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Verdadeira história

Diante do Papa João Paulo II, em visita ao Brasil, o líder guarani Marçal Tupã-y lhe disse: "Nunca foi contada a verdadeira história do nosso povo". Portanto, os artigos a seguir pretendem redimir, em parte obviamente, o equívoco de séculos ao focalizar o índio dentro da História brasileira

Décio Guzmán
é professor da Universidade Federal do Pará e pesquisador da École de Hautes Etudes de Sciences Sociales de Paris

O que há de novo na história do Brasil em relação às sociedades indígenas que vivem no território do país? Façamos uma breve retrospectiva para avaliar sumariamente este problema.
Em meados do século XIX, em pleno momento de afirmação do Império do Brasil, quando governava D. Pedro II, foi publicada a 2a. edição da "História Geral do Brasil" do sorocabano Francisco Adolpho de Varnhagen. No Prólogo desta obra Varnhagen anunciava a sua versão anti-romântica dos índios brasileiros: os nativos eram bárbaros, sanguinários e ímpios. Em vista dessas qualidades, o historiador julgava de modo favorável a ação devastadora dos colonizadores portugueses. Exterminando os selvagens, os colonizadores implantavam, como afirmava Varnhagen, "a vida, a religião, o comércio, a riqueza, a civilização, ... a pátria (...)" .
Após a chamada "Revolução de 1930", em 1933, Gilberto Freyre publicava o clássico Casa Grande e Senzala. Neste livro hoje muito citado, mas pouco lido, Freyre oferecia visões idílicas da convivência entre as três raças formadoras do Brasil e do "jeito brasileiro". Assim, branco, índio e negro teriam contribuído, cada um à sua maneira, para forjar harmoniosamente uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida. O índio brasileiro, escreve Freyre, "uma das populações mais rasteiras do continente", dava o seu quinhão ao Brasil cedendo a mulher indígena para procriar os filhos do conquistador. Através desta mulher "enriqueceu-se a vida no Brasil (...) de uma série de alimentos ainda hoje em uso, de drogas e remédios caseiros, de tradições ligadas ao desenvolvimento da criança, de um conjunto de utensílios de cozinha, de processos de higiene tropical (...)". O branco europeu "priápico", fecundava com sua cultura cristã "os valores e experiências dos povos atrasados". Da "raça" indígena, segundo o sociólogo pernambucano, se salvaria a "parte feminina" da sua cultura...
Pouco mais tarde, em 1936, em outro clássico ensaio de interpretação, Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda também avaliava a importância da presença indígena na história da formação social e cultural do país. O índio, desta feita, não era mais a "população rasteira" de que falava Gilberto Freyre. No fluxo e refluxo da história brasileira, o índio não havia sido apenas dominado de maneira apática ou indiferente. As culturas indígenas não teriam sido "fecundadas" em mão única pelo elemento dominador português: Buarque de Holanda recordava que os portugueses tendiam a se "indigenizar" e mesmo em diversas ocasiões a se "tupinizar", assim como os tupi-guarani eram também eles capazes de "assimilar" traços de culturas diferentes para sobreviver. Dizia o historiador: "Mas se é verdade que, sem o índio, os portugueses não poderiam viver no planalto (paulista), com ele não poderiam sobreviver em estado puro. Em outras palavras, teriam de renunciar a muitos dos seus hábitos hereditários, de suas formas de vida e de convívio, de suas técnicas, de suas aspirações e, o que é bem significativo, de sua linguagem. E foi, em realidade, o que ocorreu".
Da relação harmoniosa entre as três raças, o marxista Caio Prado Júnior não veria traço algum na formação da sociedade brasileira. Pelo contrário, ele escrevia em 1942 no livro Formação do Brasil Contemporâneo, que as discussões em torno das influências boas ou más das "três raças" sobre a cultura brasileira eram "infindáveis e estéreis". O que finalmente ganhava importância para Caio Prado era a posição social do mestiço, fosse ele filho de branco, de índio ou de negro .
Mas estas três versões da presença do índio na História do Brasil perduraram por toda a primeira metade do século XX e marcaram a relação dos brasileiros com as sociedades indígenas que povoavam partes importantes do território nacional. Durante os anos da ditadura militar, os avanços e a consolidação da antropologia indígena nas universidades brasileiras foram grandes responsáveis pela reintrodução das sociedades indígenas na história. Hoje, a politização dos diferentes grupos indígenas - organizando-se em 297 Associações por todo o país - aumentou o lobby desta parte da população brasileira junto às instâncias políticas mais importantes; o seu aumento demográfico e a demarcação das suas terras colaboraram para dar-lhes maior visibilidade.
A nova história do Brasil, avizinhando-se do conhecimento produzido pela antropologia sobre as sociedades indígenas, propõe renovar o conhecimento do nosso passado e permitir a compreensão de experiências coletivas sem conjeturas. É assim que nos estudos históricos produzidos por antropólogos ou por historiadores de formação desfilam temas e abordagens que incluem as sociedades indígenas. Distinguem-se de forma geral dentre esses estudos: os processos de utilização da mão-de-obra indígena no trabalho escravo, as revoltas indígenas de caráter messiânico, os movimentos migratórios indígenas e a formação das fronteiras nacionais, a formação das coleções museológicas brasileiras num contexto de patrulhamento político etc. Mas a História não se escreve sem arquivos. Para que esses estudos fossem realizados, alguns esforços foram dispensados no sentido de inventariar os arquivos e documentos contendo informações sobre as sociedades indígenas em todos os estados do país.
Porém, muito ainda está por se fazer. O conhecimento do passado do país está em plena expansão, malgrado as dificuldades financeiras que assolam todos os campos da pesquisa científica efetuada nas instituições públicas brasileiras. Não obstante essas dificuldades, supomos com Sérgio Buarque de Holanda, que, referindo-se aos projetos "liberais" no terreno político e social, "as formas superiores da sociedade devem ser como um contorno congênito a ela e dela inseparável: emergem continuamente das suas necessidades específicas e jamais das escolhas caprichosas".

John M. Monteiro
é professor do Depto. de Antropologia da Unicamp e autor de Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo

Se há uma narrativa que predomina na história dos índios no Brasil é a crônica do despovoamento e da destruição. Essa perspectiva não está completamente destituída de sentido, é claro. Afinal de contas, a história do país acumula um triste registro de guerras impiedosas, epidemias avassaladoras, massacres hediondos e assassinatos a sangue frio que afetaram incontáveis populações nativas ao longo dos últimos 500 anos. Ao saudar o papa João Paulo II durante sua visita ao Brasil em 1980, o líder guarani Marçal Tupã-y resumiu de forma eloqüente esta história: "Dizem que o Brasil foi descoberto, o Brasil não foi descoberto não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Esta é a verdadeira história. Nunca foi contada a verdadeira história do nosso povo, Santo Padre".
Tragicamente protagonista desse mesmo enredo de violência e espoliação, o próprio Marçal não teve tempo para elaborar a verdadeira história. Poucos anos depois do encontro com o papa, a voz desta liderança indígena foi calada pela bala de um assassino de aluguel, que o matou a mando de um fazendeiro no Mato Grosso do Sul. Até hoje, ninguém foi preso, ninguém respondeu pelo crime perante à justiça, apesar do mandante e do matador serem conhecidos de todos.
Tivesse o Marçal sobrevivido até os dias de hoje, teria certamente contribuído para a enorme reviravolta que vem acontecendo na maneira de se pensar a história dos índios e, ao mesmo tempo, os índios na história. Vinte anos atrás, quando surgia com força um novo movimento indígena, a denúncia da violência e da expropriação desempenhou um papel central na reivindicação de direitos territoriais e civis. Novos e surpreendentes atores políticos no cenário de um estado autoritário que se desmanchava, as lideranças indígenas paradoxalmente elegeram o papel de vítima para caracterizar o seu pleito. Mas se essa estratégia foi crucial para os avanços que se concretizaram na Constituição de 1988, hoje já não convém mais esse papel. Agora é preciso recuperar a história que os índios fizeram, não aquela que eles sofreram.
Trata-se de uma tarefa hercúlea para os historiadores, não apenas pela dificuldade de se chegar em documentos muitas vezes ocultos, como também e sobretudo pela necessidade de reformular os conceitos e preconceitos que se têm a respeito dos povos indígenas. Ao longo dos últimos 500 anos, há inúmeras evidências apontando para as ações conscientes que as lideranças, os xamãs e outros índios elaboraram face aos novos desafios apresentados pelo contato e seus desdobramentos. As respostas das mais variadas não só bebiam na fonte dos saberes tradicionais mas também se apoiavam em leituras criativas do mundo que os colonizadores criaram.
Ao condenar os povos indígenas a uma condição de pré-história perpétua, as percepções populares no Brasil - que encontram um forte respaldo na historiografia nacional - encobrem um rico painel de processos históricos que ajudam a explicar porque, apesar de tantas tentativas de acabar com os índios ao longo dos últimos 500 anos, existem sociedades indígenas no Brasil hoje, em números cada vez maiores, diga-se de passagem. Cabe aos historiadores, aos antropólogos e aos educadores indígenas um renovado esforço em captar as múltiplas experiências de criação e de recriação identitária que emprestam uma nova dinâmica à abordagem da história dos índios. Os resultados deste esforço coletivo já vêm desabrochando com a nova história indígena que ganha um lugar cada vez mais seguro nos círculos educacionais. Tão verdadeira quanta a história de Marçal, essa nova história revela diversos processos cruciais para a compreensão não apenas da trajetória de dezenas de povos indígenas, como da própria formação do povo brasileiro.

Marta Rosa Amoroso
é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)

As histórias dos índios no Brasil datam de pelo menos doze mil anos, talvez mais. Esse é o mínimo de tempo que se atribui à ocupação humana do que viria a ser o território brasileiro, a Amazônia e o Pantanal, as terras temperadas do Sul e a caatinga do Nordeste, serras, picos, planícies e planaltos. Nessa diversidade de ambientes floresceram culturas humanas que interagiam com a natureza e com os outros homens que habitavam o continente. Esse foi o panorama que o europeu encontrou há 500 anos: o de uma terra ocupada pelo homem ameríndio e suas instituições sociais.
Pouco sabemos a respeito dessas histórias. A história dos índios no Brasil começou a ser sistematizada nas academias na década de 1980, como um ramo da Etnologia, que se beneficiava ainda da união interdisciplinar com a História, a Arqueologia e a Lingüística. O desafio da história dos índios é revelar as concepções indígenas, suas temporalidades, cosmologias e visões de mundo de forma a interpretar, através dos mitos e das narrativas indígenas, os sentidos dessas histórias particulares, as etno-histórias. O outro lado é compreender como as maravilhosas e milenares tradições ameríndias compõem o Brasil.
Tupi, Guarani, Yanomami, Xavante, Karajá, Mura, Kaingang, Taurepang, Maxakali, Kadiwéu, Xakriabá, Pitaguari, Kayapó, Panará, Pataxó, Potiguara, Nhambiquara, Wari, Waiãpi, Pankararu... São 216 etnias indígenas que convivem no Brasil falando mais de 180 línguas. Eles experimentaram as mais diversas formas de contato desde a chegada dos europeus. Algumas populações, como os Potiguara, receberam os primeiros europeus em suas aldeias litorâneas, as mesmas que permanecem ocupando ainda hoje. São, de maneira geral, sociedades autóctones, igualitárias e de população diminuta, com admirável fôlego para se manter vivendo segundo suas próprias regras.
Consideremos, por exemplo, os resultados das pesquisas arqueológicas sobre a Amazônia. Elas afirmam que na época da chegada dos europeus, as margens do Amazonas eram habitadas por populosas sociedades sedentárias e estratificadas, que viviam em grandes aldeias, mantinham áreas de cultivo para a subsistência do grupo e para a troca. A essa informação somemos outra, a de que a floresta amazônica, tida como um prodígio da natureza em termos de biodiversidade, foi o resultado do trabalho milenar do homem ameríndio no manejo de plantas consideradas próprias para a alimentação e para a cura; um saber milenar que, inclusive, vem sendo reconhecido por antropólogos e pelo direito internacional, além, é claro, da indústria farmacêutica.
A história dos índios no Brasil vem revelando aos poucos que as instituições ameríndias são dotadas de grande profundidade histórica e social, o que em parte explica porque essas sociedades permanecem "indígenas", a despeito da pressão que sofreram e sofrem para se integrarem ao mundo globalizado.

Orlando Villas-Bôas
é indianista e pioneiro na expedição Roncador-Xingu, que entrou em contato com várias tribos indígenas

Os índios, sejam eles de qualquer um dos quatro troncos lingüísticos, quando analisados no seu comportamento e visão de mundo, podem ser considerados como uma só nação, embora se diferenciem na expressão lingüística. Seus ritos, seus cerimoniais, no fundo e na forma, mostram os mesmos valores. Há, num aspecto geral, a mesma semelhança psicológica e temperamental. Os recursos da subsistência são colhidos na mesma natureza, usando os mesmos processos. Um dos traços mais marcantes das sociedades indígenas, em seus estágios de cultura pura, é não conhecer nem sentir a fome como crise. Condição essa presente e assustadora no universo civilizado.
A cultura indígena, tal como as de outras sociedades, é complexa. Porém, em alguns aspectos, foge da regra geral de outros povos quando constatamos a não existência de desníveis econômicos que inexoravelmente criam faixas sociais diferenciadas. Numa sociedade indígena, não existem normas estabelecidas que dêem a alguém a prerrogativa de chefe ou líder do núcleo social. Aquele chamado de cacique não tem privilégios autoritários, mas tão somente os de conselheiro. O chefe-conselheiro da aldeia, quer seja de linhagem ou por substituição, tem normas rígidas de comportamento. É comedido, não fala nem ri alto, não faz gestos bruscos, não anda apressado e jamais corre.
Donos absolutos da terra que dominavam, um dia a viram invadida. De braços abertos receberam os invasores. E estes, sem saber, estavam ganhando um continente e aqueles, os índios, dando os primeiros passos rumo a um futuro incerto, para não dizer trágico.
A convivência nascida do contato foi desastrosa para o índio. Castigo maior surgiu com o "preamento", que consistia na tentativa do trabalho escravo. A nova orientação que vinha sendo firmada pelos novos donos da terra era a de integrá-los aos padrões da nova sociedade. Isso passou a ser a viga-mestra da política indigenista brasileira. E o testemunho dessa verdade está posto aos nossos olhos com os índios aculturados das áreas urbanas.
A fúria, contudo, da nova civilização, dona da terra, não precisa mais do braço escravo do índio. Não são poucos, porém, aqueles que vêem uma nova fonte de ganho vendendo a cultura do índio com o turismo.

Mauro Leonel
é professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e autor de A morte social dos rios

"Um índio descerá de uma estrela colorida/numa velocidade estonteante/Depois de exterminada a última nação indígena/virá, impávido". Estas são as poéticas palavras de Caetano Veloso, anunciando o evento mágico aguardado. No momento, o cotidiano da situação indígena é o de ganha e perde, vai e vem, disputando palmo a palmo sua sobrevivência. As festas dos 500 anos na Bahia, com representantes indígenas de todo o país golpeados pela polícia, mostram que ainda não estavam previstos sequer nas recentes comemorações oficiais do 'achamento' do Brasil, em abril do ano 2000.
De 6 milhões em 1500, os índios foram reduzidos a 200 mil nos anos 80. Hoje voltam a ser 350 mil e crescem mais que a média brasileira, 3.4%, contra 1.7%. Como podem os índios aumentar e diminuir ao mesmo tempo? É simples: os índios de recente contato são dizimados pelas doenças, sobretudo quando não contam com assistência médica. Além disto há situações difíceis, como os Guarani do Pantanal, com 300 suicídios e vários assassinatos nos últimos anos, inclusive 16 jovens com menos de 14 anos. A razão é o conflito por terras entre os que se casam e os já estabelecidos, uma vez que a área indígena é sobrepovoada, pouca terra, para muito índio, 7 mil índios para 2 mil hectares. Assim, alguns grupos aumentam, e muito, sua população, enquanto outros diminuem.
Em todos os temas notam-se os índios perdendo aqui e ganhando ali. Na educação, por exemplo, grande parte das aldeias carece de escolas e conta com a presença rara de professores, ou com missionários que condicionam o aprendizado à imposição da conversão religiosa. Por outro lado, em muitos estados e no ministério da educação, foram criados conselhos de educação indígena, nos termos da Constituição, que prevê o direito indígena de estudar em seu idioma, como bilíngüe. O estado do Mato Grosso prepara-se para criar uma Universidade Indígena, com quatro cursos, ainda todos na área de ciências humanas, mas é um começo, uma vez que há poucos índios com formação superior.
Os dados da Funai e de ONGs coincidem em considerar que cerca de 70% das 570 áreas indígenas - 210 povos e 170 idiomas, 0,2% da população nacional - estão de alguma forma invadidas. Os conflitos são freqüentes, como os de limites, com agropecuárias, posseiros, madeireiros, garimpeiros e outros. Nos Yanomami, os garimpeiros introduziram a malária que atingiu 20% da população. Mais recentemente, os índios Gavião do Pará mataram um castanheiro que invadiu suas terras. Os conflitos com madeireiras são freqüentes, incluindo a cooptação de jovens líderes nas operações, em prejuízo do meio ambiente e da maioria da população indígena, como ocorre em Rondônia, Mato Grosso e Pará. Os Campa do Acre chegaram a sofrer a invasão de madeireiros do Peru. Outra ameaça vem das mineradoras, que apresentaram 7 mil pedidos de pequisa mineral em terras indígenas. Os índios detêm terras importantes para a preservação ambiental e a cultura indígena tem decisivo papel no aproveitamento da biodiversidade, a partir de seu conhecimento tradicional e milenar quanto aos usos de plantas e animais.

José Maurício Arruti
é membro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, membro da ONG KOINONIA e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

É necessário reconhecer, em primeiro lugar, que desde os anos de 1960 a antropologia feita no Brasil se preocupa em descrever os "processos" aos quais os grupos indígenas situados em território nacional vêm sendo submetidos com a colonização de seus territórios. Nesse sentido, não há como fugir do marco que representa Os índios e a civilização, de Darcy Ribeiro. A primeira obra a buscar uma interpretação de conjunto sobre o tema que, apesar da insistência nas tipologias, aproxima-se de uma sociologia histórica voltada para a (nossa) "longa duração".
Em seguida, os trabalhos orientados pela perspectiva da "fricção interétnica", aberta por Roberto Cardoso de Oliveira, buscaram analisar situações pontuais por meio de uma franca correspondência entre os chamados "conflitos interétnicos" e os "conflitos de classe". Tal abordagem lançou mão dos aportes trazidos pela sociologia da modernização e da "situação colonial", absorvendo definitivamente a perspectiva histórica, ainda que de forma um tanto incômoda. Acompanhando uma tendência da produção marxista da época, nela os "processos" quase sempre eram enquadrados numa interpretação estrutural, em um compromisso que parecia possível e mesmo inevitável.
Mas, a exemplo da chamada história antropológica, existe no Brasil certa tendência a se pensar em uma antropologia histórica segundo a formulação de João P. Oliveira. Nela, o "processualismo" de origem inglesa é investido de franco interesse pela história, sem os limites impostos pela solução de compromisso anterior. No seu lugar emerge uma oposição aberta, que aparentemente inviabiliza o diálogo com a perspectiva de corte estrutural.
Finalmente, portanto, os antropólogos se consideram aptos e legitimados a fazer história indígena. Para isso, eles até podem fazer referência aos Annales, à perspectiva thompsoniana e aos aportes mais recentes da chamada "história oral", mas é preciso ter em mente a diferença do caminho percorrido para compreender uma série de características que tendem a marcar os seus trabalhos, para o bem e para o mal.
Em primeiro lugar, tais antropólogos historiadores estão muito (por vezes excessivamente) ligados aos problemas relativos ao funcionamento e à administração do órgão indigenista oficial. Em segundo lugar, por partirem das experiências, problemas e mesmo das demandas dos grupos indígenas atuais, eles, diferentemente até mesmo dos historiadores antropólogos, não priorizam a "audição" dos documentos, de forma a permitir que deles surjam temas que os homens e as sociedades indígenas do passado possam ter privilegiado. O caminho privilegiado, mesmo quando ao final se recorre à documentação, é desenhado segundo os meandros da memória dos homens e sociedades atuais. Esse nó marca o meu próprio trabalho entre os Pankararu (PE) e os Xocó (SE). Nele se encontra uma resposta para a onipresença do Estado Nacional, dos conflitos interétnicos e territoriais dos trabalhos de história indígena.
Assim, talvez nem todas as características desses trabalhos se devam aos antropólogos. Se, como Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro sugeriram, as diferentes regiões geográficas imprimem o seu selo nos problemas característicos de épocas e escolas, sou tentado a sugerir que as sociedades indígenas do Nordeste brasileiro contribuíram para a maturidade da etnologia feita no Brasil ao lhe impor o "tema obsessional" da história e da memória da expropriação territorial, mobilizadas na luta pela reconquista territorial, que também já tem sua própria história.