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Aracy Amaral

foto: Thomaz Marcondes
foto: Thomaz Marcondes

ARACY AMARAL
A crítica e curadora de arte fala do seu universo de pesquisa sobre artistas modernistas e sobre as características das artes visuais hoje

Natural da cidade de São Paulo, a historiadora, crítica e curadora de arte Aracy Amaral, nascida em 1930, dedicou boa parte de sua trajetória às artes visuais. Foi diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre 1975 e 1979, e do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC), de 1982 a 1986. Foi também professora-titular de História da Arte pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Talvez a mais reconhecida prova de seu fascínio pelo mundo das artes seja a publicação do primeiro livro biográfico sobre a artista plástica Tarsila do Amaral, parente indireta de sua família, o Tarsila – Sua Obra e Seu Tempo, lançado em 1975 (Editora 34/Edusp, 3ª edição, 2003): “Eu sabia que Tarsila pertencia a um ramo da família (...). Sabia que tinha uma coisa familiar, e admirava o trabalho dela de longe”, conta a historiadora sobre seu interesse na vida e obra da artista.
Pesquisadora do modernismo brasileiro, publicou outros livros sobre o tema, assim como sobre a arte brasileira contemporânea e sobre o período colonial, como Artes Plásticas na Semana de 22, Blaise Cendrars no Brasil e os Modernistas, e posteriormente sua pesquisa sobre A Hispanidade em São Paulo. Atualmente é co-curadora para um balanço do Programa Rumos, do Instituto Itaú Cultural, tendo sido sua coordenadora entre 2005 e 2006.

Podemos dizer que Tarsila – Sua Obra e Seu Tempo é um livro fundador no modo como apresenta a artista. Como foi o processo de criação desse livro?
Foi um exercício de autodidatismo para mim. Sabia que Tarsila pertencia a um ramo da família, mas não um ramo com que a gente tivesse se dado. Eu sabia que ela era da mesma família. Quer dizer, nós descendemos de um tio de Tarsila. Então, é uma coisa paralela. Havia algo familiar, e eu admirava o trabalho dela de longe, embora quando eu era estudante de jornalismo na Casper Líbero tenha visitado Tarsila em sua casa na rua Caiubi. Era uma rua de terra ainda, sem calçamento. Fui de bonde e depois desci a pé até sua casa, sendo que naquela época ela ainda vivia com o Luiz Martins. Foi quando me mostrou aqueles quadros incríveis que ela tinha. Naquela época ainda possuía o Brancusi, o Delaunay e outros artistas que depois ela vendeu no começo da década de 1950 para morar nesse apartamento em que ela viveu e morreu, na rua Albuquerque Lins.
Mas eu sabia que não tinha nenhum livro sobre ela e me interessava. Havia apenas um opúsculo que o Museu de Arte Moderna publicou, no caso de autoria de Sérgio Milliet, no comecinho da década de 1950, porque o Leon Degand, o primeiro diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo, teve um projeto editorial absolutamente inédito no Brasil. Ele queria publicar monografias sobre artistas brasileiros. Então estavam programados Tarsila, Di Cavalcanti, Lívio Abramo, Lasar Segall. Aliás, saíram três: Di Cavalcanti, Abramo e Tarsila. São os que eu tenho. Só tinha isso, não tinha livro sobre ela, e eu achava que merecia um livro. E me interessei em fazer essa pesquisa.

Não era um trabalho comum, fazer livros contendo a vida e a obra dos artistas?
Não. E é curioso porque no começo da década de 1960 foi quando começou a valorização dos modernistas, e isso impulsionado pelos leilões em prol do Hospital Einstein. Havia leilões para a construção desse hospital no Museu de Arte de São Paulo. Compareciam críticos de arte, que diziam umas palavrinhas sobre o artista, e aí se leiloava. Foi quando se começou a vender Ismael Nery, Di Cavalcanti, Tarsila, Anita… Até então a maioria das obras estava em casa dos artistas porque a grande estrela era o Portinari, era o homem dos painéis, dos murais, o artista oficial do governo Vargas. Então, fiquei com a ideia de fazer um trabalho sobre Tarsila. E comecei a publicar muito no Estadão, nos suplementos. À medida que eu ia fazendo pesquisas, ia publicando coisas lá.
O meu livro sobre o Blaise Cendrars saiu antes do da Tarsila, porque no começo eu ia à casa de Tarsila uma vez por semana, às vezes até duas, e ela tinha um guarda-roupas cheio de papéis, caixas, documentos e fotografias. E comecei a descobrir tantas coisas sobre o Blaise Cendrars que seu livro saiu antes que o de Tarsila. Aliás, tem outro que saiu antes, o Artes Plásticas na Semana de 22, que foi o meu mestrado. Mas eu continuava pesquisando Tarsila. Eu ia lá, conversava com ela, começava a fichar as coisas ano por ano, ia lhe fazendo perguntas conforme os documentos, cartas e fotografias que eu ia encontrando. E imediatamente eu ia para o arquivo do Estadão, para o arquivo dos Diários Associados, para pesquisar o que tinha acontecido naquele ano no mundo, na cidade, entre os artistas, politicamente. Tive que ler toda a literatura da época, claro. Hoje, pela internet, você acha muita coisa. Quando eu conversava com as pessoas, eu ia à casa delas. À medida que eu ia à casa das pessoas entrevistá-las, isso me dava uma entrada depois, nos suplementos literários, pois isso saía como capítulos.
Depois que o meu livro do Blaise Cendrars ficou pronto, imediatamente eu tinha editora, no caso a Livraria Martins Editora. O processo foi assim. Defendi o mestrado e publiquei o livro sobre a Semana. Nessa época eu fazia parte do conselho da Perspectiva e ela me estimulou, com Jacob Guinsburg, com a publicação desse livro e depois com o de Tarsila.

A obra sobre Tarsila também teve origem numa pesquisa acadêmica?
O trabalho sobre Tarsila foi o doutorado, defendido na ECA-USP, uma nova faculdade, em 1971, mas eu não o publiquei logo em seguida. Até rever, até conseguir data na editora Perspectiva, demorou um tempo. Aliás, saiu e ela já tinha falecido. Ela faleceu em janeiro de 1973 e o livro saiu em 1975. Se bem que ela teria ficado triste em ver que eu tinha incluído sua data de nascimento, posto que ela não queria que soubessem a data de nascimento dela. E ela nunca me disse! Pedro Alexandrino já dizia: “Artista não tem idade”. Bem, eu respeitava, mas tinha suspeitas de que ela não tinha nascido naquela data que todo mundo publicava, em 1890. E fui pesquisar, mas não contei para ela. Achei no Colégio Sion, no registro de alunos.

De que ano que ela era, na verdade?
1886. Tirou quatro anos, uma bobagem! É porque o Oswald de Andrade era de 1890. Mas depois você vê que ela nem ligava, pois viveu com o Luiz Martins, que era 20 anos mais novo que ela, com quem viveu outros 20 anos. Todo mundo se refere à Pagu como libertária, mas Tarsila também era. Ela foi casada com o primo, André Teixeira, de quem depois se separa. Aí se casou com Oswald, depois vive com Osório César e depois com Luiz Martins. Então ela era uma mulher bem “arejada” para a época, podemos dizer.

Nesse universo de Modernismo, o Blaise Cendrars é um artista capital para o pensamento plástico e intelectual brasileiro. Baseado no seu livro, quando ele chama a atenção do grupo em Minas Gerais, por exemplo, para o telhado, quebra um pouco a tradição europeia, não?
Sem dúvida. Tanto que Tarsila, depois, perguntava a Blaise Cendrars: “O que você acha que devo expor em Paris?”. Ele falou: “A partir do Morro da favela”. Eu fico pensando até hoje, 40 anos depois de ter terminado o trabalho, que ele deu uma diretriz a ela de “pense o Brasil, tal como nós na França gostamos de pensar, o Brasil colorful”. Era um olhar estrangeiro e ela, de certa forma, seguiu essa diretriz dele. Aliás, a melhor fase dela considero que é a Pau-Brasil. É uma coisa mágica, mas é estranha. Todos aqueles quadros do fim da década de 20. É a melhor fase.

Como você qualificaria o Cendrars nesse universo intelectual brasileiro? É um aventureiro ou um poeta maluco?
Ele chama a atenção dos brasileiros para o Brasil, o encanto está aqui. Não precisa ir lá fora procurar. Se bem que Tarsila nunca foi uma cubista radical. Nesse aspecto, Rêgo Monteiro foi muito mais radical que ela. E o Ismael Nery foi muito mais surrealizante do que ela, por influência de Chagall, que ele procurou em Paris. Há uma ligação. Você vê um artista e procura saber quais são as referências para a geração dele, as influências formativas. Agora nesse balanço de Rumos que está se organizando, que é uma revisão dos Rumos de 1999 a 2012, eu vejo as referências. O pessoal jovem do Rio de Janeiro se interessa pelo neoconcretismo. O Ernesto Neto é uma espécie de cria da Lygia Clark. Você vê as ascendências. Por exemplo, Tarsila, se eu dissesse assim: “sua influência é Léger”, ela diria “não, eu o frequentei muito pouco”. Mas é claro que nas obras dela de 1923, Léger está bem claro. Hoje, as referências internacionais dos artistas jovens estão na internet, eles não precisam nem viajar. 

Hoje há uma corrente que acredita que 1922 é mais um fenômeno paulista do que um fenômeno brasileiro. O que você pensa sobre isso?
Essa é uma visão carioca. Esse provincianismo entre Rio e São Paulo existe desde sempre. É uma cidade poderosa versus uma cidade oficial, que é poderosa por ser o centro da nação. Se bem que a Bahia ou Pernambuco também podem pleitear isso. Eu acho que foi o começo de uma tentativa de renovação, porque, na verdade, o artista modernista que teve mais vínculo com o cubismo foi o Rêgo Monteiro, sem nenhuma dúvida. Mesmo que ele tivesse passado depois por um período de queda de produção, que todos passaram. Talvez o que se sustenta mais desse grupo seja Di Cavalcanti, até a década de 1940, e depois também tem a queda, do ponto de vista de produção.

A Tarsila e a Anita também tiveram um período curto de fôlego de produção. O que você acha que levou a isso?
A Anita, sobretudo. No caso dela, foi uma incompreensão do meio. Lembro-me de quando visitei a irmã dela, a Georgina Malfatti – quando estava fazendo minha pesquisa a Anita já tinha morrido –, entrei na casa dela e vi aquele quadro que eu acho maravilhoso, chamado O Farol, que está hoje com o Gilberto Chateaubriand. Fiquei parada olhando para o quadro, assombrada, que eu conhecia de reprodução, mas não ao vivo. E a irmã dela falou: “Você está gostando desse quadro?”. Eu falei: “Estou”. Ela: “De verdade? Acha bom mesmo?”. E eu disse: “Eu acho muito bom”. Quer dizer que a família dela, até a década de 1960, ainda não reconhecia as coisas dela do melhor período como excelentes. Então, veja, não era só um Monteiro Lobato, era uma questão de incompreensão familiar. Tanto que depois ela começa a fazer coisas de inspiração religiosa, umas paisagens, meio piegas. E Tarsila passa por um período, depois do período de realismo social, de obscuridade, em que ela é cronista e deixa de fazer coisas interessantes.
O único modernista que é exacerbadamente rebelde, nos anos 1930, 40 e 50, é o Flávio de Carvalho. Este mantém a bandeira da rebeldia. Acho que o meio não estimulava. A Semana de 1922 foi importante porque desencadeou um processo de falar em voz alta coisas que se estava começando a experimentar, que é o caso da poesia, da literatura. E com muito atraso em relação à Argentina e ao Uruguai, que possuiu, este, três gigantes do modernismo como Torres Garcia, Figari e Barradas.

Dá para fazer um paralelo entre o modernismo argentino e o brasileiro?
Eles são muito mais europeizados. Inclusive os argentinos, quando vão para Nova York, na década de 1960 e 70, eles vão e ficam. Vão para Paris e ficam. Os brasileiros vão e voltam. O Piza é um que vai e fica. E o Antônio Dias, mas aí já é um fenômeno da década de 1960, vai e fica em Milão, depois vai para a Alemanha. São artistas já de outra geração. Em geral, os artistas brasileiros vão e voltam. 

O seu livro Arte para quê? faz um inventário do engajamento político na arte brasileira. O que ficou dessa arte nos dias atuais?
Não é muita coisa, mas acho que fiz um resumo dessa contribuição numa exposição que fiz em 2003 no Itaú Cultural. Chamava-se Arte e Sociedade, uma Relação Polêmica. Eu trouxe só o melhor que surgiu na época, o Antonio Dias, o Rubens Gerchman, o Marcello Nitsche, que ainda não mereceu uma visão de sua trajetória. Mas agora estão se fazendo outros levantamentos.

O que há de marcante nesses artistas?
O Antonio Dias não abre mão do conceitualismo dele, naquela altura ele já era conceitual. Ele pinça, faz alusões ao que se passava na época da ditadura, do regime de exceção. Mas não é o realismo socialista. Este está na Renina [Katz] da época, até 1956 mais ou menos, no Mário Gruber, no pessoal do Clube de Gravura do Rio Grande do Sul. Foram os que se insurgiram contra as bienais de São Paulo. Há na época uma grande discussão até, porque eles diziam que a Bienal de São Paulo traria o internacionalismo e, na verdade, a bienal trouxe o internacionalismo, mas foi bom para quebrar um pouco a hegemonia desse grupo de esquerda radical e ampliar a informação entre os artistas.

Mas o grupo dos anos 1960 é de internacionalistas, não é?
Aí já são, porque depois da invasão da Hungria, em 1956, da Primavera de Praga, há uma ruptura. Eles todos rompem e param de ser realistas socialistas aqui no Brasil. Não o pessoal do Rio Grande do Sul, mas aqui em São Paulo, sim. O [Carlos] Scliar vai fazer umas naturezas mortas… a Renina também passa para a abstração. Então muda a “paisagem”. Eles viram a página. E esses artistas que são jovens no fim da década de 60, começo da de 70, estou falando do Gerchman, Antonio Henrique, Antonio Dias, Marcello Nitsche, o Hélio Oiticica. É uma outra geração, uma outra gente, Ana Maria Maiolino, Ana Bella Geiger, são outros que surgem.

O Hélio Oiticica parece encarnar algo do Cendrars quando retrata a periferia, as favelas. Você concorda?
Não sei, porque o Cendrars era europeu, o Hélio não. O Antonio Dias é apolíneo e o Hélio é completamente dionisíaco. Eu vejo esse lado muito mais forte. E o apolíneo do Antonio Dias, para mim, carrega mais o dado político do que o Hélio, se bem que o Hélio também é político através desse lado dionisíaco dele. E ele tinha uma ligação forte com o Haroldo de Campos.

Depois de escrever os primeiros livros, você se aproxima da universidade e também coloca “a mão na massa”, fazendo curadorias e dirigindo instituições. A partir desse momento você amplia a sua ação...
Quando eu faço o doutorado e a ECA me chama, eu vou dar aula lá. Mas aí quando sou convidada para dirigir a Pinacoteca, achei excelente, porque eu disse: “quero fazer um negócio de antes e depois”, no sentido de poder mexer na instituição. Foi como um desafio. Era um museu parado, acadêmico, e eu quis transformá-lo e o transformei. Achei isso incrível. Me senti muito realizada, tanto que fiquei esgotada, depois de quatro anos saí, e então já estava fazendo a pesquisa sobre a preocupação social na arte brasileira.
Eu tinha ficado de tal modo envolvida com o modernismo, que todo mundo me convidava para dar palestras sobre o modernismo, dar entrevista sobre o modernismo, quando me senti com ímpeto e fiz uma pesquisa totalmente diferente, sobre a influência hispânica na arte colonial paulista.

Qual a motivação de seu lado de curadora, de diretora de instituições?
Essas coisas acontecem na vida. É como você perguntar “Por que você não casou de novo?”. Eu não sei. A vida vai levando a gente.

O que você acha sobre o curador de hoje?
É uma consequência do mercado. Antigamente, quando a gente ia fazer uma exposição, a gente ia ao ateliê do artista e conversava com ele, escolhia as obras. Hoje você vê, muitas vezes, o artista preparando as obras. Você não vai lá para selecionar, ele já tem a obra para aquela exposição. Sou de uma geração tão outra que vou à casa de um artista e posso dizer a ele: “Estou me interessando por esse período da sua obra”. Talvez esse diálogo que tenho não seja possível para o curador que tem 30 anos.

“[Tarsila] não ficou sabendo que descobri a data correta de seu nascimento... talvez essa indiscrição a tivesse deixado aborrecida”

“Todo mundo fala que ¿Pagu era a libertária,
mas Tarsila também o era”

“A Semana de 1922 foi importante porque desencadeou um processo de falar em voz alta coisas que se estava começando a experimentar”

“Sou de uma geração tão outra que vou à casa de um artista e posso dizer a ele: ‘Estou me interessando por esse período da sua obra’. Talvez esse diálogo que tenho não seja possível para o curador que tem 30 anos”