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Música como missão

Unidos pela música, Coltrane e seu instrumento de expressão, o sax
Unidos pela música, Coltrane e seu instrumento de expressão, o sax




Com a cabeça na criação de um vocabulário próprio e a alma na espiritualidade, John Coltrane mudou a face do jazz e de outros gêneros



O ano de 1926 reservou uma coincidência que diz muito para os rumos da música, sobretudo o jazz. Trata-se de dois nascimentos especiais, que iriam imprimir sua marca como grandes criadores: o de Miles Davis, em 26 de maio, e o de John Coltrane, em 23 de setembro. A biografia dos músicos iria se entrelaçar, nos anos 1950, quando Coltrane tocou no grupo de Miles e participou da gravação do influente Kind of Blue (1959), disco que não escapa aos ouvidos dos amantes do jazz. Mas Coltrane também esculpiu em melodia sua obra-prima: A Love Supreme (1964), que repercutiu e influenciou com intensidade outros gêneros musicais, do rock ao rap.


O autor de tal façanha nasceu na pequena Hamlet, cidade na Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Logo se mudou com os pais para uma região maior, chamada High Point. O jovem Coltrane vivia modestamente com o pai alfaiate e a mãe exercendo a dupla função de costureira e empregada doméstica. No ambiente simples não faltava, no entanto, espaço para a música. A mãe cantava e tocava piano, enquanto o pai experimentava diferentes instrumentos de cordas.


De acordo com o livro A Love Supreme – A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane  (Editora Barracuda, 2007), escrito pelo jornalista norte-americano Ashley Kahn, o despertar musical de Coltrane se fez em meio a um cotidiano religioso, já que era descendente de uma família de pastores, tendo a mais forte lembrança vinda de seu avô materno, o reverendo William Blair. Em depoimento registrado no livro, o músico afirma: “Na minha infância, íamos à igreja todo domingo. Estávamos sob a influência do meu avô, que dominava a família. Era muito culto, politicamente ativo, militante. Cresci com isso e acho que apenas aceitei”.



Messias musical



Dos hinos da igreja misturados ao som dos músicos de rua, das orquestras e das canções populares com toques jazzísticos que tocavam no rádio, o instrumentista foi caminhando em ritmo acelerado ao inevitável. Em 1939, tocou clarinete na banda da escola. Contudo, trocou-o pelo saxofone, inspirado nas composições da era do swing como Tuxedo Junction, de Glenn Miller, e nos instrumentistas Lester Young e Count Basie. Em contrapartida, o fazer artístico se deu em meio a um cenário emocional tempestuoso. Aos 13 anos os avós maternos e o pai faleceram. Em biografia escrita pelo norte-americano Lewis Porter (John Coltrane: His Life and Music, Michigan Editora, 2000), lemos: “De certa forma, a música virou substituta de seu pai”. Imerso por questionamentos sobre religião, família e música, Coltrane foi construindo a filosofia pessoal que viria a transpirar em sua virtuosa improvisação. Para o jornalista e crítico musical Carlos Calado, autor do livro O Jazz Como Espetáculo (Perspectiva, 2007), seus improvisos eram diferentes dos solos de outros músicos do jazz dos anos 1950. “Ele tinha um vocabulário próprio, improvisava de maneira única. Não gravou nada descartável, nada com a intenção de ganhar dinheiro. Especialmente em seus últimos anos de vida, parecia encarar a música como uma missão sagrada. Foi praticamente um messias musical. Há até uma igreja, na Califórnia, que o idolatra como um deus, a Saint John Coltrane Church”, conta Calado.



Próspera Filadélfia



Após concluir o segundo grau, Coltrane partiu rumo à Filadélfia, onde sua mãe já vivia em busca de melhores oportunidades. A Segunda Guerra Mundial estava chegando ao fim e mostrava novos estímulos ao jovem, que partiu para a profissionalização musical, junto a uma espécie de irmandade de jazzistas, que de 1946 a 1955 passou a ser sua família. As experiências foram muitas, tanto pessoais quanto profissionais, boas e más. Durante o período em que tocava com Dizzy Gillespie, de 1949 a 1951, Coltrane caiu no vício nas drogas, em particular a heroína, que quase botou um ponto-final em sua trajetória. “Infelizmente, um dos fatos que marcaram sua vida pessoal foi a dependência em heroína, que tornou sua carreira um tanto irregular”, comenta Helton Ribeiro, jornalista e editor da revista Blues ‘n’ Jazz. “Mas sua espiritualidade também pode ser destacada por ter influenciado o melhor de sua obra”, completa. Em 1957, sozinho e com sua força de vontade, libertou-se do vício.



O auge



Entre 1955 e 1960, Coltrane fez parte do conjunto de Miles Davis. Após a conturbada fase com Davis se encerrar (veja boxe Dentro do compasso), Coltrane inicia uma empreitada com seu próprio conjunto. Daí surge a vontade de se firmar como músico e traçar um destino autoral, exemplificado por A Love Supreme. “Nesse disco colocou a técnica inovadora e impecável a serviço de composições de grande força expressiva e emocional, movidas por sua espiritualidade e a pesquisa da música indiana”, contextualiza Ribeiro.


Para Calado, os últimos anos de vida e obra de Coltrane – que morreu prematuramente, aos 40 anos, devido a um câncer no fígado – costumam ser encarados pelos fãs de forma maniqueísta: com paixão ou com ódio. “Nessa fase, rotulada de free pela crítica, Coltrane passou a tocar de maneira mais intensa ainda, com fúria e angústia, em solos bastante extensos, que soavam quase como rituais de autoflagelação”, afirma. “Há quem diga que sua saúde piorou pela maneira tão intensa de tocar.” Segundo o jornalista, a integridade artística de Coltrane é algo cada vez mais raro. “Especialmente em uma época como a nossa, em que o consumo excessivo, o narcisismo e a futilidade parecem contaminar as relações humanas. Sinais dos tempos ou não, se ainda estivesse vivo, provavelmente, Coltrane não estaria no Facebook”, ironiza.

 

Dentro do compasso


Composições, parceiros e momentos marcantes. Faça uma viagem pelo universo pessoal e profissional do saxofonista


ÁLBUNS
My Favorite Things: Grande registro sonoro lançado em 1961, o disco foi gravado em menos de três dias por Coltrane e seus companheiros: McCoy Tyner (piano), Steve Davis (baixo) e Elvin Jones (bateria).

A Love Supreme: Disco lançado em 1965 e “dedicado ao ser supremo”, é considerado um dos mais importantes do jazz. Destilou o tema de amor universal e consciência espiritual daquela década, composto por uma suíte em quatro partes gravada com o pianista McCoy Tyner, o contrabaixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones.


PARCEIROS
Miles Davis: Nos anos 1950, Coltrane fez parte do Miles Davis Quintet. Em 1956, Davis explodiu em um show no café Bohemia de Nova York, repreendendo Coltrane por sua aparência desleixada e atrasos, com um tapa na cabeça e um soco no estômago. Presenciando a discussão unilateral, Thelonious Monk instigou o saxofonista a pedir demissão e se juntar a sua banda.

Thelonious Monk: O pianista estendeu a mão a Coltrane e a concretização da amizade se fez por meio do álbum Thelonious Monk whit John Coltrane, gravado no ano de 1957, mas lançado anos depois, em1961.

MOMENTO MARCANTE
Em vez do vício, o jazz: Após o episódio com Davis, o saxofonista fez uma escolha que mudaria sua vida. Parou com a bebida e com todo o resto, substituindo a heroína pelo jazz, livrando-se do seu vício, acordo explicitado no texto da contracapa do disco A Love Supreme

Fonte: Livro A Love Supreme – A Criação
do Álbum Clássico de John Coltrane


Diversidade sonora


Terceira edição do Festival Jazz na Fábrica ¿confirma a presença da diversidade de estilos e encontros de talentos das diferentes gerações

 

Já integrado ao calendário de eventos culturais da cidade de São Paulo, o Festival Jazz na Fábrica repete o sucesso das edições anteriores, trazendo para o Sesc Pompeia um dos gêneros reconhecidos por sua excelência musical e relevância histórica.
A abertura do evento foi no dia 4 de agosto, com a elegante apresentação do pianista norte-americano, McCoy Tyner (foto), parceiro do aclamado John Coltrane. E esse foi só o começo. Ao longo do mês, expoentes do gênero fizeram shows concorridos, com ingressos esgotados. Entre os principais nomes, as cantoras Cassandra Wilson e Macy Gray; o saxofonista libanês Ibrahim Maslouf; o baixista chileno Christian Galvez; e o pianista porto-riquenho Edsel Gomes.


Para o técnico de programação da unidade, Thiago Freire, a curadoria do festival procura formular uma proposta de programação que se paute pela diversidade intrínseca ao jazz e que seja reverente aos impactos de sua produção. “A edição de 2013 foi marcante pelo fato de estarmos percebendo a cristalização do festival. É uma alegria notar que shows belíssimos de artistas que não têm uma imensa projeção midiática estejam atraindo a atenção das pessoas e contribuindo para a formação de público”, explica. “Exemplos disso foram os shows da cantora angolana Afrikhanitta, no dia 2, e do flautista e saxofonista Álvaro Montenegro, em companhia do pianista brasileiro Benjamin Taubkin, no dia 10, ambos com ingressos esgotados.”