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Música como missão

Muitas vezes comparada a João Gilberto – sua maior inspiração –, a cantora, compositora e instrumentista baiana Rosa Passos esteve, no começo de abril, no Sesc Vila Mariana para lançar o seu mais recente trabalho, o disco É Luxo Só, um tributo ao cancioneiro de Elizeth Cardoso.

A apresentação marcou a volta da artista aos palcos, após uma pausa de quatro anos, e o projeto de desbravar musicalmente o país. O álbum é o 16º de sua carreira, que se distingue por uma consagrada atuação nos Estados Unidos, ao lado de nomes como o violoncelista Yo-Yo Ma e o contrabaixista Ron Carter, além de shows reverenciados pela crítica internacional, em países como Espanha, Alemanha, Suíça, Dinamarca, Noruega, Suécia, Colômbia, Cuba, Uruguai, entre outros, incluindo uma apresentação solo no Carnegie Hall.

Em 2008, Rosa Passos recebeu o título de doutora honoris causa pela Universidade de Berkeley (Califórnia), onde dá aulas de música. Em depoimento à Revista E, a cantora relembra seus primeiros contatos com a música e momentos marcantes da trajetória e reflete sobre as particularidades do trabalho de intérprete. “Confesso que sou completamente realizada”, afirma. Abaixo, os principais trechos.

começo

Sou a caçula de cinco irmãos e meu pai sempre teve aquela preocupação de colocar a música no nosso coração. Então, todos tivemos a oportunidade de estudar um instrumento, de ter acesso à música. Aprendi desde criança, com cinco ou seis anos, a ouvir jazz, as grandes orquestras americanas, os bons cantores e artistas do jazz.

Comecei também a estudar piano muito novinha e fui descobrir que o meu instrumento era o violão escutando João Gilberto, quando tinha 11 anos, e a minha irmã mais velha comprou um compacto duplo com a trilha sonora do filme Orfeu do Carnaval (1959). Ele foi minha primeira referência, meu ídolo. Acho que sou uma boa instrumentista, porque tive o grande professor que foi o João Gilberto. Observar a sutileza e o minimalismo dele me fez ter o cuidado de fazer do instrumento e voz uma coisa só.

Como cantora, acho que foi a partir do momento em que percebi que poderia, além de compor, cantar as músicas de grandes compositores. Isso foi já na década de 1980. Tenho uma coisa que Deus me deu e falo que sou missionária da música. Sou privilegiada, porque vim com essas três opções de música dentro de mim, que é a compositora, a instrumentista e a intérprete. Eu gosto de ser as três coisas. São atividades que se completam, porque, por exemplo, se você também compõe passa a querer dar uma leitura da sua composição da melhor maneira possível.

carreira

Confesso que sou completamente realizada. Pode ter uma coisa ou outra que ainda queira fazer, mas sou uma pessoa feliz hoje. Acho que alcancei um nível de trabalho internacional muito bom, com prêmios lá fora; participei de um álbum do Chris Botti [trompetista norte-americano], que nos deu o disco de ouro; viajei com Yo-Yo Ma [violoncelista norte-americano de origem chinesa] pelo mundo todo e com o disco dele recebemos o Grammy americano; ganhei o título de doutora honoris causa pela Universidade de Berkeley; fiz um álbum lindo com o Ron Carter [contrabaixista norte-americano]; fiz uma apresentação solo, com voz e violão, no santuário da música que é o Carnegie Hall. Então, tem todas essas coisas muito importantes na minha vida.

Este ano, resolvi que quero desbravar mais o meu país, porque aqui [nos Estados Unidos] eu já tenho um público muito bom e que gosta da minha música, mas sinto que preciso me dedicar mais ao Brasil, até mesmo na questão de contribuir com a educação musical do país. Fico triste de ver que o cenário atual anda muito ruim.

As novas cantoras que surgem são muito parecidas, timbres iguais. Elas precisam se diferenciar. Além disso, aquelas que têm um trabalho mais sério e autoral estão na luta, buscando um espaço, e tantas outras que não passam profundidade estão na grande mídia. Não consigo perder meu tempo escutando as coisas medíocres que surgem e a grande mídia dá um destaque.

Este ano ainda vou ficar por conta do É Luxo Só, com shows pelo Brasil e divulgando esse novo trabalho. Mais para a frente tenho vontade de fazer o próximo disco, que é uma homenagem ao Djavan, que eu amo. Tenho propostas para o exterior, mas quero ficar aqui no Brasil. Eu acredito no meu investimento musical nesse país.

cantar

No Facebook, eu faço, discretamente, uma oficina de música para os meus seguidores, meus fãs. Sempre digo para as cantoras que estão começando que elas têm que estudar a própria voz de várias maneiras. Se a cantora puder pegar uma música que vários intérpretes já cantaram e dissecá-la com carinho, vai encontrar um caminho distinto. Para mim, não é abrir a boca e cantar, você tem que ter um diferencial e ser uma referência.

Acho importante também, por exemplo, nós, cantores, estudarmos e escutarmos o piano. É possível tirar muito proveito do piano, pela articulação rítmica das notas, harmonia, melodia, entonação. São diversas as maneiras como você pode aprender ouvindo o instrumento, não só o cantor.

Seria muito bom e importante se toda cantora soubesse tocar um instrumento, o básico pelo menos, porque entenderia, inclusive, muito mais o valor dos músicos que tocam com ela, dando espaço para eles enriquecerem a sua apresentação. Não vejo isso na escola da música brasileira, falta essa interação do intérprete com a banda. Normalmente ficam na frente do palco, cantando, e o músico tem pouca oportunidade de mostrar o seu lado, de improvisar, de trocar com a cantora.

elizeth cardoso

No disco que fiz em homenagem a Elizeth, a mãe de todas as cantoras, procurei um caminho que não tem nada a ver com ela. Muitas pessoas falam para mim que se surpreendem, porque não tem nada a ver com a Elizeth. Mas a minha intenção era essa.

Isso é ter o diferencial da interpretação, não pode querer cantar igual ao outro. Procurei também o repertório por fora, menos conhecido, para mostrar como ela era, assim como eu sou, uma cancioneira da música brasileira. Ela cantou tudo, indo até os contemporâneos, devido à capacidade de interpretação que tinha, capacidade de leitura.

A ideia do disco surgiu de um amigo que me mandou, em 2010, todo o acervo da Elizeth como presente de natal. Ele escreveu um bilhete lindo para mim, dizendo que ela estava muito esquecida e achava que eu deveria pensar com carinho em trazer de volta a Elizeth à lembrança das pessoas.


“Eu acredito no meu investimento musical no Brasil”