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José Luiz Passos

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti


por José Luiz Passos


Proclama assim, Zacarias

Apertando os olhinhos numa careta, a menina havia praticamente resumido a situação dele, as circunstâncias e o conflito no qual Zachary foi se meter, deitado com as pessoas da casa entrando e saindo do quarto, todos querendo saber se já era hora, se ele sentia o momento chegando e ia precisar do vaso de nogueira passado de mão em mão, prontamente, para que afinal Zachary fosse montar nas bordas daquela bacia de cama. No bispote do menino, como diz o pastor, seu pai. E ele, o menino, casaria a traseira branca na craveira daquele utensílio porco, de tantas lavagens. Ele, de braços cruzados diante de todo mundo, apertando o rosto e a barriga, a cabeça por cima dos joelhos, balançando-se de olhos fechados, como se o vaso, atado ao chão por raízes profundas e pás de adubo fresco, não pudesse jamais emborcar ao pé da cama em que o pastor dormia.
A pequena Annabel admira o irmão nessa luta. Olha ¿Zachary de frente, encostada ao fundo da sala, sem esconder o rosto. Nos dias da barriga, o menino é a ocupação da casa. Irrita o pastor, que põe a razão em frutas inchadas, nos caroços das frutas, no desgosto que o menino tem pela cata. Mas, para o pastor, Um homem são seus exercícios. Por isso, o regrador fica na mesinha da sala, numa jarra azul com pires por tampa. Ele prepara a mistura com casca de lima e raiz amarga, até tirar dela uma calda castanha, que lembra aos pequenos o barro feito no curso sinuoso dos seus próprios corpinhos, Pois a causa é o efeito e o efeito é a causa, começo e fim se enredam numa malha sem pontas, o pastor repete, enquanto passa nas canecas de estanho, cedo na manhã, uma dose a cada um deles, aos seis filhos já enfileirados. E Zach fica por último, para que, à espera da vez, no rigor de uma expectativa prolongada, o menino se abra às causas latentes e dilate, ainda mais, os seus próprios fins.
O nome do pastor é Baldy Washington, mas ninguém chama o pastor pelo nome. Ele é alto e agitado, franzino, de rosto duro, e a barba é grisalha, queimada por um resto de ruivo. Quem passe àquela hora vê Baldy regrando os meninos, repetindo sermões que seu próprio avô, o velho Taylor, mandou publicar em vida. Num deles, o destino da região é prefigurado na imagem de dois rapazes que arriscam as cabeças dentro da bocarra de um tigre. E, às vezes, o pastor também lembra aos filhos a vontade de Sallie Liz Cordell, a mãe deles, Que vocês aprendam a me ouvir, ela falou. E Deus a tenha, o pastor repete. Sallie e Baldy são os pais de Zachary Clay Taylor. Mas, quando estão a sós, rindo embaixo do cestão de roupas, lendo as mesmas páginas dos mesmos livros de sempre, com mapas do Brasil coloridos em rosa e amarelo, dando nomes aos besouros apanhados num caixote de madeira, Annabel chama Zach de Clayman, barromem. Nome que, para ela, aos sete, já traduz o irmão, as saídas, os mergulhos, a intensidade do irmão, a seus olhos um pequeno gigante, grave e metido consigo, e por quem ela cultiva uma imensa adoração.
A menina está certa. Zachary, nosso homem de barro, era, no clã dos Taylor, o mais firme e, no entanto, de todos eles, o único verdadeiramente flexível.

***

De repente, o pastor põe as mãos no bojo da jarra de regrador, estira os braços diante de fileira de filhos e diz, solene, com o vidro azul flutuando entre as palmas, Pra nós é justo sofrermos pelo que merecemos, mas Ele não fez nada de mal, o Nosso Salvador, e depois para o alto, Lembra-Te de mim quando começares a reinar.
Perto da janela, de frente para o irmão, Annabel sussurra, É Lucas, e Zachary fecha os olhos, devagar, confirmando que, sim, era Lucas. Os dois se lembram da prédica de antes. O merecedor e o imerecido. As razões da falta. No esquecimento de si, um homem caminha com um desconhecido nas costas. Poderia ser o assassino das nossas famílias, não importa. Importa o peso do morto, o esforço, diz o pastor. O céu por cima é o mais importante, e tudo que nos ampare, sempre e pra sempre, do que somos, e, falando assim, tem o rosto aceso, enxerga através das paredes. Os filhos, de costas para a janela, fitam o brilho dos botões costurados com linha carmim na gola do pai, quando, então, ele se empertiga, estira as pernas, abre os olhos ainda mais e vira a jarra de boca para baixo.
As crianças saltam nas pontas dos pés, para longe do anel que o regrador vai fazer, quando se espalhar, lustrando o soalho de pranchões com sua capa fermentada e marrom, indo borrar os sapatos e os pés dos pequenos, que, no pulo, também largam um rumor em coro, dando sinal de seu nojo imenso. Mas o regrador está seco, o giro na jarra é uma peça pregada como lição. E que lição era essa? Mesmo com a surpresa aberta no rosto das crianças, que se abanam, aliviadas, o pastor não acha graça. Clayman é o único que sorri, Annabel aperta o rosto com as mãos, então o pastor apanha sua flauta em cima do banco de couro e começa a bater no menino, que primeiro se baixa e se dobra, depois se deita no chão, com os braços cruzados por cima da cabeça.
Diz ele, A palavra de Jové foi dirigida ao profeta Zacarias. Uma. Filho de Baraquias, filho de Ado, nestes termos. Duas. Eu tive uma visão e nela perguntei, Jové dos Exércitos. Três. Até quando demorarás a ter piedade de Jerusalém. Quatro. E das cidades de Judá? Cinco. Jové respondeu. Seis. Ele respondeu, Proclama assim, Zacarias. Sete. Disse Jové dos Exércitos. Eu tenho um grande ciúme de Jerusalém e de Sião, e ando irritado contra as nações tranquilas. Oito. Porque enquanto estava dormindo elas colaboraram com o mal. Nove. Por isso, Jové falou, eu me volto para Jerusalém com misericórdia. Dez. O cordel será estendido sobre Jerusalém, e proclama ainda, Zacarias. Onze. Que assim disse Jové dos Exércitos, Minhas cidades terão abundância de bens. Doze. Jové consolará Sião, doze. Olhe pra mim. Está me ouvindo, garoto? Ele elegerá novamente Jerusalém. E só então, transpirando e sem fôlego, o pastor se cala. Semanas depois da surra, partiu à frente da banda do Sexto Regimento do Mississippi para a guerra contra os ianques. Quando os músicos se dispersaram, Baldy mudou de instrumento, preferindo o violino, e foi organizar grupos que tocavam nas festas da cidade. Depois da guerra, em 1866, perdeu a pequena fazenda de algodão para o major casaca-azul ao qual o Sexto do Mississippi, cristão e branco, porém batido, foi entregar a bandeira do condado.
Aos olhos de Annabel, o castigo do irmão, lanhado de bruços com um pedaço do antigo instrumento do pai, tinha sido o primeiro sinal da guerra entre o norte e o sul. Uma guerra, aliás, adivinhada, segundo o próprio pastor, num dos sermões do velho William Taylor, Bill antigo, E que Deus o tenha. O bisavô de vocês.

***
De vez em quando, essa manhã com o menino dividido em doze partes volta à cabeça de Annabel, que revê o pastor de pé, fixado nele, em Clayman, falando com os olhos parados no pequeno homem de barro, mexendo apenas as mãos. E ele diz, O regrador secou, a cada boca sua própria sede. O regrador secou porque precisei dele, eu próprio dispus dele pra minha luta, e essa luta é guiar vocês, vocês e os que venham aqui em casa, que é uma só, é a casa Dele, e só então Baldy faz silêncio. Coloca a jarra de volta na mesinha e repete, mais baixo, A cada boca sua própria sede, estão me entendendo? As crianças se entreolham. Annabel, no canto, tenta não parar nos olhos do pai. Aguarda o momento perdido por Zachary, anos atrás. Que ele tomasse sua dose de regrador, no copinho de estanho, e fosse usar o bispote, bastava isso. Apenas isso e todos ficariam livres, poderiam sair de casa, ler, costurar. Ir apanhar as roupas lá fora, ou as frutas que não sejam as verdes.
Mas Zach não fazia sua parte. E, agindo assim, prendia todos de uma só vez, enfileirados de cabeção ou sem as calças, ainda de pijamas, diante da flauta no banco de couro e, rumo a ela, o rosto abotoado do velho pastor.

José Luiz Passos é professor titular de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. É autor de Ruínas de Linhas Puras (Annablume, 1998) – sobre Mário de Andrade – e Romance com pessoas: A imaginação em Machado de Assis (Alfaguara, 2014). Em 2013, O Sonâmbulo Amador (Alfaguara, 2012), seu segundo romance, recebeu o Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura