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Interatividade para argentino ver

por Cezar Martins

Quando o Sistema Brasileiro de Televisão Digital foi instituído, a proposta do governo federal era bem maior do que apenas proporcionar imagens mais nítidas, sem os chamados “chuviscos e fantasmas”, aos milhões de espectadores da programação das emissoras de TV aberta do país. O decreto 4901, assinado pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 26 de novembro de 2003, propalava a promoção da inclusão social e do acesso à informação, a criação de uma rede universal de educação a distância, o estímulo à pesquisa e a expansão de inovações brasileiras relacionadas à tecnologia de informação e comunicação.

O cerne da ideia era criar um meio que permitisse aos cidadãos ainda sem acesso a computadores, internet e celulares de última geração realizar operações bancárias, consultar serviços públicos, pesquisar e fazer compras – com a mesma segurança e comodidade já desfrutadas pelas classes de maior poder aquisitivo –, utilizando apenas o controle remoto de um aparelho presente em quase todos os lares do país e cujo funcionamento é considerado bastante simples pela população. O responsável por esse significativo avanço tecnológico é um software batizado de Ginga, desenvolvido por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que deve ser instalado nos novos televisores e conversores externos, ou set-top boxes, responsáveis pela decodificação do sinal digital em aparelhos mais antigos.

O problema é que, apesar dos investimentos feitos desde 2006, quando finalmente o Brasil definiu que o padrão japonês de TV Digital seria implantado por aqui em detrimento do europeu e do americano, a sonhada interatividade ainda está em estado embrionário e seus benefícios permanecem desconhecidos exatamente para a parcela da sociedade que, a esta altura, esperava-se que estaria conectada à extensa oferta de serviços e informações disponíveis no ambiente virtual. Agrava o quadro o fato de a tecnologia totalmente produzida em universidades nacionais já ter sido exportada para quase todos os outros países da América do Sul, exceto a Colômbia, e estar sendo mais bem utilizada pelos argentinos, que só conheceram o modelo digital em 2010. A expansão por lá ocorreu graças a subsídios governamentais para a distribuição gratuita de mais de 1 milhão de conversores a famílias de baixa renda, dando início a uma demanda maior pelo desenvolvimento e distribuição de aplicações interativas por parte das emissoras e produtoras locais.

No final de 2011, a Casa Rosada ainda divulgou que preparava uma nova licitação para compra de um segundo lote de aparelhos. “Os argentinos estão dando um banho, porque se desenvolveram mais rápido e criaram diversas aplicações. Posso dizer que hoje estão no mesmo patamar dos brasileiros, mas temos de observar que eles entraram no mercado muito depois de nós”, avalia Luiz Fernando Soares, professor do Departamento de Informática da PUC-Rio. A indústria argentina e as universidades locais também já iniciaram estudos para produzir equipamentos que poderão acessar a internet e transmitir sinal de televisão com tecnologia 3D e, em janeiro deste ano, o governo venezuelano aprovou projeto para incentivar a produção de televisores e set-top boxes em parceria com o país vizinho ao Brasil.

O governo brasileiro demonstra ter consciência do atraso nacional e anunciou que tomará medidas para forçar os fabricantes a embarcar o Ginga nos televisores a partir deste ano. Uma das mais recentes promessas é publicar novo texto do Processo Produtivo Básico para a montagem de televisores, obrigando que ao menos 30% dos aparelhos produzidos a partir de julho saiam das linhas já com o programa instalado – a proporção subiria para 60% em 2013 e 90% em 2014, a fim de permitir a adaptação gradual da indústria. No entanto, até o final de janeiro, a portaria, que chegou a passar por consulta pública, ainda não havia sido divulgada por conta de conflitos com os interesses das empresas, cujas alegações são de prazo curto, baixa demanda dos consumidores, demasiada elevação dos custos de produção e até problemas de funcionamento, argumento prontamente refutado pelos pesquisadores.

Um dos pontos de defesa dos que atestam a boa performance do software é o fato de diversas instituições públicas, como bancos estatais e a Previdência Social, já terem disponibilizado aplicativos prontos para utilização. De acordo com Sandro Moraes, um dos responsáveis pela gestão de canais de relacionamento do Banco do Brasil, os clientes da instituição conseguem fazer transações bancárias completas utilizando o controle remoto, mas o volume de acessos ainda é muito baixo para balizar uma análise confiável das vantagens e dos pontos fracos da ferramenta. “Devemos ter uma melhora quando o governo obrigar os fabricantes a colocar o Ginga nos aparelhos”, aposta.

A Caixa Econômica Federal chegou a montar um estande no Ministério das Comunicações, em Brasília, para divulgar as funcionalidades de suas ferramentas. Os cidadãos podiam, pela televisão, solicitar créditos imobiliários, acessar informações sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e obter detalhes do programa Minha Casa, Minha Vida, criado para combater o déficit habitacional. Já a Dataprev – Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social – lançou a TV Digital Social, por meio da qual os contribuintes podem agendar atendimentos em agências sem precisar sair de casa e sem falar com a central de atendimento.

A distribuição dessas aplicações criadas para estimular a inclusão digital dentro da programação das emissoras é outro ponto que o Ginga ainda não conseguiu driblar. O maior entrave é a falta de um modelo de negócios claro, que permita aos veículos de comunicação cobrar pela divulgação de conteúdos criados por organizações governamentais e privadas com a finalidade de promover o desenvolvimento social.

Uma saída seria a utilização dos canais públicos, mas o alcance e a penetração da TV estatal brasileira ainda estão bastante defasados em relação ao Canal 7, inaugurado em 1951 pelo governo argentino e, atualmente, um dos maiores promotores da interatividade na televisão no país vizinho. Além disso, a maioria das emissoras nacionais desenvolveu suas próprias ferramentas em caráter experimental, com mecanismos demasiadamente triviais, considerando-se as possibilidades existentes.

Os poucos brasileiros que dispõem de aparelhos conectados (estimativas indicam que são somente 2 milhões) podem acessar apenas sinopses de novelas e filmes, resultados de jogos de futebol e receitas culinárias, por exemplo. Enquanto isso, nos laboratórios de tecnologia das universidades brasileiras, pipocam inovações que permitiriam comprar em tempo real produtos exibidos em comerciais, participar de enquetes e votações, enviar comentários sobre a programação, interferir na continuação de novelas e outras possibilidades que dependem de uma escala bem maior de usuários comuns para poder saltar do campo experimental.

O maior obstáculo, contudo, passa longe das discussões entre parlamentares e representantes da indústria nacional, dos interesses mercadológicos das emissoras e dos fabricantes e da falta de criatividade dos desenvolvedores de aplicativos. Um conversor digital interativo no Brasil não custa menos de R$ 300, valor proibitivo para cidadãos cuja renda ainda é incapaz de assegurar a compra de um computador e a contratação de um provedor de internet. Há opções mais baratas no mercado, mas elas são vendidas sem o Ginga instalado e servem apenas para captação do sinal digital. Por ora, a distribuição gratuita de set-top boxes, como ocorreu na Argentina, não é sequer cogitada, e a esperança de que o preço dos aparelhos baixe a partir do equilíbrio entre oferta e demanda começa a se desmanchar. “Se o mercado não se resolve sozinho, o governo brasileiro precisa intervir. Está na hora de criar uma base de recepção, que vai gerar audiência do público e interesse das empresas”, comenta Guido Lemos, diretor do Centro de Informática da UFPB e um dos participantes do projeto nacional.

Tecnologia de ponta

Boa parte da população nem imagina que computadores, televisores modernos, set-top boxes, celulares e outros aparelhos digitais mais complexos precisam de um sistema operacional, um programa instalado em sua memória, sobre o qual outras ferramentas (para escrever textos, enviar mensagens e e-mails, ouvir música etc.) serão colocadas. O Windows, desenvolvido pela gigante Microsoft, é um dos mais conhecidos no mundo e também um dos mais criticados, por manter seu código de funcionamento em sigilo absoluto e devido aos altos preços das licenças para uso. Já muitos modelos de celulares bastante populares no Brasil utilizam o Android, sistema administrado pelo Google, desenvolvido sobre uma plataforma chamada Linux, de código aberto. Isso significa, em linhas bastante gerais, que o Linux pode ser analisado e melhorado por especialistas independentes e as licenças de uso são isentas de pagamento ou custam bem menos.

Cada fabricante de equipamento eletrônico escolhe o “cérebro” que vai instalar em suas máquinas, levando em consideração vantagens econômicas oferecidas pelos fornecedores e facilidade de utilização pelos compradores, entre outros motivos. Sem o Ginga, a diversidade de sistemas operacionais, no universo da tecnologia da informação, seria um problema para os desenvolvedores de programas interativos, pois teriam de levar em consideração as características de cada equipamento e construir inúmeras versões do mesmo produto.

Chamado pelos técnicos de middleware (mediador), o Ginga cria uma camada homogênea que recebe os aplicativos e permite o funcionamento deles independentemente da base instalada no receptor, seja ele um televisor, um conversor ou um aparelho de telefonia celular. “O Ginga possui três módulos. O primeiro, que nós chamamos de common core, se acopla às plataformas diferentes e oferece suporte para os outros dois que estão acima dele. São o Ginga-NCL, para a linguagem de programação NCL e a linguagem script Lua, e o Ginga-J, para aplicações em linguagem Java”, explica o professor Luiz Fernando.

As linguagens de programação, também geralmente ignoradas pelos usuários comuns, são conjuntos de regras escritas em códigos que, após ser interpretadas pelos processadores das máquinas, ordenam a execução de tarefas, como fazer contas, transmitir e armazenar dados, exibir imagens e vídeos, entre outras. A NCL, do inglês Nested Context Language (Linguagem de Contexto Aninhado), foi criada no Laboratório TeleMídia da PUC-Rio e tem a finalidade de dar suporte à exibição de vídeos, áudios e textos, enquanto a Lua, também gestada na universidade fluminense, permite o desenvolvimento de ações mais complexas e tem sido empregada pelos programadores em jogos de videogame.

As duas linguagens são distribuídas gratuitamente aos interessados e são as únicas utilizadas na Argentina, mas no Brasil existem aplicações feitas em Java, programação bastante robusta e mais difundida entre os profissionais. Sua função é permitir compatibilidade com o padrão europeu de televisão digital, mas existe a desvantagem de exigir pagamento de royalties à empresa detentora dos direitos de utilização, a Sun Microsystems – o valor a ser cobrado por essas licenças ainda não está definido e é motivo para mais polêmicas. De qualquer modo, a normativa brasileira exige que televisores utilizem o modelo completo do Ginga, com módulos para Java e NCL, enquanto receptores móveis (set-top boxes e celulares) podem embarcar apenas o segundo.

Apesar das indefinições, as características técnicas, a capacidade de promover a interação com os espectadores e a ausência de pagamentos de royalties fizeram com que o Ginga-NCL passasse a ser recomendado pela União Internacional de Telecomunicações como padrão mundial para aplicações interativas em IPTV, método de transmissão de sinais televisivos por protocolos de internet. Trata-se de outro tipo de tecnologia, diferente do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, mas já disponível no país. Algumas empresas oferecem esse tipo de produto em pacotes com canais de TV por assinatura além dos abertos, acesso à internet e telefonia.

Apagão analógico

De acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Brasil já possui 103 emissoras de televisão que enviam sinais digitais a mais de 500 municípios, possibilitando que cerca de 87 milhões de habitantes possam usufruir dos avanços do novo sistema. A expectativa do governo é que, em 2016, ocorra o chamado apagão analógico, ou seja, o desligamento de todos os canais antigos – a única maneira de ver televisão no país será por meio dos receptores modernos.

Até lá, o desafio é fazer com que a população descubra as possibilidades de interação com a programação exibida e escolha comprar produtos com o Ginga instalado, desde que os preços se tornem mais acessíveis. Para isso, é preciso fortalecer todos os elos da cadeia de radiodifusão – emissores, fabricantes de televisores e transmissores, indústrias de software e a academia –, tornar as regras mais claras e investir em subsídios que estimulem as empresas a avançar no desenvolvimento de novas ferramentas com mais velocidade.

Um dos canais existentes para isso é o Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD), instaurado em 2006 com a missão de auxiliar o governo a instalar e aprimorar o novo padrão para transmissão de sons e imagens. “O sistema de TV Digital adotado no Brasil oferece gratuitamente o que há de melhor em qualidade de imagens e sons, num nível que só é obtido em mídias pagas em muitos outros países do mundo. A experiência de ver TV com essa qualidade começa a fazer parte do cotidiano de uma parte significativa da população, o que é um resultado concreto do trabalho do Fórum SBTVD. A integração entre os vários setores para a consolidação da interatividade Ginga também tem sido objeto de esforço intenso”, afirma Liliana Nakonechnyj, que trabalha nas Organizações Globo e ocupa o cargo de coordenadora do módulo de promoção do Fórum.

De acordo com a especialista, apesar das possibilidades existentes com o novo sistema para que as classes sociais com menor poder aquisitivo possam ter acesso a melhor educação e atendimento de serviços públicos por meio do software brasileiro, a verdadeira inclusão digital não é uma tarefa a ser depositada sobre os ombros da televisão brasileira. “Para uma interação completa, na qual o telespectador navegue na internet ou troque mensagens bidirecionalmente, o televisor ou conversor precisam estar conectados a outra rede de telecomunicações, de banda larga, que preveja o canal de retorno. Assim, embora a interatividade que pode ser oferecida integralmente pelas transmissões de TV digital possa servir, sem dúvida, como uma introdução digital, o segundo passo da interação depende do acesso à banda larga”, complementa.

Já o professor Luiz Fernando, da PUC-Rio, tem uma visão diferente da questão. Ele acredita que a inclusão digital por meio da televisão é uma estratégia essencial para o país, tendo em vista que o acesso à internet cresce lentamente entre a população de baixa renda. Segundo ele, além da rede de internet, a linha telefônica e os aparelhos celulares podem ser utilizados como canais para que os usuários enviem informações para as emissoras, a fim de participar em votações e escrever mensagens, por exemplo. O problema, a seu ver, é maior, e exige a intervenção do governo para ser resolvido no curto prazo. “Imagine que eu tenha um produto chamado ‘caturra’, a melhor coisa do mundo e que vai salvar a humanidade. Porém, quem vai querê-lo, se nunca ouviu falar em ‘caturra’ nem tem a menor ideia do que seja? Uma forma de fazer as pessoas desejarem um objeto é fazer propaganda dele ou colocá-lo na casa de vizinhos ou parentes, de modo a despertar o interesse. Como um morador da favela da Rocinha pode querer o Ginga sem nunca ter visto o programa funcionando ou sem saber que ele existe? Não podemos esperar 40 anos para promover a inclusão digital da população brasileira”, alerta o professor. Lembrando que o prazo de quatro anos até o apagão analógico “é uma eternidade no mundo da informática”, ele acredita que o Brasil ainda tem tempo para recuperar o atraso e acelerar o passo da interatividade na televisão digital, desde, é claro, que comece a agir imediatamente.