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Transplantes, à espera de doadores

por Lúcia Nascimento

O transplante está na lista dos procedimentos mais complexos e interessantes da medicina. Quando os métodos tradicionais para a cura se esgotam, surge a alternativa de substituir o órgão defeituoso por outro, retirado de um doador. Mais de 60 cirurgias desse tipo são feitas diariamente no Brasil – um aumento de 10% entre 2010 e 2011.

Pode parecer uma quantidade significativa, mas é um número ainda insuficiente para eliminar uma longa fila de espera. O total de doadores é muito menor que a necessidade de órgãos para transplante. Em 2011, a média dos que se declararam voluntários para doação não passou de 11 por 1 milhão de habitantes, o que equivale a aproximadamente 2 mil doações anuais. Mesmo considerando que uma única pessoa pode oferecer coração, pulmões, rins, fígado, pâncreas, córneas, pele, ossos e válvulas cardíacas, a fila de espera continua imensa, hoje em torno de 60 mil pessoas.

Tendo isso em vista, o Ministério da Saúde lançou uma campanha, no final do ano passado, com a meta de chegar a 15 doadores por milhão de habitantes até 2015. “É possível alcançar essa expectativa; afinal, o crescimento do número de doadores falecidos vem acontecendo progressivamente nos últimos anos”, afirma Ben-Hur Ferraz Neto, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) e chefe do Programa de Transplante de Fígado do Hospital Israelita Albert Einstein. “Existe, entretanto, a necessidade de mais investimentos na profissionalização do sistema – desde o trabalho de disponibilização das informações relativas à doação, à morte encefálica e aos cuidados com o doador, até a realização da entrevista com a família.”

Segundo o cirurgião, um dos maiores nomes do transplante de fígado no país, o trabalho precisa envolver tanto a população leiga quanto os profissionais da área da saúde. “Além disso, os coordenadores intra-hospitalares de transplantes precisam ser submetidos a treinamentos específicos e aprofundados”, diz. O objetivo é criar uma rede bem estruturada de captação e doação de órgãos, com um sistema de comunicação que permita o aviso imediato de que ocorreu uma morte cerebral em determinado hospital.

Exemplo paulista

Por enquanto, São Paulo tem dado mostras de que isso é possível. Nesse estado, a média de doadores de órgãos está muito acima do restante do país, chegando a 20 por milhão de habitantes. E, em algumas regiões da capital, esse número sobe para 60, seis vezes a média nacional. A explicação para isso, de acordo com Paulo Celso Bosco Massarollo, chefe do Serviço de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, baseia-se em dois pilares. “O primeiro é que na capital paulista funciona bem um modelo de organização que tem a responsabilidade de promover a captação na cidade”, diz. Trata-se de uma estrutura conhecida como Organização de Procura de Órgãos (OPO), mantida por entidades como a Santa Casa e a Universidade de São Paulo. São quatro equipes na cidade, que se concentram em uma área habitada por cerca de 4 milhões de pessoas, realizando um trabalho permanente com os hospitais – o que resulta em melhores condições de trabalho e maior captação de órgãos.

“As equipes da OPO, ao receberem a notificação de uma possível morte cerebral, dirigem-se ao hospital para conhecer o provável doador. É essa mesma equipe que vai entrar em contato com a família e, no caso de uma doação, responder por todo o processo”, explica Patricia Maria Pereira de Albuquerque, coordenadora clínica da Unidade de Transplante de Órgãos do Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp). Em outros estados, todas essas etapas ficam a cargo das secretarias de saúde, que muitas vezes não têm estrutura para fazer o trabalho completo. Segundo Patricia de Albuquerque, mesmo em São Paulo a secretaria de saúde não seria capaz de atender todo o estado. Com a capital servida pelo OPO, a secretaria praticamente restringe sua atuação a cidades do interior.

O segundo pilar se relaciona à qualidade dos hospitais nessa área do país. Em geral, são centros hospitalares mais modernos, administrados por organizações sociais não lucrativas, bem aparelhados e gerenciados, e com qualidade de atendimento muito superior à que se via no serviço público do passado. De acordo com Massarollo, esse conjunto de fatores é decisivo na hora da doação. Quando o paciente é bem tratado, caso ocorra a morte a família tende a aceitar melhor o pedido de doação de órgãos, o que é mais difícil quando o atendimento é precário. Sem contar que, em hospitais bem estruturados, os médicos estão mais atentos a notificar casos de morte encefálica, com o objetivo de não desperdiçar oportunidades de doação. O primeiro passo para diagnosticar a morte encefálica são os exames clínicos, feitos por dois médicos em momentos distintos. Depois, vem o exame complementar, que pode ser um doppler de carótidas ou um cateterismo cerebral, por exemplo. Caso esse exame demonstre que não há fluxo de sangue no cérebro, a morte encefálica é declarada.

No Brasil

O exemplo paulista tem sérias dificuldades para ser implantado no resto do país, principalmente porque em muitos casos o próprio atendimento médico é precário, o que impossibilita a eficiência nos procedimentos de transplante. Preocupado com isso, o governo federal estabeleceu uma meta mínima para cada região. “É a forma de forçar cada estado a pensar sobre sua política de transplantes e colocar o assunto na agenda”, afirma Patricia. Mesmo assim, o Brasil tem hoje o maior programa público de transplantes do mundo, com cerca de 95% das cirurgias desse tipo pagas pelo governo. Sem um grande empenho para equiparar as regiões, contudo, o país fica longe de se tornar referência na área. “É importante que cada estado invista numa política de doação de órgãos e de transplantes”, ressalta Ben-Hur.

Não é o que acontece. E há exemplos lamentáveis. Em estados como Rio de Janeiro e Bahia, que possuem bons recursos hospitalares, equipes de transplante e grande contingente populacional, acontecem poucas cirurgias desse tipo. “No Rio de Janeiro, o pilar que precisa ser aperfeiçoado provavelmente é o da qualidade dos hospitais públicos”, afirma Massarollo. Outros estados, nas regiões centro-oeste e norte, praticamente não realizam transplantes. Neles a dificuldade é maior, pois precisam começar do zero, já que não há estrutura hospitalar montada nem equipes especializadas. Sem contar que, por ficarem distantes dos polos tecnológicos do país, a captação fica praticamente limitada à própria região.

As dificuldades, no entanto, podem ser superadas, como vem ocorrendo, por exemplo, em Belém. A cidade ainda não faz transplante de fígado, mas já tem atividade de captação desse órgão, que em grande parte é enviado para São Paulo. E está se capacitando tecnicamente para fazer o procedimento por lá mesmo.

“Não podemos esquecer que 64% da população brasileira já é favorável à doação, como mostrou uma pesquisa encomendada pela Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (Adote)”, afirma Francisco Neto de Assis, presidente da entidade. Segundo ele, um ponto que precisa ser aprimorado é a notificação dos casos de morte encefálica. Esse seria o caminho mais rápido para ampliar o total de doadores. “Qualquer melhora aumentaria imediatamente o número de doações”, afirma João Eduardo Nicoluzzi, chefe da equipe de Transplantes do Hospital Angelina Caron, na região metropolitana de Curitiba. Com 11 anos de história de transplantes, o hospital se destaca por ter realizado o primeiro de pâncreas do estado e por ter feito, no ano passado, o primeiro de fígado com duplo doador do Brasil.

Na Espanha

Em nações mais avançadas, a integração nos serviços de transplante é um fato. Estados Unidos, Espanha e França têm sistemas de procura de órgãos muito parecidos com o brasileiro. “Nesses países, porém, eles são integrados e funcionam como um todo, sem as diferenças entre estados que acontecem aqui”, ressalta João Nicoluzzi. Os espanhóis estão entre os maiores doadores de órgãos, em números relativos. O sistema público de saúde é bem avaliado e a população, convicta da importância social da doação, orgulha-se dos índices de captação. Com estrutura eficiente e portas abertas para a inovação, as cirurgias têm bons resultados. Um detalhe: na Espanha, não existe a restrição de morte encefálica – quem sofre parada cardíaca e falece por esse motivo também pode doar. Para isso, existe uma logística muito bem elaborada. “Se o resgate é chamado para atender uma pessoa com parada cardíaca, a primeira manobra da equipe médica é tentar ressuscitá-la, como ocorreria em qualquer lugar do mundo. A diferença é que, caso a pessoa morra, as manobras não param.” Ou seja, a respiração boca a boca e a pressão no peito continuam sendo realizadas mesmo após a equipe médica saber que o coração não voltará a bater. O objetivo é manter o sangue em circulação, oxigenando os órgãos e conservando-os vivos. As manobras permitem preservá-los até que se decida – ou não – pela doação. Lá, essa decisão, como no Brasil, cabe à família.

Prevenir, o melhor remédio

As iniciativas para aumentar a doação e a captação de órgãos não seriam tão urgentes se as medidas de prevenção fossem aprimoradas. Em parte, a medicina tem feito seu papel. As vacinas, por exemplo, são um fator importantíssimo. A hepatite B, no passado, era um indicador frequente de transplante de fígado. Desde a década de 1980, porém, quando surgiram as vacinas para esse mal e grande parte da população foi imunizada, sua incidência diminuiu bastante. A par disso, novos remédios foram desenvolvidos. “Hoje é possível controlar tão bem a doença que poucos pacientes com esse quadro precisam de transplante de fígado. Cerca de 10% apenas dos que acontecem, atualmente, se devem à hepatite B. No passado eram muito mais frequentes”, diz Paulo Massarollo.

Segundo os especialistas, a população, entretanto, ainda deixa a desejar quando se trata de reduzir as filas por um transplante. Poucos sabem, ou conseguem, cuidar de si, equilibrar a alimentação e praticar atividades físicas, atitudes que qualquer pessoa pode adotar para manter a saúde e o bom funcionamento de seus órgãos. “Muitos transplantes de rins poderiam ser evitados se as pessoas soubessem que devem ter mais cuidado com a alimentação e prevenir doenças como o diabetes e a hipertensão”, afirma Patricia. O excesso de sódio, de açúcar e de gorduras sobrecarrega a função de alguns órgãos, que, com o passar do tempo, podem perder por completo seu potencial.

No caso do fígado, há duas causas principais para o transplante, ambas evitáveis com mudança de atitudes. A primeira é o consumo excessivo de álcool, e por pessoas cada vez mais jovens. “Esse hábito pode criar uma geração de futuros dependentes, que, se começarem a beber muito cedo, terão mais chances de sofrer consequências, entre elas a cirrose, que leva à necessidade de transplante”, explica Massarollo. A segunda é uma doença que é cada vez mais comum nos dias de hoje: a esteato-hepatite não alcoólica. Ela já responde por 10% das indicações de transplante de fígado nos Estados Unidos e, por aqui, chega a quase 20%. “É uma doença diretamente relacionada à obesidade e ao diabetes. Por isso, está crescendo à medida que a incidência de sobrepeso na população também aumenta”, afirma Massarollo. Paralelamente aos investimentos para ampliar o número de doadores de órgãos, o estímulo à adoção de hábitos de alimentação mais saudáveis e da prática regular de exercícios físicos seria assim um reforço decisivo para diminuir as filas de espera por um transplante.


Futuro tecnológico

Uma das dificuldades para a realização de um transplante consiste em manter o órgão sadio desde a retirada do corpo até que seja colocado em outra pessoa. O que se faz hoje é deixá-lo em temperatura baixa, entre zero e 8 graus Celsius. Isso reduz seu metabolismo e o preserva por algumas horas. O coração, por exemplo, resiste cerca de sete horas nessas condições. O fígado pode ser conservado por até cerca de 12 horas. No futuro, porém, isso deve mudar. “A medicina está cada vez mais perto de conseguir preservar os órgãos in vitro, como se eles estivessem no corpo humano”, anuncia Paulo Massarollo. A tecnologia médica vem desenvolvendo máquinas em que é possível colocar os órgãos em temperaturas fisiológicas e com oxigenadores, mantendo-os vivos com circulação de soluções ou eventualmente sangue. No Brasil, máquinas como essa já estão em fase de pesquisa.

“Com esse avanço será possível avaliar as funções do órgão e medir, por exemplo, a força de contração de um coração”, afirma o médico. “No caso de um rim, poderemos observar se está funcionando e verificar a qualidade da urina produzida. Se for um fígado, vamos checar se ele produz as substâncias habituais.” Outra vantagem é que cresceria também o número de doadores, já que a idade não constituiria mais uma restrição. Se as contrações de um coração são perfeitas, por exemplo, não importa se veio de um doador com 25 ou com 70 anos.