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Poesia caseira
por Maria Lúcia Dal Farra
POESIA CASEIRA
1
Quadro de infância
A abelha embevecida
há um quarto de hora
rodeia a travessa da torta já pronta.
Do fogo
a madeira em estalidos
reclama
seu pacto com a terra.
Daqui a pouco sai o almoço.
— Nona,
pergunta se eu quero bife?
2
À mesa
Nem um
nem dois —
quero feijão com arroz.
Na mistura
bota um pouco de amor.
Azeite?
Só na salada e
no gozo da gente.
3
Cadeira de balanço
Por que se balança, menina,
se a cadeira não é sua?
Pra se fazer de pequena
(como no colo da mãe)
rouba a poltrona do pai?
Cadê o embalo antigo
que só ela sabe dar?
Vai que vai, vem que vem,
que balanço que ela tem!
Presta atenção no que digo:
não vai ter isso de novo
nem de pai e nem de mãe.
Vai que vai, vem que vem
— esse gingado gostoso
só nos braços do seu bem.
4
Promessa
As traves da nossa casa serão de cedro,
de aroeira a armação dos tetos.
Conforta-me com flores
fortalece-me com frutos.
Senta-te à mesa
que contigo tudo partilho.
5
Reza verde
Samambaia da saia larga e godê:
arma tuas rendas pra me proteger!
Sob o arrimo da tua cinta
não temo climas nem mau olhado,
e o vento, que enrodilha teu cabelo,
também põe verde no meu penteado.
Se é mais longo um ramo teu
e o outro mais encurtado
é que da vida as linhas
(compridas ou interditas)
são tal e qual desiguais
quanto as sinas femininas.
Se saio da tua roda
e te espio cá de fora
aprendo a ciência da fibra
que (embora) em esporas tecida
só de modéstia se investe:
desliza e verga —
se torce pra não finar.
6
Desquite
A água da pia tudo escoou.
Onde o íntimo sabor
daquele bolo de noivado?
Apenas os talheres tagarelam
na gaveta fechada.
7
Abertura
Entre caibros e telhas
a trepadeira ganha a sua fenda
e pende sobre o alpendre
entregue finamente ao ar.
Minha vida dá flores.
Maria Lúcia Dal Farra é prosadora e poeta, autora, entre outros, de Inquilina do Intervalo (Iluminuras, 2005) e Alumbramentos (Iluminuras, 2011), pelo qual ganhou o Prêmio Jabuti em 2012