios em todo o país, com entrevistas e exames bucais em 38 mil pessoas, divididas em cinco grupos etários: crianças de 5 anos; de 12 anos; adolescentes de 15 a 19 anos; adultos de 35 a 44 anos e idosos de 65 a 74 anos. O indicador utilizado foi o CPO, onde C refere-se ao número de dentes cariados; P, de dentes perdidos, e O, de dentes obturados.

O índice CPO aos 12 anos de idade é o padrão para comparação internacional, pois reflete o ataque das cáries logo no começo da dentição permanente. Da pesquisa de 2003 para a de 2010 houve uma melhora de 26% nessa faixa etária, pois o índice caiu de 2,8% para 2,1%. Isso significa que a proporção de crianças livres de cárie aos 12 anos avançou de 21% para 44% ou que 1,6 milhão de dentes deixaram de ser afetados pela doença. Em 2010, em torno de 1,4 milhão de crianças nessa idade não tinham nenhum dente cariado, um aumento de 20% em relação a 2003.

Com esses dados, o Brasil entrou no grupo de países com baixa prevalência de cárie, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O índice alcançado foi melhor que a média dos países nas Américas, que era de 2,8%. O Chile, com 1,9%, ficou em primeiro lugar.

Os índices das outras faixas etárias também melhoraram, apesar de as mudanças serem menos espetaculares aqui. Ainda assim, o Brasil não conseguiu atingir nessas faixas as metas da OMS. Entre 15 e 19 anos, caiu pela metade o número de adolescentes que sofreram algum tipo de perda dentária; na de 35 a 44 anos, a pesquisa aponta menos dentes perdidos e mais dentes tratados, com mais acesso a dentista; na faixa seguinte, número menor de idosos precisaram de dentaduras, tendo sido registrado, portanto, uma pequena melhoria. Já as crianças de 5 anos tiveram redução de 17% nos dentes de leite cariados, mas 80% destes não foram tratados.

A fisioterapeuta Letícia Ferro Carapeto Nunes é a gerente do CEO Tiradentes e do Núcleo Integrado de Reabilitação (NIR), no mesmo endereço. Ela explica que a unidade foi inaugurada em 2007 pela prefeitura de São Paulo, é gerida pela Organização Social de Saúde (OSS) Santa Marcelina e foi a primeira a compor esse modelo de gestão. Tem capacidade para atender 50 pessoas por dia nas especialidades de cirurgia oral menor, endodontia, ortopedia funcional dos maxilares e pacientes especiais, periodontia, prótese e semiologia/estomatologia. A estrutura do CEO abrange também um laboratório regional de prótese dentária, capaz de produzir 120 unidades totais todos os meses, além de aparelhos de ortopedia funcional dos maxilares.

Letícia explica que a criação do CEO se deu após levantamento das necessidades da população, divulgadas na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad - 2003). Os indicadores mostraram que grande parcela da população (15,9%), ou seja, 27,9 milhões de pessoas, nunca haviam frequentado um consultório dentário. Outro dado que impulsionou essa concepção foi apurado pelo Ministério da Saúde, que concluiu que cerca de 3% dos procedimentos odontológicos realizados no Brasil referiam-se às especialidades.

O CEO realiza um trabalho de rede em conjunto com as Unidades Básicas de Saúde (UBS), que acompanham os pacientes e os encaminham sempre que necessitam de um atendimento especializado.

Para ter uma ideia da quantidade de trabalho realizado pelo CEO Tiradentes, vale citar o total de atendimentos realizados no decorrer do ano passado: 912 tratamentos de periodontia; 2.679 de endodontia e 2.113 de ortopedia funcional dos maxilares; 1.401 cirurgias orais menores; 5.200 procedimentos em prótese e 678 em semiologia (biópsia). Foram atendidos, ainda, 1.068 pacientes especiais e entregues 1.394 próteses totais e removíveis e 209 aparelhos. Cada paciente é atendido por uma equipe composta pelo dentista especializado e por uma auxiliar e estagiária, com tratamento direcionado de acordo com a necessidade e que vai muito além do básico.

E tudo muito bem feito. Sem falsa modéstia, o cirurgião-dentista e protesista Ricardo dos Santos Batista afirma: “Aqui não tem profissional mais ou menos, só tem craque. O concurso do SUS é dificílimo”. Além disso, ele afirma que o material utilizado é de primeira qualidade, sempre o melhor. As técnicas são desenvolvidas e aperfeiçoadas, como os vários casos descritos em publicações científicas especializadas. Um deles demonstrou que a técnica da prótese oca é uma alternativa viável para casos de avançado processo de reabsorção óssea maxilar. Após avaliação clínica, no CEO, do paciente A.C.L., de 51 anos, constatou-se grande reabsorção óssea maxilar, devido ao tempo sem dentes e a um atropelamento. Ou seja: o paciente não tinha osso suficiente para “segurar” minimamente as próteses. No CEO foi confeccionada uma prótese total oca – parte da resina acrílica maciça foi substituída por uma câmara oca (com ar), que melhorou a estabilidade, o conforto e o peso, fazendo com que o paciente conseguisse se adaptar ao seu uso.

Convênios dentários

Mas além do orgulho pelo trabalho bem feito, há outra recompensa: a gratidão dos pacientes. A cirurgiã-dentista Maria Amélia Itri comenta que não é verdade que um raio não cai no mesmo lugar. Ali, naquela periferia de gente tão sofrida e maltratada, um raio cai duas, três, até mais vezes no mesmo ponto. É a casa que foi inundada pela enchente, a comida pouca e ruim, o filho que foi assassinado ou se jogou nas drogas, o assalto de que o marido foi vítima, tudo acontece. Então, quando o dentista conserta aquele dentinho, coloca a dentadura feita com capricho, imitando a gengiva com perfeição, a pessoa se desmancha em agradecimentos, e a vida não parece mais tão cruel. “A gente sente que faz a diferença, que fez alguém um pouquinho mais feliz”, comenta a doutora.

A melhoria da saúde bucal dos brasileiros se dá também por outros caminhos, como o dos convênios dentários. Segundo o diretor executivo da Amil Dental, Alfieri Virgilio Casalecchi, mais de 21 milhões de brasileiros têm acesso à assistência adequada através dos planos odontológicos. “A Amil Dental, por exemplo, abriga 10% dessa população na sua carteira de clientes. Nossos planos são completos (incluem o rol da ANS e mais complementos) e dão muita ênfase à prevenção”, assegura Casalecchi. Mas ressalva: “Executamos a nossa parte promovendo mais acesso à odontologia, mas ainda há muito por fazer”.

O diretor executivo da empresa explica também que 80% dos clientes são beneficiários de planos corporativos. São empresas que oferecem o benefício, financiando-o parcial ou integralmente. Ainda há uma maior concentração nos grandes centros, especialmente na região sudeste, considerando que a categoria de planos odontológicos ainda é desconhecida do grande público. “Estamos trabalhando para mostrar à sociedade que é uma boa solução para o acesso ao serviço e que, do ponto de vista de custo, está ao alcance de muitos brasileiros”, diz Casalecchi. A ideia é preparar a operação para crescer dois dígitos nos próximos três anos: “Apesar de 2015 representar um grande desafio, pelo cenário econômico conturbado, acredito que a nossa solução de acesso é uma alternativa viável para o consumidor acostumado a pagar um preço alto pelo atendimento particular”.

Dependendo da cidade ou do bairro, o preço do tratamento pode atingir camadas estratosféricas. A simples extração de um dente de leite que teima em não cair para deixar o permanente nascer, por exemplo, chega a custar R$ 450 em Vila Nova Conceição, em São Paulo, bairro de alto poder aquisitivo. O pior é que, como costuma se saber por dolorosa experiência própria, com dor de dente não se discute. É por isso que existe o Pronto Socorro Dentário, como o SOS Dentistas, que funciona 24 horas, de domingo a domingo, ao lado do metrô Praça da Árvore, um local de comércio popular e de grande afluxo de pessoas. O dono é o cirurgião-dentista Caio Eduardo Machado, especializado em implante e canal. Ele explica que lá é pronto socorro, atende emergências, mas também faz tratamentos, inclusive os mais sofisticados. O cliente é recebido até mesmo se quiser fazer os procedimentos às 3 horas da manhã. A lista dos serviços oferecidos é longa: clareamento dental a laser, dentística (estética odontológica), próteses fixas de porcelana e facetas laminadas, próteses sobre implantes, spa day (todo o tratamento em um só dia) etc.

Machado abriu a clínica há cinco anos, “surfando no boom da classe C”. Ele comenta que, com o aumento do poder aquisitivo, as pessoas começaram a ter condições de fazer tratamento dentário e, assim como sonham com a TV de última geração – que podem adquirir em prestações a perder de vista –, também descobriram que podiam conseguir o sorriso dos artistas. Machado conta que sua estratégia de negócio é a seguinte: material de primeira qualidade, sempre (“comprar resina barata é economia burra”); equipamentos modernos que facilitam, aperfeiçoam e agilizam o trabalho, economizando tempo e tempo é dinheiro; instalações adequadas; material odontológico em quantidade para baratear o custo, atendimento gentil, educado e acolhedor – da recepcionista ao dentista.

Destaca-se também nesse tipo de atendimento dentário o Serviço Social do Comércio, que oferece consultórios instalados em suas unidades. Somente no estado de São Paulo são 23 clínicas, além de cinco unidades móveis.

Destinado aos comerciários e seus dependentes, o tratamento se distingue pela qualidade do serviço, modernidade dos equipamentos e principalmente pelos preços acessíveis.

 


 

Resultados aparecem

“A população brasileira tem carências que se arrastam há décadas, no campo da saúde bucal”, disse a Problemas Brasileiros, edição de setembro de 2007, Gilberto Pucca, do Ministério da Saúde. Então Coordenador Nacional de Saúde Bucal, ele afirmou, naquela matéria, que o longo período durante o qual a saúde dos dentes não foi considerada prioridade pelo Estado impactou de maneira negativa as condições da arcada dentária de milhões de pessoas em todo o país, de tal forma que a necessidade de prótese era identificada já entre os adolescentes. Pucca destacou ainda que mais de 28% dos adultos haviam perdido todos os dentes funcionais em pelo menos uma arcada e cerca de 15% necessitavam de uma prótese total. Além disso, em torno de 13% da população de 15 a 19 anos nunca tinha ido ao dentista. “Quase 3% dos adultos e aproximadamente 6% dos idosos jamais colocaram os pés em um consultório dentário”, informou Pucca na ocasião.

Mas o Brasil pode estar deixando de ser o país dos desdentados. Os números impressionam: a cobertura do Programa Brasil Sorridente hoje é de aproximadamente 80 milhões de brasileiros e totalizam 24.243 as equipes de saúde na atenção básica em atuação.

Em 2014, o investimento foi de R$ 1,2 bilhão. No ano anterior teriam sido realizados 16,2 milhões de procedimentos odontológicos especializados – três vezes mais que em 2004, quando o programa foi instituído. Em 10 anos, foram ofertadas mais de 2,1 milhões de próteses dentárias pelo SUS. Sabe-se que 65.547 dentistas estão vinculados ao Sistema Único de Saúde, um incremento de 51,7% no período compreendido entre 2002 e 2014 (mês de junho). Quanto a 2015, questionada se e como o ajuste fiscal vai afetar o programa, a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde não se manifestou até o fechamento desta edição.

 


 

Sorriso do bem

Mais de 560 mil jovens passaram pelas triagens do Dentista do Bem e 52 mil já foram encaminhados a profissionais para tratamento gratuito. Trata-se de um programa que conta com o trabalho voluntário de cirurgiões-dentistas que atendem jovens de baixa renda. Atualmente, reúne a maior rede de voluntariado especializado do mundo. São mais de 15 mil dentistas espalhados por aproximadamente 1.300 municípios dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. O programa também está presente em Portugal e em outros doze países da América Latina.

O Dentista do Bem é promovido pela Turma do Bem (TdB), fundada em 2002, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) cujo objetivo é mudar a percepção da sociedade sobre a questão da saúde bucal e da classe odontológica com relação ao impacto socioambiental de sua atividade.

A seleção dos beneficiados é feita por um índice que prioriza os adolescentes mais pobres, com problemas bucais mais graves, e os mais velhos, que estão mais próximos do primeiro emprego. Os dentistas voluntários atendem os selecionados em seus próprios consultórios, até eles completarem 18 anos. Curativo, preventivo e educativo, o tratamento é totalmente gratuito e completo, incluindo, se necessário, radiografias, ortodontia, próteses e implantes, por exemplo, tudo bancado pelo próprio dentista.

O fundador e presidente voluntário, cirurgião-dentista Fábio Bibancos, foi reconhecido internacionalmente como Empreendedor Social pela Ashoka (www.ashoka.org) e pela Schwab Foundation (www.schwabfoundation.org) por seu trabalho à frente da TdB. Mais informações em www.turmadobem.org.br.