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Portas abertas para a diversidade

por Silvia Kochen

As pessoas que têm dificuldades com raciocínio abstrato são frequentemente taxadas como “burras” e há uma tendência a marginalizá-las. Algumas têm problemas ainda maiores nessa área e acabam sendo consideradas incapazes. Afinal, a inteligência é vista hoje em dia como uma qualidade fundamental, sem a qual não se consegue viver em sociedade. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), a deficiência intelectual atinge cerca de 5% da população mundial, o que no Brasil representa mais de 10 milhões de habitantes.

Confundida com problema mental por causa de preconceitos que existem há séculos, essa deficiência é vista com uma atitude discriminatória, muitas vezes até pelas próprias famílias. Algumas delas, por vergonha, chegam ao ponto de esconder de seu círculo de amigos a existência de rebentos com deficiência intelectual. Outras os tratam como incapazes e os privam de uma vida como a das outras pessoas.

Normalmente, crianças com deficiência intelectual demoram a aprender coisas simples, como andar, falar etc. Quanto mais cedo se recorrer à orientação médica, menor será o prejuízo em habilidades adaptativas e muitas conseguirão até levar uma vida normal. Mesmo assim, elas costumam apresentar dificuldades na escola e raras conseguem concluir o primeiro grau. O resultado é baixa autoestima e a sensação de que não são capazes de fazer as mesmas coisas que a maior parte das pessoas. Pior: há uma significativa desvantagem na hora de buscar emprego, a não ser que a deficiência seja identificada, já que a Lei de Cotas (nº 8.213/1991) estipula a contratação de um percentual dessas pessoas pelas empresas.

Felizmente, porém, enquanto a medicina avança e a expectativa de vida dos que têm deficiência intelectual de modo geral está aumentando, muitos deles começam a vencer o desafio de ganhar autonomia na balbúrdia da vida moderna e a encontrar seu lugar no mundo. Enquanto eles conquistam condições de inclusão nunca antes vistas, novos estudos mostram que sua deficiência intelectual pode ser superada, ao menos em parte. Afinal, os especialistas estão descobrindo que eles aprendem mais quando são estimulados de maneira correta e conseguem fazer coisas que antes não se acreditava que fossem possíveis.

Um exemplo está nos indivíduos com síndrome de Down, uma doença genética que normalmente (mas nem sempre) vem acompanhada de deficiência intelectual. Como em geral nascem com problemas no coração, as pessoas com síndrome de Down antigamente morriam jovens. Elas também tinham dificuldade de se comunicar, uma vez que sua língua e a cavidade oral costumam ser maiores que o comum. Por isso, não se dava atenção à inserção delas na vida social.

Atualmente, cirurgias cardíacas permitem que essas pessoas tenham a mesma expectativa de vida que as demais e já há gente na faixa dos 50 anos com a doença. O recurso cirúrgico também ajuda a melhorar a respiração e a comunicação. Graças a isso, hoje existem pessoas com síndrome de Down em profissões impensáveis apenas uma ou duas décadas atrás, como é o caso da atriz Joana Mocarzel, que brilhou na novela Páginas da Vida, em 2006. Mas o preconceito permanece.

Vida normal

Elizângela Dias da Costa, de 26 anos, tem deficiência intelectual, mas leva uma vida normal. Com dificuldades de aprendizado, há pouco mais de dez anos foi encaminhada à Associação para o Desenvolvimento, Educação e Recuperação do Excepcional (Adere), uma ONG especializada em apoiar pessoas com deficiência intelectual para colocá-las no mercado de trabalho e estimular sua cidadania. Criada em 1972, a entidade mantém atividades recreativas e oficinas de trabalho para promover o convívio, a socialização e a descoberta de potencialidades dos que têm deficiência intelectual, de modo que possam se adaptar a uma rotina laboral e conquistar vida autônoma.

Nas quatro décadas de atuação da Adere, a entidade já atendeu mais de mil pessoas. Nesse período, o trabalho de colocá-las no mercado de trabalho também mudou. “Antes, era como matar um leão por dia, hoje somos procurados pelas empresas que oferecem vagas”, diz Ester Rosenberg Tarandach, assistente social e responsável pelas relações institucionais da entidade. “Mas o preconceito permanece, inclusive entre as próprias pessoas com deficiência intelectual”, diz Soeni Domingos Sandreschi, coordenadora institucional da Adere.

Elizângela trabalha como auxiliar de serviços gerais na Escola Rudolf Steiner, em São Paulo, há sete anos. Em seu trabalho, das 7 horas às 13, faz de tudo: serve café, lava louça, passa roupas, ajuda na cozinha... Depois do expediente, vai para casa, onde almoça. Durante a tarde, gosta de ouvir música. Duas vezes por semana, frequenta as aulas de uma professora aposentada na tentativa de melhorar sua habilidade de leitura e de fazer contas. Diabética, Elizângela tem os níveis de açúcar no sangue monitorados pela avó, dona Nadir. Na casa moram também a mãe e o tio da moça.

Desde que começou a trabalhar, Elizângela passou a ajudar nas despesas de casa e também conseguiu fazer uma pequena poupança. Namorou um rapaz por sete anos e hoje já tem um novo namorado, que conheceu na Adere. Ela adora ir passear no parque do Ibirapuera e ver comédias estilo Trapalhões no cinema. Não gosta de tirar férias porque o tempo não passa, mas costuma visitar a tia no interior nessa época. Dona Nadir está contente porque agora a neta tem autonomia para viver como as outras pessoas.

Tabus

A inclusão de pessoas com deficiência intelectual é mais complicada que a dos que têm outro tipo de deficiência porque existe um tabu muito grande, explica Flávio Gonzales, gerente de Processos de Inclusão da Associação para Valorização de Pessoas com Deficiência (Avape). Um exemplo é a grande gama de termos pejorativos usados para qualificar essas pessoas – como “débil mental”, por exemplo –, que cria um estigma social muito forte.

Ao contrário de outros tipos de deficiência, a intelectual costuma ser invisível (a não ser no caso de pessoas com Down, que têm características físicas definidas), e não é imediatamente reconhecível como a de um cadeirante, por exemplo. Passando despercebida em certas situações, a deficiência intelectual frequentemente é confundida com problemas mentais associados à loucura.

Outra dificuldade é que vivemos na era da informação, quando as empresas pedem diploma de segundo grau até para faxineiro ou para outras funções de baixa complexidade, lembra Gonzalez. Por isso, a inclusão de pessoas com deficiência intelectual torna-se um desafio.

A Avape foi fundada em 1982 na região do ABC paulista para trabalhar com a inclusão de pessoas com todo tipo de deficiência. Hoje a entidade tem unidades em vários estados brasileiros e um trabalho reconhecido internacionalmente. Gonzalez revela que menos de 5% das contratações pela Lei de Cotas que a entidade intermedeia são de pessoas com deficiência intelectual.

Ele lembra que existem várias atividades em que essas pessoas se dão muito bem, talvez até melhor que as demais. É o caso de tarefas repetitivas e que exigem ordem, como a de um repositor de supermercado – que fica sempre organizando produtos em prateleiras –, ajudantes de cozinha, organizadores de correspondência, almoxarifes... Já quando a questão é entender expressões faciais ou entrelinhas de comentários, a dificuldade é muito grande.

A adaptação de pessoas com deficiência intelectual no trabalho é muitas vezes complicada, mas apenas por falta de informação, afirma Marcia Rocha Mello, diretora voluntária da Oficina Abrigada de Trabalho (OAT), responsável pela área de inserção laboral da entidade. “Há muita falta de conhecimento sobre como trabalhar com esse tipo de pessoa, que tem dificuldade de entendimento; as vezes, manda-se uma pessoa com deficiência intelectual levar algo a alguém e ela não volta, mas não se disse que era para voltar em seguida”, observa.

A OAT foi fundada há 53 anos com o objetivo de inserir imigrantes judeus no mercado de trabalho brasileiro. Era uma época de grande afluxo de estrangeiros, que ocorreu ao término da Segunda Guerra Mundial. Com o tempo, essa tarefa perdeu o sentido e nos últimos 20 anos a entidade se dedica apenas à inclusão de pessoas com deficiência intelectual leve ou moderada, que, ao contrário da deficiência severa, permite um grau de autonomia razoável, explica Marcia.

Da mesma forma que a Adere, a OAT mantém uma série de oficinas. “Não buscamos capacitação laboral com as oficinas, mas o ensino de atitudes e posturas que servirão para a pessoa se inserir no mercado de trabalho”, afirma Marcia. Ela conta que a Lei de Cotas, apesar de antiga, só começou a ser efetivamente fiscalizada há cerca de cinco anos, e a partir de então a demanda de empresas por funcionários com deficiência cresceu, mas muitos empregadores buscam alguém apenas para cumprir a cota – fazem o registro na carteira e pagam um salário, mas deixam o trabalhador em casa. “Nosso objetivo é a inclusão dessas pessoas e, por isso, não aceitamos esse tipo de arranjo”, diz.

A diretora da OAT explica que o processo de inserção gera uma série de dificuldades, algumas com origem na própria família. Como há um descompasso entre a idade cronológica e o desenvolvimento intelectual dessas pessoas, é comum os pais terem dúvidas quanto à capacidade dos filhos. “Será que ele consegue ir sozinho até o trabalho? Será que está preparado para o serviço? Será que tem condições de assumir essas tarefas?”, são algumas das preocupações comumente expressas. Por isso, o trabalho de inserção tem três focos: a pessoa com deficiência, a empresa e a família. A ONG atende atualmente 78 aprendizes, mas tem capacidade para muito mais. “Temos dificuldade de captar interessados, o que nos deixa com capacidade ociosa de atendimento”, garante Marcia Mello.

Lei de Cotas

Fabiana Hanssen Chiezzi Seriacopi Ferreira nasceu com síndrome de Prader-Willi, uma rara doença genética que tem como principais sintomas pequena estatura, baixo tônus muscular, dificuldade de aprendizado e obesidade. “Ela nasceu pequena e ficava quieta no berço, praticamente sem se mexer”, conta Clovis Ferreira, pai de Fabiana. Ele conta que a perspectiva era de que fosse uma eterna “boneca de pano”, sem condições de andar nem falar, com baixa inteligência e que não viveria muito. Fabiana hoje está com 28 anos e há um ano trabalha em um supermercado graças à Lei de Cotas.

Ao receber o diagnóstico da doença da filha, Clovis e sua esposa, Rosana, chegaram à conclusão de que tudo o que conseguissem dali em diante seria lucro. Começaram experimentando sessões de fisioterapia e foram atrás de tudo o que fosse possível para melhorar a condição da criança. Buscaram escolas especializadas e depois, por indicação de um conhecido, chegaram à OAT, onde Fabiana se divertia nas atividades das oficinas e fez muitos amigos.

Fabiana tem dificuldades de fala, mas se comunica bem. Clóvis lembra que, certa vez, após uma queda, eles a levaram ao hospital e, por conta de sua interação com a equipe de atendimento, o pessoal achou que fosse uma americana que não sabia falar português. Ela lê com alguma dificuldade, mas é a única dos cinco filhos de Clovis e Rosana em quem se pode confiar para anotar um recado. Também tem um ótimo senso de orientação e nunca se perde.

A rotina de Fabiana é simples. Um dos pais a leva de carro para o serviço, que começa às 9 horas. Antes, Fabiana era empacotadora, mas a impaciência de alguns clientes a deixava desconfortável. Desde que passou a ser repositora, sente-se contente em colocar produtos nas gôndolas e mantê-las muito bem organizadas. Sua jornada de trabalho termina às 15 horas e ela volta para casa a pé, pois são apenas 2 quilômetros de distância. Fabiana adora arrumar coisas em seu quarto, assistir programas infantis na TV, bordar, cozinhar e ajudar a mãe a cuidar dos irmãos. Uma tarefa de que ela não abre mão é preparar com carinho o sanduíche para o irmão caçula, de 19 anos, que faz cursinho.

Grande potencial

Pessoas com síndrome de Down costumam ser estigmatizadas, pois seus traços faciais são bem característicos e facilmente reconhecíveis. Porém, como qualquer ser humano, são curiosas e gostam de aprender, revela Alda Lúcia Pacheco Vaz, coordenadora pedagógica da Associação para o Desenvolvimento Integral do Down (Adid), uma entidade que atua como escola especial para pessoas com a doença. Ela explica que elas apenas têm dificuldades diferentes das demais, mas apresentam um grande potencial.

Alda conta que, certa vez, notou que um aluno se queixava com frequência de que não conseguia enxergar o que estava escrito na lousa, e ela então sentou-se ao lado dele para entender o que ocorria. Observando que ele conseguia copiar a matéria quando estava escrita sobre cartolina branca, ela descobriu que o problema era o fundo escuro. A Adid, então, trocou todas as lousas por quadros brancos e verificou que todos os alunos apresentaram uma resposta positiva.

“Acredito que não exista pessoa burra ou que não goste de estudar, o que temos são pessoas com dificuldades”, diz Alda. “Para superá-las, bastava apenas abrir uma porta, e elas ficavam felizes.” Segundo a pedagoga, o grande desafio é encorajar pessoas em vários setores, e não limitá-las a um trabalho mecânico, pois elas querem evoluir.

Angela Maise Silva Alves, psicóloga e coordenadora do setor de psicologia e empregabilidade da Adid, diz que as empresas costumavam dar preferência à contratação de pessoas com deficiência física, pois assim o trabalho de adaptação resumia-se à questão de mobiliário. Já a contratação daquelas que têm dificuldades intelectuais exige algumas mudanças na própria empresa, que vão do treinamento da equipe para evitar preconceitos dos futuros colegas até a forma de organizar algumas tarefas.

Desde que começou a trabalhar na ONG, há 15 anos, Alda fez um trabalho paciente, junto com outras entidades, para mostrar ao mercado que pessoas com deficiência intelectual são capacitadas e podem realizar um trabalho de boa qualidade. “Hoje, há empresas que nos procuram para oferecer vagas até fora da Lei de Cotas.” As vagas que chegam à Adid costumam ser em restaurantes, lojas e escritórios e há a preocupação de aproximar, na medida do possível, o sonho dos jovens com Down à realidade. Por exemplo, no caso de uma moça que gosta de nadar e queria ser professora de educação física, mas não tinha o diploma universitário necessário, foi conseguida uma vaga em uma academia, onde ela faz trabalho administrativo e dá assistência aos professores.

Marivone de Castro Ferraz Zanzini, presidente da Adid, tem um filho com Down, Caio. Quando ele nasceu, foi buscar informações sobre a doença e ouviu de um médico que “o desenvolvimento dele estaria relacionado ao dinheiro que ela tinha”. Marivone recorreu a clínicas de fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia e produtos importados especiais, como bicos de mamadeiras e chupetas. Caio hoje tem 23 anos e trabalha em uma escola do Senac, em São Paulo, onde é agente técnico de administração. Ele separa e entrega a correspondência, faz cópias xerox, escaneia materiais, arruma as revistas na sala dos professores, providencia reembolsos, fornece informações, atende telefone e até mesmo realiza apresentações sobre a unidade, além de orientar funcionários mais novos sobre as tarefas.

“Gosto de trabalhar lá, é muito bom”, diz Caio. A empresa tem vários projetos e ele participa do grupo de meio ambiente. Entre outras atividades, fez um curso de coleta seletiva, junto com os colegas, e um de comunicação, onde aprendeu como falar em público. Este último, fez sozinho, o que representou uma grande vitória, já que teve de mexer com dinheiro para pagar o almoço. Essas pessoas costumam ter grande dificuldade com raciocínio matemático e ações como calcular o troco constituem um obstáculo a sua autonomia.

Danielle Monteiro Martins, gerente da unidade Lapa Faustolo do Senac, onde Caio trabalha, conta que sua contratação não visa satisfazer a Lei de Cotas. “Achamos que era preciso amadurecer a equipe, pois é muito fácil lidar apenas com iguais, e por isso buscamos a diversidade”, afirma Danielle. Hoje, entre os 58 funcionários do Senac Faustolo há três com deficiência. “Aprendemos muito com eles”, diz a gerente.