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Atlântida, 60 anos - As primeiras páginas de uma história de cinema
Nos 60 anos dos Estúdios Atlântida, uma justa homenagem a Moacyr Fenelon, diretor e produtor, esquecido pela história. Uma exposição no Sesc Pompéia resgata essa trajetória que se confunde com os primeiros passos da companhia
É evidente que este ano a efeméride maior no campo cinematográfico brasileiro aponta para os sessenta anos dos Estúdios Atlântida. Claro que homenagens e memoriais se curvarão sobre os lugares-comuns que caracterizam a trajetória do empreendimento. Já é possível ver nos cartazes: as chanchadas e os filmes de carnaval serão destaques; Oscarito e Grande Otelo, colocados no panteão. E merecidamente, é de se ressaltar, merecidamente.
Mas talvez, junto às lembranças de praxe, um outro roteiro deva vir à cena. Um roteiro composto de personagens e cenas indevidamente rebaixados pelo crivo do tempo. Um roteiro, enfim, que reviva os balbucios da Atlântida, com suas dificuldades, mal-entendidos e idiossincrasias; mas que, acima de tudo, recupere a memória de um homem soterrado pelos desvãos da História (dessa vez com agá maiúsculo), protagonista de um argumento real: o nascimento da companhia que durante algumas décadas reinou soberana na ribalta do cinema. Esta matéria, portanto, serve, em parte, para reparar o descuido dos roteiristas, pois reencontra e coloca em tela Moacyr Fenelon, batalhador intimorato, técnico de variados setores da feitura do filme, além de diretor, produtor, líder sindical, amado e odiado com igual intensidade, poucas vezes mencionado com a importância devida, quando não completamente ignorado.
A trajetória de Fenelon se confunde com os primeiros anos de existência dos Estúdios Atlântida. Natural de Patrocínio, pequena cidade da zona da mata mineira, teve formação educacional e cultural completada no Rio de Janeiro. A inquietude que sempre o acompanhou levou-o a interessar-se pelas grandes novidades daquele momento: rádio e disco. Em decorrência dessas especialidades vamos encontrá-lo em 1930 adaptando equipamentos do cinema mudo ao sistema vitafônico, o antigo processo de sonorização de filmes por meio de discos de vinil. A empreitada cinematográfica exigia, além dos conhecimentos técnicos, ampla dose de aventureirismo. Quando a cidade não contava com cinema ou o gerente não estava interessado pela novidade, Fenelon recorria à casa paroquial, ao salão de festas da prefeitura, ou mesmo, exibia suas fitas em praça pública.
Um novo sonho
Após um consórcio com o produtor norte-americano Wallace Downey na companhia Sonofilmes (ver box), Fenelon viu sua recente empreitada fulminada por um incêndio devastador em 1941. Desempregado, lançou-se na maior aventura da sua vida. Partindo de um Manifesto grandiloqüente, no qual afirmava que o público estava sendo abastardado pelo cinema que se produzia na época, Fenelon e alguns ideólogos amigos lançaram uma nova produtora, a Atlântida Cinematográfica, capaz de trazer para os brasileiros aquilo que eles mereciam: um cinema de conteúdo.
O Manifesto prometia aos compradores de ações da produtora a instalação de um estúdio primoroso e a compra de material de primeira linha. Hoje, visto com a imparcialidade do tempo, fica claro que Fenelon pouco ou nada teria conseguido se não houvesse encontrado pela frente José Carlos Burle, compositor e médico, que havia conhecido em 1936. Burle se propôs a ajudá-lo na venda das ações. Pouco depois, tornou-se sócio da produtora, trazendo ainda, para a presidência da Atlântida, seu irmão rico, Paulo, eficiente e diversificado homem de negócios.
Mas, antes mesmo da produção do primeiro filme, a companhia deixava de cumprir o prometido no Manifesto, e a construção de um estúdio moderno foi substituída pelo aluguel de um antigo local de jogos proibidos, o frontão, onde se praticava o extinto jogo de pelota basca. A cancha dos pelotários se tornou o palco de filmagem. As arquibancadas, depósito de material elétrico e negativos. A parte administrativa, sala de produção e maquiagem. Outros cubículos foram construídos para as demais necessidades. O tratamento acústico foi resolvido capeando teto e paredes com esteiras de peri-peri. Para economizar mais um funcionário ficava sentado no teto, de binóculos em punho, acompanhando o tráfego de aviões e avisando quando a tomada podia ser rodada sem ruídos externos. E, durante as filmagens de Luz dos meus olhos, não se podia mais trabalhar à luz do dia, pois os ruídos das serras e martelos de uma construção vizinha impediam a captação de som direto.
A câmera utilizada era do tempo do cinema mudo. As extraordinárias habilidades artesanais de Fenelon improvisaram um motor síncrono, responsável por captar o som direto. No entanto, o ruído emanado da peça intrometida foi solucionado com um sistema de blimpagem (uma cabine acomodava a câmera e fazia o isolamento sonoro), também invenção de Fenelon que, se por um lado resolvia o problema acústico, encobertava as lentes, impedindo a realização de closes. Grande parte do estilo estático, quase teatral, que marcou muitos filmes da Atlântida não se deve a motivos estéticos, mas sim, a empecilhos que obstavam a correção do foco. Nas raras vezes que a câmera ou os intérpretes se locomoviam, um barbante era ligado entre eles para que não saíssem do limite do alcance do foco. Na montagem, o corte do som corria paralelo ao da imagem. Não havia mixagem com mais de uma banda de áudio. Diálogo não tinha música. Música não tinha ruídos. Ruídos não tinham diálogos.
Fiéis ao conteúdo
Produtores e diretores, tanto Fenelon quanto Burle ousavam se manter fiéis ao Manifesto repleto de boas intenções que marcou o lançamento da produtora. Segundo a carta original, o público merecia filmes sérios e era com eles que ambos ansiavam erguer o empreendimento. Acreditavam que, se bem produzidos, os filmes de conteúdo cativariam a audiência e lotariam as salas de exibição. Com o passar dos anos (e foram poucos) a expectativa inicial se mostrou malograda.
Os filmes sérios dirigidos ora por Burle, ora por Fenelon, pouca popularidade alcançaram, ocasionando rombos financeiros que não podiam chegar ao conhecimento dos acionistas. Essa situação de penúria levou-os, finalmente, a lançar mão de um filme carnavalesco, tão repudiado no início, traindo mesmo que involuntariamente os espíritos retos e crédulos dos seus redatores.
Mesmo contra o parecer indignado de Fenelon, para o bem do negócio era necessário o lançamento de um sucesso que, obviamente, não seria assinado nem por Burle e, muito menos, por Fenelon. O desafio, então, foi concedido a Rui Costa, cineasta português, radicado no Brasil, cuja competência estava acima de qualquer suspeita, e podia assinar uma chanchada sem maiores problemas, apesar de ter sido assistente de direção no ultra-intelectual Limite.
Com um título que mereceria, pelo menos, uma dezena de teses de doutoramento em semiótica, Tristezas não pagam dívidas, filme carnavalesco, foi a terceira produção da Atlântida e a salvação da lavoura, embora tivesse sido realizado sob um clima tenso. Em meio às filmagens, os amigos Fenelon e Rui engalfinharam-se em uma violenta luta corporal que paralisou temporariamente o andamento da fita. O temor foi grande, pois sendo uma produção carnavalesca, com as músicas de sucesso daquele ano, o filme tinha de ser lançado, obrigatoriamente, no período da folia. A refrega entre os colegas, no entanto, colocou em risco o prazo da estréia.
No ano seguinte, sob um outro título masoquista, o drama Não adianta chorar, sob a batuta de Watson Macedo, que fazia sua estréia na direção, a companhia deu um outro tiro no pé. E foi nesse passo que a Atlântida, no início dos anos 40, ao mesmo tempo em que tentava dar vida aos preceitos teóricos originais, via-se compelida a apagar o incêndio financeiro lançando chanchadas, tão ao gosto do povo. Dessa forma, ao lado de nomes sisudos e dignificantes como Sob a luz do meu bairro, Asas do Brasil, Vidas solitárias, Luz dos meus olhos, Gente honesta, perfilhava um contraponto demoníaco: É com esse que eu vou, Este mundo é um pandeiro, Segura esta mulher, E o mundo se diverte.
Apesar da alternância constante entre o sucesso e o fracasso, a partir de 1946 a situação econômica da produtora tornou-se periclitante. Diante de mais dificuldades, Burle e Fenelon avaliaram algumas alternativas: fechamento total, venda ou a entrada de um novo sócio. Paulo Burle e Fenelon mostraram-se contrários ao fechamento. Optou-se, então, pela entrada de um sócio.
O fim do começo
Luis Severiano era naquele momento o homem que controlava a maior rede de cinema do país, que se estendia do Rio de Janeiro ao Amazonas. Simultaneamente, era considerado por todos os produtores brasileiros como pau mandado dos americanos, sempre pronto a prejudicar o cinema brasileiro. Mas, contrariando as previsões, aceitou-se a proposta do "crápula".
Quando o período de transição de poderes terminou, em 1950, Severiano imprimiu outro estilo à produção da Atlântida. Em 1952, um pavoroso incêndio destruiu por completo a produtora. Na virada dos anos 50, a Atlântida se consagrou com o chamado período de ouro da comédia paródica. Esse período marcou o fim da era inicial da companhia, parida de um Manifesto utópico dez anos antes. O sonho de um cinema de conteúdo, que motivou alguns idealistas, havia se desviado dos desígnios iniciais, mas caminhava para se tornar a produtora mais importante do país. Mesmo às avessas, pode-se dizer que a quimera de alguns sonhadores, em parte, se realizou.
Mas como costuma acontecer em alguns filmes, o final dos protagonistas não foi feliz. É de se perguntar, então, o que aconteceu com Fenelon nas últimas cenas do período inicial da Atlântida. Bem, fora da companhia desde o fim da década anterior, o produtor e diretor associou-se à Cinédia e posteriormente à Flama. Entre 1948 e 1952, dirigiu seis filmes e produziu cinco. Em 1952, o ano do incêndio da Atlântida, ele produziu e dirigiu Tudo azul, melodrama musical que marcou o fim da chanchada e delineou a comédia paródica. Fenelon morreu de complicações cardíacas, em 14 de agosto de 1953. Ao cair dos letreiros, estava quase na miséria.
Máximo Barro é montador e professor
de História do Cinema da FAAP
Atlântida na Pompéia Exposição comemora os sessenta anos do estúdio e conta sua trajetória No seu périplo inicial, Fenelon deixou sua marca em trabalhos hoje tidos como fundamentais na história do cinema brasileiro, a exemplo de Coisas nossas; Alô, Alô Carnaval e Maria Bonita. A qualidade obtida nessa fase experimental, adquirida mais por intuição, aliada à precariedade do equipamento, parte construída por ele mesmo, o transformaram no homem de confiança do americano Wallace Downey, outro injustiçado pelos historiadores brasileiros. O ativíssimo americano, que viera ao Brasil para gerenciar a gravadora Columbia, contratou a nata dos cantores, músicos, compositores e orquestradores. A quantidade e qualidade dos artistas que possuía permitiu-lhe aventurar-se em shows radiofônicos e teatrais e, finalmente, no cinema. Juntos, Fenelon e Downey criaram a Sonofilmes e produziram peças teatrais de ampla aceitação no eixo Rio-São Paulo. A dupla lançou, em primeira mão, a primeira seqüência colorida de nosso cinema, no filme João Ninguém, de 1936. No entanto, o prato de resistência da Sonofilme foi a esquematização da comédia musical carnavalesca, reconhecida como o gênero de "chanchada". Com as chanchadas, o público vinha a êxtase ao consagrar e identificar personalidades, as quais conhecia apenas por rádio e disco, como Orlando Silva, Carmem e Aurora Miranda. Nos filmes, os cantores não atuavam como atores, mas participavam de apresentações musicais, inseridas no contexto do filme. Lançadas sempre em época de carnaval, as chanchadas, que eram produzidas sem a menor preocupação com o acabamento, foram muito confundidas com as fitas de paródias, lançadas pela Atlântida a partir de 1950. Diferente da pobreza do figurino, muitas fezes confeccionado com papel no próprio corpo do ator, o novo gênero tratava com humor paródico os fatos políticos do país e mesmo grandes filmes mundiais. Clássicos como Matar ou morrer, que foi adaptado para Matar ou correr, e Sansão e Dalila, que era para nós Nem Sansão nem Dalila. Essas curiosas informações sobre a história do cinema, retratada por meio da trajetória inicial dos Estúdios Atlândida são objeto da exposição Moacyr Fenelon e a criação da Atlântida, que estará de 6 de março a 1o de abril no Sesc Pompéia. Projeções de filmes, fotos, cartazes, documentos, diplomas e objetos pessoais estarão à disposição do público, além de reconstituições de salas de montagem, escritórios de produção, palcos de filmagem com câmeras, refletores e microfones propiciam a oportunidade de conviver com um pouco da vida cinematográfica dos anos 40. |