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Caro leitor

Em seu iluminado e cáustico “Trópico de Capricórnio”, Henry Miller cria uma imagem bastante viva para a ideia de leitura. De um modo bem resumido, diz Miller numa passagem do livro escrito em 1938: - Estou sempre lendo. Leio os livros, leio as ruas, leio os edifícios, leio as pessoas pela cidade.

Esta relação íntima entre leitura e experiência é talvez um dos principais temas não só de “Trópico de Capricórnio” mas igualmente do estilo tão frenético quanto aberto à reflexão do escritor falecido em 1980. Suas desventuras pela cidade de Nova York e suas aventuras amorosas e boêmias se misturam a digressões sobre os destinos do Homem sobre a Terra e citações de livros, poetas e filósofos. Na imagem sugerida pela literatura de Miller, tudo o que existe é material de leitura.

Ler há de ser, assim, um exercício vasto de observação e interpretação. Um exercício tão próprio a quem cruza o traçado, a arquitetura e os símbolos de uma cidade quanto a quem se vê diante do volume de informações trazidas com os livros, jornais, revistas, televisões, rádios, publicidades e com todas as conexões digitais que avançam suspensas no “éter”, como fala Nicholas Negroponte.  

A quantidade de informação em circulação na Nova York dos anos 1920 do livro de Miller não era em nada desprezível, isto levando-se em conta apenas a narração do dia a dia do escritor/personagem à frente da companhia telegráfica que ele rebatiza na trama como ‘Cosmodemoníaca’.

No entanto, imaginar a quantidade de textos das mais diferentes naturezas (impressos, sonoros, imagéticos) a que uma criança em fase de alfabetização tem contato, hoje, aumenta este espaço de leitura exponencialmente.

Em grande parte, estes textos já não partem mais da matéria sólida e palpável (como é nossa tão particular reunião corpórea de átomos), mas da travessia de partículas de prótons e elétrons que fluem, como num desdobramento do pensamento, de circuitos para circuitos em forma, por exemplo, de páginas escritas, fotografias, gráficos, filmes e músicas.

Como considera Vilém Flusser, num ensaio de 1989, esta transformação põe em questão a própria estrutura linear que organiza nosso alfabeto e, mesmo, nosso próprio pensamento histórico. “Da mesma maneira como o alfabeto procedeu originalmente contra os pictogramas, os códigos digitais procedem contra as letras, para superá-las”, diz Flusser num tom algo profético.  

Para ficar apenas no universo promissor da Internet e nos dois maravilhosos exemplos que tenho em casa, bastante antes de estarem alfabetizados, meus filhos (Nina, de 9 anos, e João, de 6  anos) já navegavam e aprendiam a tamborilar lentamente no teclado as letras que levavam a seus sites e jogos preferidos. Algo que, sabemos, não chega a surpreender ninguém que tenha, hoje, filhos pequenos e um computador diante deles. Não apenas o alfabeto, mas principalmente a sua aplicação entre sons e imagens passa já a ser parte dos brinquedos em um mundo de descobertas.      

O problema talvez seja a futura ampliação desta ‘leitura’, a passagem do brinquedo, do jogo com estes códigos, para uma leitura que inclua um tempo de observação mais brando. Não é imperativo das diferentes mídias digitais, por exemplo, algo como o tempo de reflexão proporcionado pela leitura gradual de um livro.

O desafio do sistema de ensino formal, pelos anos à frente, provavelmente passará pela compreensão e pelo estímulo ao desenvolvimento do senso crítico dos estudantes diante desta carga de informações que se multiplica. Ou o oferecimento de conteúdos nas escolas, dentro do modelo atual que conhecemos, tenderá a se reduzir a apenas mais um dentro destas inúmeras fontes de informação.

Um papel importante para as escolas seguirá sendo, assim, o de estimular e criar condições à autonomia dos alunos diante destes incontáveis materiais que se oferecem à leitura. Ou, como diz o poeta, escolher o que ler é tão necessário quanto ler.

Jefferson Alves de Lima, jornalista e mestre em Comunicação e Semiótica, é assistente técnico da Gerência de Difusão do Sesc