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Kelly Teixeira

Patrimônio de quem?

‘Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Cada um lê com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os pés pisam”. É com essa frase do filósofo e teólogo Leonardo Boff que eu começo a nossa conversa. É impossível traçar qualquer panorama sem entender de que lugar falamos. Eu, falo do lugar de uma arte-educadora, nascida e crescida na periferia da zona leste de São Paulo, sonhadora e idealista com um mundo melhor e com a possibilidade de transformação do ser humano. Daqui, partem ideias e ações que, contaminadas com essa experiência, desembocam diretamente no contato com a arte e na crença da sua potência.
Potência que traz implicações no modo como vemos e vivemos as coisas. No contato com a arte dificilmente passamos incólume, seja pela aproximação, seja pela repulsa. Assim como o artista francês Robert Filliou, também acredito que “a arte é o que faz a vida ser mais interessante que a arte”. O reconhecimento do objeto artístico frequentemente passa pela discussão de como ele pode contribuir significativamente com a vida. Não falo aqui de uma contribuição necessariamente prática, embora ela até possa acontecer, mas principalmente da ordem do sensível, do poético e do familiar.
Nesse sentido, se as discussões sobre quem ou o quê legitima um objeto como artístico são acaloradas, apaixonadas, e às vezes, técnicas, o conceito que temos sobre patrimônio cultural também pode se tornar um caminho pedregoso e distante. A não ser que, em um dado momento, no contato íntimo com um objeto, o estado da arte se instale e ele passe a fazer sentido para aquele que observa. Ele vive, nesse lugar, tempo e espaço o sentimento de pertencimento, cuja relação com a vida é desvelada e pode conduzir a um processo de reconhecimento do seu lugar no mundo.
Essa legitimação acontece, por exemplo, com a formação dos museus, que são constituídos sempre a partir de um ponto de vista, seja ele qual for – e não cabe aqui aprofundarmos o mérito da formação de certos museus, embora seja uma discussão importante. Dessa forma, vale destacar, para além dos museus historicamente estabelecidos, iniciativas como o Museu da Maré no Rio de Janeiro que reúne objetos e histórias destacadas e escolhidas da sua comunidade como forma de preservação da sua memória. Não é diferente o caso do Acervo Sesc de Arte Brasileira, uma coleção constituída por aproximadamente 1700 obras, cuja formação se deu ao longo da existência da instituição e que fica distribuída pelos espaços das unidades da capital, do interior e litoral do estado. A escolha dessas obras privilegia a produção brasileira como forma de reconhecimento e estímulo aos artistas nacionais, e a sua distribuição parte da ideia de que a arte faz parte do cotidiano das pessoas. São escolhas, poderiam ser outras.
O reconhecimento ou não de certos conteúdos não mudará a definição e o conceito de patrimônio como o conhecemos hoje, porém há que se reconhecer os diversos patrimônios e a importância que cada um deles tem para a comunidade ao qual está inserido. Bem como, a importância de cada comunidade reconhecer e respeitar o que faz sentido para o outro.
É com essa intenção, de respeito e alteridade, que se propõe o trabalho de ação educativa no Sesc, que se apóia na produção artística contemporânea para ampliar as possibilidades de distintos olhares e pontos de vista.

Kelly Teixeira, arte-educadora, é técnica da ¿Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc