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Entre a arte e a política

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Momentos de afirmação e reafirmação de valores e expectativas, tal qual o que estamos vivendo, impulsionados pelos atuais conflitos políticos e sociais, costumam ampliar reflexões sobre as diferenças entre “arte política“ e “arte e política”. Em poucas palavras, podemos dizer que a primeira coloca o artista como sujeito de uma ação engajada, que busca produzir efeitos nas estruturas de poder vigentes, e que a segunda é parte de um esforço de reflexão sobre duas realidades próprias – a arte e a política, cujo entrecruzamento pode engendrar inúmeras possibilidades estéticas e sociais.


A política pensada como cotidiano, como fundamental e fundante, traz significados que não a reduzem aos velhos e repetitivos roteiros político-partidários que evidenciam ainda mais a crise das representações. Ela salienta o protagonismo de sujeitos que escrevem e reescrevem suas próprias histórias. Nas movimentadas semanas de junho passado, com manifestações populares em diversas capitais e cidades brasileiras, pensamentos sobre como a arte pode e deve agir por seus poderes intrínsecos foram estimulados, mostrando que a potência política da arte se revela não só quando seu tema é político, mas também quando adota atitudes políticas de transformar ideias, emergindo como expressão de liberdade e criatividade cidadã. 


A proeminência de coletivos e movimentos artísticos, tem mostrado diferentes formas de mobilização e participação nos espaços das cidades. Ao estimular deslocamentos, trajetórias, encontros e trocas de referências, buscam aproximar fazer artístico, experiência estética e política. Neste contexto, parece pertinente mencionar pequenos exemplos de “movimento-ação” em São Paulo, como os grafiteiros que teimam em colorir com sua arte a cidade que insiste em ser cinza, ou o hip-hop que, há cerca de 30 anos, levava da periferia para o centro da cidade uma provocação estética dos cabelos, do jeito de se vestir, do jeito de dançar e cantar. Inspirada no movimento negro dos Estados Unidos, as palavras e as batidas eram verdadeiros tiroteios para os ouvidos gritando “pânico na zona sul”, ou “a número 1 em baixa renda da cidade, comunidade zona sul é dignidade”, dos Racionais MCs.


Nesta mesma linha, na literatura, o Sarau da Cooperifa que existe há 12 anos, inspirado no uso das palavras como sobrevivência - “ler e escrever para não enlouquecer”, não desloca para o centro da cidade, mas transforma em centro seu espaço, seu lugar: o bar do Zé Batidão também na zona sul da cidade, que inspirou e inspira muitos outros saraus no Brasil. 


Por fim, em uma cidade apelidada de “túmulo do samba” como São Paulo, um coletivo chamado Samba da Vela reúne semanalmente, há 17 anos na zona sul da cidade, compositores que falam de seu bairro e de seu cotidiano com canções como “Santo Amaro, caminho de lua cheia...” ou “ai que vontade de ser pobre um dia, porque ser todo dia está complicado”.  Esse movimento motivou o surgimento de sambas na feira, na laje, no cafofo, no sobrado, em São Mateus, entre outros tantos que se espalham e ocupam de formas diferentes a cidade. 


As situações aqui apresentadas passam por territorialidades e noções de pertencimento, mostrando relações entre arte-política-cidade. Não são exemplos de militância representativa, mas de ações de experiência entre arte e política conectadas quase como parte de uma mesma moeda. Ambas coexistem na experiência das pessoas, porque existe o universo de construção subjetiva do sentido dessa experiência, frequentemente ancorada muito mais no plano do sensível que nas palavras de ordem política.


Considerar o universo da arte por si mesmo, independentemente da natureza declaradamente política de seus conteúdos, como algo que, a seu modo, também faz parte da política por mobilizar sensações, memórias, emoções e reflexões, traduz uma experiência sensorial que desperta as pessoas pelo plano da vontade, do questionamento, da curiosidade, e abre espaços, entre a arte e a política, para uma rede de significados, provocações e desejos de outros horizontes.


Kelly Adriano de Oliveira, doutora em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social, é assistente técnica para a área de música da Gerência de Ação Cultural do Sesc.