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Literatura
A mecânica das palavras

A Oficina Literária do Sesc Online abre as inscrições para sua 5a turma: a tecnologia permite que autores diletantes de todo o país se encontrem pela Internet

'Meter o dedo na alma." A afirmação um tanto ameaçadora à primeira vista é o objetivo do escritor João Silvério Trevisan, coordenador da oficina literária ministrada pela Internet, no Sesc Online. Caminhando para sua quinta turma, o trabalho realizado desde 1999 permite que interessados do Brasil inteiro (e potencialmente do mundo todo) se reúnam no ciberespaço para trocar experiências literárias.

A realização de uma oficina virtual tornou-se uma derivação natural desse "exercício" relativamente novo. E por trás da tela fosforescente de um PC, as possibilidades, as expectativas e as apreensões que fazem parte, de ordinário, do processo criativo ganham contornos inesperados. "O processo de criação do texto vem da alma e, numa oficina literária, as discussões e as críticas abalam as eventuais certezas que se tem sobre a própria obra. Mas é bom salientar que a oficina não é um fim em si mesma, ela apenas deflagra um processo", explica Trevisan.

O escritor-coordenador, antes de iniciar as atividades, estabelece uma rotina de trabalho e expõe seus objetivos. "Trabalharemos em três fases: soltar-se; descobrir-se; aprimorar-se. Se vocês (oficineiros) demorarem para se soltar, o trabalho de descoberta do seu texto demorará mais e, portanto, mais longe ficará o objetivo final de elaborar-se, aprimorar-se." Para tanto, são propostos os mais variados exercícios, realizados seja on-line, isto é, enquanto os participantes estão conectados ou, muito importante, em casa, quando são preparados textos específicos de acordo com o exigido por Trevisan. Além disso, uma base teórica, composta de uma miscelânea de obras dos mais representativos escritores do século 20, é oferecido de subsídio (e incentivo) aos participantes.

Um dos aspectos ressaltados pelo coordenador é o ecletismo atingido pelas oficinas. Trevisan lembra que encontrou oficineiros das mais variadas profissões, idades e endereços. Na rede, os interesses difusos convergem para metas comuns que, segundo o escritor, visam soltar a imaginação e mergulhar, profundamente, no interior dos participantes. Buscando esse objetivo, os textos amadores são dissecados sem piedade pelos próprios pares que, durante os três meses de oficina, aprendem a lidar com os instrumentos básicos de crítica e, principalmente, autocrítica. "A crítica é um dos aspectos mais importantes da oficina. Ela desestabiliza o texto dos participantes e instaura uma crise em cada um. Esse encontro, na verdade, apenas deflagra um processo que deve continuar fora daqui. Muitos começam acreditando serem gênios da literatura mundial e, quando se deparam com a realidade, mostram muitas dificuldades de encará-la", relata Trevisan.

Crise da crítica

A crise diante do próprio texto acomete e incomoda os participantes que, ao menos por enquanto, vêem a própria literatura com olhos diletantes. É verdade que o processo de seleção dos oficineiros destaca a qualidade inicial dos textos enviados previamente. Portanto, a inclinação literária conta para que o coordenador decida, entre os cerca de sessenta inscritos, os oito eleitos.

O médico goiano Flávio Paranhos foi um dos pioneiros da oficina literária. Ele participou da primeira turma, iniciada em março de 1999 e, a seguir, relata sua experiência: "Minha ligação com a literatura vem de criança. Sempre li e escrevi muito, mas nunca tive oportunidade de ter meu trabalho convenientemente analisado".
Flávio conta que no Sesc Online enfrentou sua primeira experiência em oficinas literárias. Ele diz que por ser virtual, o trabalho lhe deu oportunidade de entrar em contato com um escritor paulista, realização quase impossível em outra ocasião. No entanto, ele ressalta que devido à resistente morosidade da web brasileira, o grupo encontrava alguns problemas comuns a todos os internautas. "Ora a sala caía, ora a comunicação ficava truncada." Em virtude desse contratempo tecnológico, muitas vezes ocorreram mal-entendidos próprios da comunicação interrompida. "Por isso", explica João Silvério Trevisan, "desenvolvi certos códigos para esclarecer algumas situações específicas, como apartes e brincadeiras. Mesmo assim, houve algumas confusões."

Por outro lado, o fato de os participantes não se reunirem fisicamente dá um contorno muito particular ao caráter do trabalho. João Silvério Trevisan, useiro e vezeiro em ministrar oficinas físicas, conta que um encontro virtual demanda uma dinâmica própria. "A intermediação do computador cria entre os participantes uma fantasia que pode ser negativa ou positiva. Tal distância compulsória permite um contato muito mais intenso do que se fosse feito pessoalmente: a intimidade é bem maior. A pessoa do outro, através dos códigos impostos pelo computador, não é estranha. Não se convive com seus defeitos, qualidades e idiossincrasias, ou seja, pela Internet, não há nem amor nem rejeição à primeira vista."

Em termos estritamente literários, Flávio Paranhos relata que desenvolveu a capacidade de autocrítica e percebeu que seu texto, cuja qualidade acreditava estar bastante apurada, ainda necessitava de muito cinzel. "No meio da oficina, a crise aperta muito. Chega a ser desconfortável, mas, no fim, o saldo foi muito positivo."
O resultado prático de três meses de árdua labuta, enfrentando desde as dúvidas mais ásperas até as críticas mais ferrenhas por parte dos pares e do "professor" Trevisan, pode ser conferido no www.sescsp.com.br, no Espaço Literário. Lá, estão publicados os melhores textos das quatro oficinas já realizadas. A cada módulo de exercício, os participantes escolhiam de comum acordo o melhor resultado. Em seguida, segue um excerto de um conto escrito pelo médico goiano sobre seu escritor favorito, o checo Franz Kafka:
- E sobre o que escreve?
- Coisas sem importância para os outros, para a maioria das pessoas, preocupadas em continuarem a ser medíocres, mas que para mim são o oxigênio que respiro. Talvez por isso seja tísico.
Rindo-se da própria ironia, teve um acesso horrível de tosse, que o fez manchar a grama com seu escarro repleto de rajas de sangue. Senti alívio. Senti-me igual. Quem sabe ele não tinha mesmo razão, pensei. Franz tomou novo fôlego e continuou:
- Tenho pesadelos todas as noites - e dias também, pois estou sempre sonhando - que me consomem tanto quanto suas chagas, pode acreditar. Labirintos sem saídas e, o que é pior, sem minotauros. Não consigo enxergar o inimigo, mas sei que ele existe e é muito mais forte do que eu.
- Quem?
- Não sei. O homem, talvez. O vulgo. Todos e ninguém. Sinto uma permanente asfixia que quando tento pôr para fora sai como um espesso catarro sanguinolento, para, em seguida, voltar a me asfixiar.
- É que você é tísico - eu lembrei.


Adelaide

Rosita Samarani Prates participou do último módulo da oficina. Professora de português no Rio Grande do Sul, ela conta que sempre teve arroubos literários e, com a difusão da Internet, tornou-se uma assídua freqüentadora dos sites literários. Ao tomar contato com a oficina virtual se encantou de pronto, afinal, era uma oportunidade de aprender com um renomado autor brasileiro.

Ao fim do percurso de três meses, da mesma forma que o colega Flávio, Rosita sentiu na pele a crise de não ser um gênio, mas, de todo o modo, tirou lições importantes do aprendizado. "Durante o tempo em que durou a oficina, senti que o grupo ficou muito envolto pelo trabalho. Era difícil tirá-lo da cabeça", diz. "Depois, desenvolve-se um relacionamento muito intenso entre os participantes, pois convive-se a todo o momento com as críticas alheias."

Rosita não nega que tenha planos de se tornar escritora e ressalta que a oficina lhe deu maior disciplina, já que os exercícios tinham de ser entregues peremptoriamente. "Não adiantava alegar 'branco' ou falta de inspiração. Minha produção aumentou bastante", conclui. Num dos exercícios propostos, a professora teve seu trabalho selecionado entre os demais.

Fechando a matéria, um pequeno trecho do conto Peso morto:
Nem pensei em dizer não. Aquele serzinho fantástico e improvável deveria ter uma vida e tanto. Foi assim que anoiteceu e eu ainda estava ali, ouvindo as vozes dos gatos e os miados de dona Dela. A história foi interrompida na última "vergonheira", a do moço de fora, que provocara a ida da família para aquela toca esverdeada.
- O senhor fica, né? Sua cama está prontinha. Amanhã eu conto mais.
Fiquei. Outro dia, outra noite e outros tantos que, de fato, não sei dizer. Meu quarto era uma cama cheirosa, separada da cozinha por uma cortina estampada com flores miúdas. Dormia cedo, acordava cedo, ia pro mato com dona Dela procurar ervas - cada uma tinha uma lenda associada a seus poderes
curativos, que a velha fazia questão de contar com pormenores. Eu assistia às benzeduras que ela fazia com os aflitos que a procuravam. Entre uma tarefa e outra - e mesmo durante elas - Adelaide continuava a contar-me sua vida. Tudo que eu fazia era respirar e comer, ouvindo miados e o ronco do mar invisível, tão próximo.


Leitura crítica
No Sesc Online, um espaço para aprender a ler

"Ler é sempre reler". Deste modo, a Sala de Leitura, coordenada por Márcio Seligmann, é um espaço aberto para se pensar e praticar de modo crítico a leitura de literatura. Ela está dividida em duas seções principais: uma voltada para a reflexão do ato de leitura ("Livro vivo") e outra interativa, voltada para a prática da leitura crítica de obras literárias ("Oficina de Leitura").
Na primeira, são apresentados alguns conceitos que podem ajudar a pensar a leitura como uma atividade lúdica, prazerosa - mas também complexa e que possui uma longa e bela história. O princípio é que, quanto mais nos aproximamos das várias camadas que compõem o texto literário, e quanto melhor as compreendemos, mais a leitura fica rica, inteligente e interessante.

Na "Oficina de Leitura", o internauta encontra ainda duas "salas" abertas onde poderá ler e escrever resenhas de livros.
O objetivo não é o de criar ou formar críticos literários, mas sim o de despertar o interesse do público pela atividade de leitura crítica: se ler é gostoso, pensar sobre a obra lida e procurar expressar as suas idéias sobre ela só aumenta esse prazer.