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Um veterano ativista das artes

por Cecilia Prada

São bem conhecidos os versos de Castro Alves “Bendito o que semeia/ Livros, livros a mão-cheia.../ E manda o povo pensar!” Porém, é preciso certamente expandi-los para abrangerem outros tipos de divulgadores das artes – como o veterano jornalista Luiz Ernesto Machado Kawall, de 83 anos, 60 dos quais de dedicação humilde e desinteressada, não ostentatória e constante, a essa tarefa.

Não satisfeito com sua carreira de jornalista, ele planejou e criou museus e exposições Brasil afora, promoveu simpósios, festivais de música, feiras populares, como a tradicional da praça onde sempre residiu – a Benedito Calixto, em São Paulo. Além disso, presta até hoje infatigável assistência, totalmente desinteressada, a entidades literárias, academias, escritores, colegas jornalistas, professores universitários, estudantes, que o procuram em seu singular apartamento atopetado de obras de arte.

Embora ele próprio se defina como “um simples jornalista” e recuse ser classificado como intelectual, marqueteiro cultural, relações-públicas ou memorialista, nada parece mais correto, quando nos inteiramos de suas múltiplas atividades ligadas às artes no decorrer de sua existência, do que repetir a feliz expressão criada em 1972 pelo crítico Luis Arrobas Martins: Luiz Ernesto foi sempre um verdadeiro “catequista das artes”.

Geração dourada

Para quem conhece bem Luiz Ernesto, fácil é detectar como desde os 20 anos a paixão política, que realizou com seu trabalho jornalístico, pôde conviver sempre com aquela pelas artes – ou melhor, pela pesquisa das manifestações artísticas recônditas, populares. Até mesmo em seu currículo podemos encontrar um dado interessante – em 1947, ao ingressar na primeira turma de jornalistas formados da Faculdade Cásper Líbero (e do Brasil), fez também um curso de folclore na Escola de Sociologia e Política. Já então tinha um hobby pitoresco: colecionava frases de para-choques de caminhões, coisa inédita na época. E começava a comprar, com o dinheiro suado dos primeiros trabalhos, quadros de artistas primitivos – coleção que se tornou com o correr da vida tão importante que, não podendo mais abrigá-la em casa, teria de fazer doações substanciais a museus, como a de cem quadros ao acervo da Fundação Instituto de Ensino para Osasco (Fieo) ou a que fez ao município de Ubatuba (SP), criando e dotando em 1996 o Museu Caiçara (hoje incorporado ao Projeto Tamar) com mais de 200 objetos típicos e históricos da região – um acervo que já desde 1983 fora aberto ao público no Museu do Bairro do Tenório, que fundara em sua própria casa.

A época da juventude de Kawall tem sido definida, principalmente nas novelas da TV Globo, genericamente como a da “geração dourada” do imediato pós-guerra – nascida e criada, porém, sob o peso da ditadura Vargas. A vitória aliada no plano mundial, contudo, impôs também ao ditador tupiniquim o fim de seu reinado e inaugurou um tempo de esperança e paz – logo mais, infelizmente, obscurecido novamente pelas peripécias da Guerra Fria, que veio até 1991.

No final da década de 1940, arranha-céus “mais altos do que o Martinelli!” – o “colosso” erigido havia então mais de 20 anos, e que deslumbrara a geração anterior – começavam a estabelecer sua rivalidade na neblina paulistana, e uma série de importantes eventos culturais, em fúria cumulativa, compensava São Paulo pelo marasmo da década precedente. No ensino superior, que começava a se abrir para a classe média, planejava-se já a reforma que substituiria, dez anos mais tarde e com resultados desastrosos que perduram até hoje, a cultura humanística pela tecnológica. A euforia econômica do pós-guerra fazia, no entanto, surgir instituições como o Teatro Brasileiro de Comédia, o Museu de Arte Moderna, o Museu de Arte de São Paulo, a Escola de Arte Dramática, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz.

Tendo conhecido o jornalista Carlos Lacerda, proprietário e diretor da carioca “Tribuna da Imprensa” – que viera a São Paulo especialmente para paraninfar sua turma da Cásper Líbero –, Kawall foi logo convidado a chefiar a sucursal paulista daquele órgão de imprensa, cargo em que se manteve até 1964. Entre 1959 e 1961 transferiu-se com a família para o Rio de Janeiro, onde colaborou na campanha de Lacerda para governador e exerceu naquele jornal o cargo de secretário de redação.

Durante todo esse período, apesar da dedicação ao jornalismo, em especial à reportagem, Kawall não se descuidou de outra atividade, como grande apreciador das artes plásticas e da música popular brasileira. Ele tinha o espírito de colecionador espontâneo, despretensioso, e soube valorizar seus relacionamentos sociais numerosos de modo a dispô-los a incrementar iniciativas que acabaram modificando o panorama das artes em São Paulo.

Na própria casa da Praça Benedito Calixto em que criou a família – que hoje ramificada em netos e bisnetos continua a classificar como “seu maior bem” – Luiz Ernesto começou a fazer suas grandes coleções de pintura “primitiva” brasileira, em um tempo em que isso ainda não era moda. Com o passar dos anos – décadas –, vendida a casa, passou a morar em um apartamento, no mesmo local, e a manter, além do museu particular que chamou de “Luís da Câmara Cascudo”, outra coleção preciosa e bastante original: o Museu da Voz (ou Vozoteca). Foi também um grande divulgador da literatura nordestina de cordel. Na I Bienal Latino-Americana de Artes Plásticas, realizada em 1978, recebeu um prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) por ter mantido no evento um estande dedicado somente a esse tipo de literatura.

Gravações raras

Seu maior orgulho é a Vozoteca, uma iniciativa original que teve há muito tempo, quando se compenetrou de que a voz humana revela sempre um estado da alma e testemunha de forma única uma época, um tipo de sociedade humana, e que como tal deve ser preservada – para educação cultural das futuras gerações, para enriquecer a memória nacional. Há 50 anos é um caçador de vozes – espalhada por vários cantos de seu apartamento está sua coleção de 3 mil gravações de personagens importantes da política e da cultura, do mundo todo. Centenas de LPs, fitas, CDs, com os registros de Hitler, Gandhi, Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas, John Kennedy, Manuel Bandeira, Câmara Cascudo, Adoniran Barbosa – coisas extraordinárias, como a voz de Thomas Edison, a primeira do mundo a ser gravada, em 1887, um discurso do barão do Rio Branco, de 1909, ou Marlene Dietrich cantando Luar do Sertão em português sofrido, além do registro do último show de Francisco Alves, horas antes de sua trágica morte, e do raríssimo da voz de Santos Dumont.

Kawall se compraz em descrever as peripécias de suas buscas. Como quando, após ouvir alguém mencionar, no Rio de Janeiro, uma gravação de Rui Barbosa, caçou-a cuidadosamente, descobrindo sua toca, negociando-a, até incorporá-la à sua coleção.

Ele lamenta, contudo, não ter podido registrar muitas vozes mais, como as de Mazzaropi, Lampião, Antônio Conselheiro... mas, incansável, diz: “Estou tratando de arranjar uma gravação do Padre Cícero”.

Truques de um repórter

Há dois perfis no Luiz Ernesto de hoje: esse, o do “catequista das artes”, fundador de museus, colecionador e articulador de grandes projetos culturais, e outro, do repórter intrépido, ainda muito jovem apesar das décadas vividas, malicioso – com um quê de “molecagem” no olhar ao relembrar algumas peripécias de sua longa carreira.

Ele se orgulha de ter visto e ouvido Brasília em todos os seus 50 anos, da primeira missa até hoje. Com sua acuidade auditiva e concentração fora do comum, foi dos primeiros a captar um incidente pitoresco, ocorrido na inauguração da nova capital: estranhou que JK lesse um discurso todo eivado de misticismo e religião, enquanto o do cardeal dom Carlos Carmelo falava de projetos econômicos e sociais... e pensou que alguém devia ter trocado os papéis – o que realmente acontecera por distração de um dos assessores. Claro que tanto o presidente como o cardeal devem ter notado a gafe, mas prosseguiram na leitura, impassíveis, como manda o protocolo.

Kawall passaria à história e mereceria manchete por uma circunstância que ninguém conseguiu muito bem explicar: na ocasião da visita de Ike Eisenhower ao Brasil, durante o governo de Kubitschek, ele seria o único jornalista brasileiro a entrar com a comitiva do presidente americano no Palácio dos Despachos em Brasília, e a sair na foto oficial, entre os dois mandatários. E hoje conta como tudo se passou: enquanto a comitiva, protegida por uma guarnição do exército, subia a rampa, Kawall divisou meio perdido na multidão o vice-presidente João Goulart, que se atrasara. Segurou então o braço de Jango e foi gritando: “Passagem para o vice-presidente!” A guarda o tomou por alguém do FBI, enquanto os americanos pensaram que ele fosse do Catete. No fim da rampa, Jango, agradecido, o incorporou ao primeiro grupo a entrar, formado assim por Eisenhower, Juscelino, Jango, Juracy Magalhães e Kawall. Ele participou de toda a visita ao palácio, liderada por Israel Pinheiro, e ainda registrou parte de uma conversinha informal entre a família Kubitschek e o presidente americano. Dos 1,3 mil jornalistas brasileiros credenciados, somente Kawall e Hideo Onaga, da “Folha de S. Paulo”, conseguiram trocar algumas palavras com Eisenhower.

“No dia seguinte, no restaurante Fasano, em São Paulo, onde a comitiva foi almoçar”, conta o jornalista, “repeti a façanha, mas quase acabei levando um tiro.” Foi assim: ele conseguiu penetrar no salão, guardado por uns 200 seguranças, e pegou um cardápio, armado da grande pretensão de obter o autógrafo de todas as autoridades... E esperou a ocasião: quando uma fila de uns 30 garçons entrou, levando seus pratos à mostra como em um ritual, o jornalista conseguiu incorporar-se atrás do último, o gerente da casa, que era seu conhecido. Esticou o cardápio, onde rabiscara um de seus conhecidos “bilhetinhos”, para o governador Carvalho Pinto, que o pegou, assinou e passou para JK e Ike, que também o assinaram. Porém, quando foi apanhar o documento de volta, Kawall de repente se viu agarrado teatralmente e expulso pelos seguranças. À noite, recebeu um telefonema muito zangado de Ribeiro de Andrade, do Departamento de Ordem Política e Social (Dops): “Luiz Ernesto, você é um irresponsável... Hoje, no Fasano, podia ter sido fuzilado! Bati no revólver de um segurança quando ia atirar em você...”

Articulador de campanhas políticas em que se empenhou seu chefe, o jornalista Carlos Lacerda, Kawall também registra alguns incidentes pitorescos entre figurões políticos. Jânio Quadros, por exemplo, quis bater nele em um coquetel, por ter publicado que Lacerda considerava o ex-presidente “um traidor da pátria”. Em mais um de seus rompantes, Jânio avançou de copo em punho sobre Luiz Ernesto, chamando-o de “mentiroso” e ameaçando: “Vou esmagá-lo!” Esquivando-se, o jornalista diria, imitando o estilo de Jânio: “Esmagá-lo-ei primeiro, presidente!”

Textos, cartas e bilhetes

De 1964 em diante, até hoje, o “estilo Luiz Ernesto” de assessoria de imprensa se impôs. Seus “bilhetinhos” ficaram famosos – dizem mesmo que os de Jânio Quadros inspiraram-se nos seus. O jornalista fazia-se presente discreta e constantemente, por meio deles, cutucando este ou aquele empresário, lembrando a tal ou qual político suas promessas, despertando-os para a necessidade de criar projetos culturais – em um tempo em que ainda não haviam inventado promoters e marqueteiros. Foi assessor de imprensa do governador de São Paulo Abreu Sodré, da União Democrática Nacional (UDN), do secretário da Cultura paulista Max Pfeffer, da Sharp, do Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, do Museu de Arte Moderna e do Tribunal de Contas, onde se aposentou, em 1981. Depois disso continuou voluntariamente a assessorar a Academia Paulista de Letras, de 2001 a 2008.

No jornalismo cultural, foi o criador da crônica de arte, com estilo próprio, distante tanto da crítica erudita, repleta de conceitos técnicos e reservada aos especialistas, como da mera reportagem incolor, feita por jornalistas comuns e que nada acrescentam à cultura do leitor. Como diz Luis Arroba Martins no prefácio ao livro Artes-Reportagem, de Kawall, publicado em 1972: “[Luiz Ernesto] escreve para todos e todos o entendem. As nossas artes visuais não tiveram melhor divulgador e arregimentador de adeptos. Alicia gente de todo tipo e de todo grau de instrução”.

O conjunto de entrevistas com artistas e pessoas ligadas ao cenário cultural que o livro apresenta é um legado permanente que nos possibilita conhecer desde os primeiros nomes do modernismo no Brasil, como Anita Malfatti, Lasar Segall, Victor Brecheret e Di Cavalcanti, até expoentes do abstracionismo, tachistas, concretistas e primitivos, com registro de todos os movimentos e eventos artísticos do país no período de 50 anos abrangido (1922-1972).

Um de seus maiores motivos de orgulho – confessa o realizado Kawall – foi ter participado da criação tanto do MIS do Rio de Janeiro como do de São Paulo. “Fui o organizador, em 1967, como assessor do governador Abreu Sodré, do MIS de São Paulo, e fiz para ele as primeiras entrevistas, com Lasar Segall, com Volpi...” E conta: promoveu um grande almoço italiano de amigos, para Volpi, em sua casa. E quando a conversa estava bem animada, ligou disfarçadamente um gravador que estava debaixo da mesa – o único jeito de fazer o artista falar de sua vida e sua arte. E com Paulo Emílio Salles Gomes entrevistou Piolim, o genial palhaço, num vagão de trem...

“Um pequeno orgulho, ainda”, completa, “é ter criado um museu infantil no Sítio do Sapé, no Tenório, o primeiro do gênero no Brasil.” Incansável, Luiz Ernesto fala também de seu grande projeto atual: um monumento ao primeiro grande “rei do futebol” que tivemos, Leônidas da Silva, apelidado de Diamante Negro, criador do famoso “gol de bicicleta”. Em 2009, apresentou ao prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, o projeto de Spacca para um “Monumento a Todas as Copas” com a figura do famoso jogador, que poderia ser inaugurado para a Copa de 2014 em frente ao estádio do Morumbi.

Fazendo um balanço de suas realizações, Kawall conclui, com seu jeito sempre doce, humilde: “Enfim, acho que posso resumir minha vida como fez meu caseiro Antônio, de Ubatuba, que morreu nos meus braços dizendo: ‘Eu fiz o que pude’”.