Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Depoimento
Resistência cultural

"A atriz Lélia Abramo, que completou 90 anos em fevereiro, participou do encontro O idoso e o trabalho voluntário, realizado no Sesc Consolação. A seguir, testemunhos de uma trajetória de vida repleta de ética e coerência

Dona de uma biografia admirável, que junta militância de esquerda no período das ditaduras de Getúlio Vargas e o do regime militar -, além de uma fulminante carreira no teatro, no cinema e na televisão, Lélia Abramo comemorou 90 anos em fevereiro. Guardando uma lucidez absoluta, a atriz, que começou no teatro profissional aos 47 anos, encenando a montagem revolucionária de Eles Não Usam Black Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, esteve no Sesc Consolação, no seminário O idoso e o trabalho voluntário. A seguir, trechos de um depoimento exclusivo à Revista E, de uma mulher que não será esquecida jamais.

Brasil

No Brasil, tanto a infância quanto a terceira idade não são respeitadas. Trata-se de um fenômeno moderno que deve acontecer em outros lugares do mundo também. Existe um abismo entre aqueles que viveram uma parte do século passado como eu, que tenho 90 anos, e a juventude de hoje. Essa juventude dificilmente lê ou se interessa pelas coisas do passado. Há ainda a questão ética. É necessário que numa sociedade haja reciprocidade, identidade e cultura. Caso contrário não restará nada. Hoje, no Brasil, nós estamos como que flutuando no espaço... O triste é que a mocidade não se interessa muito pelo passado e eu acho que isso seria importante para evitar erros no futuro. O idoso fica completamente de lado, justamente por deter uma outra visão de mundo. Eu não quero dizer que todos os idosos são iluminados, na verdade uma grande parte deles é caduca mesmo porque a natureza é violenta e não perdoa. Mas sempre uma pessoa mais velha tem uma bagagem de experiência humana que deve servir para uma criança ou um adolescente e ajudar evitar que esse jovens cometam erros inúteis que só vão prejudicar suas vidas. Só que não existe mais essa ligação entre o jovem e o velho. A juventude sofre o impacto de uma tecnologia muito avançada e, por outro lado, sofre com a queda de valores. O grande perigo para o futuro é essa falta de penetração no passado e a falta de uma consciência do que pode acontecer se a tecnologia e a ciência se mantiverem a serviço dos poderes dominantes e não do povo. Não adianta inventar coisas mirabolantes quando existem favelas e milhões de pessoas morrendo de fome.

Futuro

É claro, é necessário que haja esperança. Os jovens têm sempre que cultivar esse sentimento. Eu pertenço a uma geração cuja esperança era de que através do socialismo fosse possível criar sociedades mais democráticas e justas. Pois, para mim, o capitalismo é uma coisa aberrante. Ele só vê o lucro e mais nada. É como diz o historiador britânico Eric Hobsbawm: "O capitalismo não foi feito para o gênero humano". Essa frase diz tudo. O capitalismo destrói todo o sentido humano da vida. Eu acho que é preciso pôr um paradeiro no avanço brutal do capitalismo, que agora segue rumo à globalização em prol da exclusão social. O capitalismo está globalizando o mundo em benefício somente do capital e não das pessoas e da sociedade.

Idéias

Sou socialista e sinto-me frustrada porque não aconteceu o que imaginávamos no passado. E diante da situação tão desigual em que vivemos, eu costumo indagar sobre a essência do ser humano ... Será que nós ainda vivemos nas cavernas? Afinal só os mais fortes vencem? Não estamos falando do resultado de uma civilização milenar que atravessou séculos e séculos, mas simplesmente da vitória do mais forte. Os EUA estão aí para demonstrar isso. É ou não é a vitória do mais forte? Somos nós pessoas que podem olhar as nuvens, o céu e as estrelas ou somos animais? Não é que não haja esperança, mas hoje nós vivemos um retrocesso brutal. Na minha vida, eu tentei uma escalada que não deu certo mas voltaria a fazer tudo o que fiz. O que me espanta é o fato do Brasil ser ainda mais atrasado do que eu pensava. Eu não trabalho já há mais de vinte anos. E sabe por quê? Simplesmente devido à minha militância. Por ter me mantido fiel a meus ideais e lutado por aquilo que eu acreditava correto, a Rede Globo e muita gente do teatro nunca mais me chamaram para trabalhar. Inúmeras pessoas me viraram as costas. Eu afirmo que o Brasil é um país muito atrasado, inculto, um país onde o analfabetismo é gigantesco... Em apenas vinte anos de carreira ganhei muitos prêmios, não era para ser jogada fora, mas me jogaram. Porém, eu não me arrependo do que fiz, só lamento não ter feito mais. E digo que tudo isso é conseqüência do atraso cultural. Um país que não fomenta cultura e que não se baseia nela é um país perdido e sem dignidade.
Itália e a Guerra.
Morei na Itália de 1938 a 1950, ou seja, no período dominado pelo Fascismo e durante a Segunda Guerra. Mas, na vida cotidiana, eu senti que havia alguma coisa que não estava funcionando no fascismo. Muita gente sabotava o sistema por baixo do pano. Quando cheguei lá, logo postulei um emprego, mas para trabalhar, o cidadão italiano tinha que pertencer ao Partido Fascista. Durante a entrevista para o emprego, disse ao patrão que era antifascista e, em vez dele me enxotar do lugar, me deu a vaga alguns dias depois. Afinal, esse sujeito pertencia à Caserna, uma organização velada contra Mussolini. A Itália toda estava contaminada pelos antifascistas. Eu posso dizer que a guerra é uma experiência inenarrável. Você tem de viver para saber o que é. É um horror. Cortam tudo. Não tem água, luz, comida. Os jovens morriam que nem moscas nessa época na Itália. Morriam tuberculosos porque não tinha comida... A Itália ficou esvaziada.

Lula

A minha condição era muito sólida. Como presidente do Sindicato dos Atores, e em virtude da minha experiência anterior como militante de esquerda e trotskista, fui um dos primeiros representantes não-operários a me aproximar do Lula. Ninguém tinha compreendido quem era ele. Eu compreendi que o movimento capitaneado por Lula representava um elemento de formidável combate à ditadura.