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Vida subterrânea

por Evanildo da Silveira

Não é exagero dizer, para usar uma frase feita, que o planeta fervilha de vida. Raríssimos são os lugares estéreis na Terra. Organismos vivos – bactérias, principalmente – já foram encontrados em poças geladas na Antártida e em fendas no fundo dos oceanos, de onde a água jorra a 250 ºC (abaixo ainda, no entanto, do ponto de ebulição, por causa das altas pressões). Com as cavernas não é diferente. Apesar de seu interior escuro e pobre em alimento, nelas vivem milhares de espécies. No Brasil, aos poucos, a ciência começa a lançar luz sobre os animais que vivem nesses ecossistemas peculiares.

Trabalho para os pesquisadores não falta. O país tem hoje 5.203 cavernas cadastradas pela Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE). Essa, porém, é apenas uma pequena parte das que existem. Estima-se que o número total no território nacional possa chegar a 100 mil. Há cavidades subterrâneas de todos os tipos: grandes – a maior delas, a Toca da Boa Vista, em Campo Formoso, na Bahia, tem 107 mil metros de galerias –, pequenas, acidentadas, profundas, planas, secas ou com lagos e rios.

Elas abrigam uma grande riqueza paleontológica, arqueológica e biológica. Por isso, sempre foram legalmente protegidas, inclusive pela própria Constituição Federal, que em seu artigo 20, inciso X, as define como bens da União. O decreto federal 99.556, de 1º de outubro de 1990, por sua vez, detalhou como deveria ser feita essa proteção, estabelecendo o regime jurídico próprio para isso. Tudo mudou, no entanto, em 7 de novembro de 2008. Desde então, esse patrimônio nacional está sob ameaça.

Pressionado pelo setor de mineração, que reclamava que a legislação “engessava” a atividade, proibindo a exploração de riquezas minerais em grutas ou áreas próximas a elas, o governo editou, naquele dia, o decreto 6.640. “Com ele, foi alterado todo o princípio de conservação do patrimônio espeleológico brasileiro”, explica a bióloga Eleonora Trajano, chefe do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e uma das pioneiras da bioespeleologia brasileira. “Pelo decreto anterior, a totalidade das cavernas era protegida a priori, o que equivale a dizer que todas eram relevantes até prova em contrário, em consonância com o princípio central da conservação, que é o da precaução e prevenção.”

Devido à norma estabelecida em 2008, as cavidades subterrâneas podem agora ser classificadas em quatro níveis de relevância: máximo, alto, médio e baixo. Para enquadrá-las em cada um deles, foi elaborada uma lista de 11 atributos que elas devem ter, como alta biodiversidade, espécies endêmicas, fragilidade ecológica (população pequena) ou ocorrência de animais raros. Assim, apenas as que têm características únicas e notáveis são consideradas de relevância máxima e, por isso, não podem ser destruídas.

O decreto 6.640 prevê ainda que as de relevância alta poderão ser destruídas desde que a empresa que pretende explorá-las preserve outras duas de igual importância. O empreendedor também pode acabar com as de média importância, desde que apoie ações de conservação em outras áreas. Para as cavernas de relevância baixa nem isso: elas poderão ser simplesmente destruídas sem nenhum tipo de compensação ambiental. Embora isso não tenha ocorrido com nenhuma caverna após a mudança na legislação feita em 2008, é certo que o risco é real e permanente.

Conflito de interesses

A esses problemas se junta a determinação do decreto de que os estudos para verificar a relevância de uma gruta sejam contratados e pagos pela empresa interessada em sua exploração. Segundo a comunidade científica, isso configura um conflito de interesses. Além disso, o prazo para tais estudos é de apenas um ano. “Nesse tempo não é possível fazer uma pesquisa científica conclusiva”, diz Eleonora.

De acordo com a pesquisadora, para que as amostras dos animais que vivem numa caverna sejam consideradas estatisticamente relevantes é preciso fazer coletas durante pelo menos três anos. Sem isso, não é possível dizer se uma cavidade tem máxima relevância ou não. Num estudo de curta duração muitos animais que vivem lá podem passar despercebidos. “Não encontrar atributos que a tornem relevante não significa que eles não existam”, ressalta Eleonora. Assim, o local pode ser considerado sem importância e destruído, quando de fato deveria ser protegido.

Independentemente dos prejuízos que a nova legislação possa causar a esse patrimônio brasileiro, os cientistas continuam fazendo seu trabalho. À frente deles estão os biólogos especializados em pesquisar a biodiversidade das cavidades subterrâneas. Chamados bioespeleólogos, eles não passam de 30 no país, divididos em três grupos de pesquisa, um na USP, um na Universidade Federal de Lavras (UFLA) e outro na de São Carlos (UFSCar). “Ainda somos poucos estudando a vida cavernícola no Brasil”, diz Eleonora Trajano. “Começamos relativamente tarde, na década de 1970, enquanto na Europa e nos Estados Unidos se pesquisa esse tipo de fauna desde 1830.”

O time pode não ser grande, mas vem realizando importantes levantamentos e descrições de novas espécies subterrâneas. Na verdade, o pioneiro nesses estudos no Brasil foi o biólogo e geneticista Crodowaldo Pavan, um dos maiores cientistas brasileiros, que morreu no dia 3 de abril de 2009, aos 89 anos. No início dos anos 1940, ele pesquisou o bagre-cego Typhlobagrus kronci, que vive em rios e lagos nas cavernas de Iporanga (SP), sobre o qual escreveu sua tese de doutorado, concluída em 1944. Pavan descreveu em detalhes essa espécie, como nunca havia sido feito antes.

Depois disso, nenhum estudo relevante foi feito até pelo menos a segunda metade dos anos 1970. Foi quando surgiu um grupo de jovens estudantes, entre os quais Eleonora, que se reunia no Centro Excursionista Universitário da USP. “Muito antes de se falar no assunto já fazíamos naquela época o que hoje se conhece como turismo ecológico”, recorda. “Realizávamos excursões de montanhismo, mergulho, caminhada e descida de corredeiras de rios em botes. Aos poucos, começamos a visitar cavernas. Aqueles que estudavam em áreas ligadas à biologia, como eu, passaram a discutir então a necessidade de pesquisar os ambientes cavernícolas de forma mais sistemática.”

Foi assim que Eleonora se tornou a primeira cientista brasileira a se especializar e seguir carreira nessa área. Hoje, mais de 30 anos depois, ela tem em seu currículo dezenas de espécies cavernícolas descobertas, das quais descreveu cientificamente nove. Atualmente, está descrevendo mais uma já estabelecida e outras duas que estão em processo de diferenciação. Além de se dedicar à pesquisa, ela também atuou na formação de outros espeleobiólogos, como prefere chamar os biólogos que estudam a vida nas cavernas. Quase todos os pesquisadores que compõem os grupos da UFLA e da UFSCar foram seus alunos.

Grande diversidade

Graças ao trabalho desses cientistas, tem aumentado o conhecimento sobre as cavidades subterrâneas brasileiras e os animais que nelas vivem. “Muitas espécies novas têm sido descobertas, desde insetos, miriápodes e aracnídeos até peixes”, conta a bióloga Maria Elina Bichuette, do Laboratório de Estudos Subterrâneos do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da UFSCar. “A cada ano temos tido um acréscimo de cerca de 10% a 20% nas descobertas. Hoje, devemos ter entre 1,2 mil e 1,6 mil espécies, a maioria ainda não descrita formalmente.” Esse é um aumento e tanto em relação a um dos últimos levantamentos existentes, feito pelo pesquisador Ricardo Pinto da Rocha, da USP, que contabilizava 613 descobertas entre 1907 e 1994, das quais pouco mais de 500 eram de invertebrados.

Essa grande diversidade é reflexo da existência de diferentes tipos de cavernas, cada uma com um ambiente específico. Contudo, elas também têm elementos comuns, como a divisão básica em três zonas. A de entrada, como o nome diz, está localizada perto da abertura e ainda recebe luz direta do exterior. Por isso, suas características climáticas são semelhantes às encontradas do lado de fora. Penetrando-se um pouco mais na cavidade, chega-se à zona de penumbra, onde a luz chega de forma indireta. Nessa região as temperaturas são mais amenas e estáveis e a umidade maior do que no ambiente externo. Mais no fundo, fica a chamada zona afótica, de escuridão total, com temperaturas mais baixas e umidade relativa do ar alta, próxima de 100%.

Com suas características próprias, as cavernas constituem um ecossistema peculiar e não muito amistoso para a vida, em especial na zona sem iluminação. Como ali não há plantas, que são a base da cadeia alimentar no planeta, os animais têm de se virar como podem. Todos são oriundos do ambiente externo, mas ao longo de gerações sofreram alterações evolutivas e se adaptaram a uma vida sem luz e com escassez de alimentos. Os que habitam essa zona mais profunda são os chamados troglóbios, que representam apenas 10% dos animais que se instalam permanente ou esporadicamente no habitat cavernícola. Eles dependem de alimentos trazidos de fora pelas enxurradas ou rios subterrâneos ou por animais que vivem algum tempo ou passam por ali, como os morcegos, por exemplo.

Os troglóbios podem ser vertebrados ou invertebrados e são encontrados exclusivamente nas cavernas, onde completam todo o seu ciclo de vida. Entre suas principais características, que têm a ver com a adaptação à vida na escuridão, está a redução ou mesmo a ausência de olhos e de pigmentação. Para compensar isso e poder se orientar num ambiente sem luz, esses animais desenvolveram outros órgãos sensoriais, como grandes antenas capazes de captar sinais químicos, mecânicos ou elétricos do ambiente ao redor. Outras adaptações notáveis adquiridas por eles são o baixo metabolismo e o crescimento lento, que os tornam capazes de sobreviver num ambiente com pouca comida.

Além das mudanças morfológicas e físicas, os troglóbios também desenvolveram algumas diferenças comportamentais em relação a seus parentes que vivem fora das cavernas. Isso pode ser observado com mais clareza nos peixes. Diferentemente do que ocorre na superfície, nos rios e lagos subterrâneos eles ocupam o topo da cadeia alimentar, ou seja, não possuem predadores.

Predomínio de invertebrados

Sem a pressão seletiva da evolução, os peixes troglóbios se tornaram menos agressivos e abandonaram o hábito de nadar em cardumes, normalmente utilizado para confundir seus predadores e, assim, melhor se defender deles. O Brasil tem uma das maiores biodiversidades de peixes desse tipo do mundo, só atrás das do México e do sudeste asiático. Até agora já foram registradas no país 18 espécies, sete das quais descritas por Eleonora.

Além dos troglóbios, há dois outros tipos de animais nas cavernas, os troglófilos, que podem viver tanto exclusivamente dentro como fora delas, e os troglóxenos, que têm de sair para se alimentar. Entre os primeiros, que representam 85% das populações cavernícolas, predominam os invertebrados, como aracnídeos (aranhas, opiliões) e insetos (grilos). Eles podem passar toda a sua vida tanto no meio externo como nas grutas. Em geral, quando as colonizam, ocupam uma ampla área, em grande número.

Dentre os troglóxenos, por sua vez, que não são mais que 5% dos animais das cavernas, o exemplo clássico são os morcegos, dos quais há 40 espécies no Brasil. Existem também algumas dezenas de outros mamíferos, como roedores (ratos, pacas, cuícas), além de aves, anfíbios e répteis, que utilizam as cavernas como local de abrigo, reprodução ou alimentação. Eles dependem, no entanto, de saídas periódicas para o ambiente exterior para completar seu ciclo de vida. Ou, então, podem ser visitantes ocasionais, que, apesar de não ter condições de desenvolver todo o seu ciclo biológico nas cavidades, ali penetram por períodos relativamente curtos e a pequenas profundidades. “A megabiodiversidade do país se reflete nas cavernas, principalmente entre os troglóxenos”, explica Eleonora.

Diante de bichos e nomes estranhos como esses, alguém poderia se indagar sobre a importância de pesquisá-los. O que leva cientistas a se embrenhar em buracos escuros, ambientes inóspitos, úmidos e abafados, carregados de equipamentos pesados, arriscando-se a quedas ou até a ficar presos por uma inundação repentina, causada por chuvas das quais só tomam conhecimento quando já é tarde?

O biólogo Pedro Gnaspini, da USP, que já ficou preso por horas dentro de uma caverna, devido à água que subiu cinco metros em cinco minutos, responde. “Queremos conhecer esses bichos para poder preservá-los”, diz. “Eles e o ambiente onde vivem são frágeis. Qualquer alteração ou interferência pode levá-los à extinção.”

Embora a preservação, dessas como de outras espécies e ambientes, seja importante por si, o objetivo dos bioespeleológos vai além dela. “Cada caverna é um grande laboratório da evolução”,  explica Gnaspini, que se dedicou a estudá-las por mais de 20 anos e já descobriu várias espécies novas. “Podemos comparar os animais que ali vivem a seus parentes do exterior. É possível verificar as mutações que sofreram, como a perda dos olhos e a despigmentação dos troglóbios.”

Os campos de estudo são muitos. Sonia Hoenen, também da USP, pesquisou durantes anos os ciclos biológicos desses animais. Todos os seres vivos têm ritmos, períodos de atividade e inatividade (sono), determinados pelo ciclo claro-escuro do dia e da noite. É o que se chama relógio biológico, que nos leva, por exemplo, a ter sono de noite e ficar em vigília de dia.

Estudando se os troglóbios, que vivem há milhares ou milhões de anos na escuridão, teriam mantido ou perdido seu relógio biológico, Sonia descobriu que aconteceram as duas coisas. No segundo caso, as espécies têm períodos de atividade e sono totalmente irregulares, podendo permanecer ativas por duas, três, 10 ou 18 horas ininterruptamente.

Mergulho no escuro

Dentro do reduzido grupo de bioespeleólogos brasileiros há ainda um subgrupo de pesquisadores mais radicais, superespecializados, que, literalmente, vão mais fundo em busca de conhecimento sobre animais cavernícolas. São os que mergulham em rios e lagos dentro de cavernas. Com equipamentos que podem pesar 50 quilos, eles enfrentam águas muitas vezes turvas e labirintos de canais subaquáticos atrás de peixinhos albinos e sem olhos.

Assim como seus colegas que pesquisam grutas secas, os bioespeleólogos mergulhadores não trabalham sozinhos. É sempre preciso ter alguém para ajudar ou ir atrás de socorro se houver algum problema. “Certas cavidades têm obstáculos difíceis de ultrapassar (cachoeiras, abismos) e quando vamos estudar os animais temos de levar vários apetrechos que não são fáceis de carregar (cordas, escadinhas, boias)”, explica Maria Elina, que já mergulhou em várias cavernas do vale do Ribeira (SP), mas hoje não faz mais isso. “Por esse motivo, é preciso trabalhar em grupo.”

Por segurança também, todos os equipamentos que permitem a sobrevivência embaixo da água, como cilindros de ar e fontes de luz, são levados em duplicata. Além disso, os pesquisadores têm de carregar toda uma parafernália de aparelhos para a pesquisa propriamente dita. “Para um trabalho com ecologia de peixes, é necessário levar redes de mão, aparelhos para medi-los e pesá-los e para analisar as características físico-químicas da água, peneiras para coleta e potes para colocar os peixes”, explica Maria Elina.

Equipados dessa maneira, os bioespeleólogos ficam até seis horas mergulhados na água subterrânea. Na hora de subir, não podem esquecer que acima da água há o teto da caverna. É preciso nadar de volta até o local onde mergulharam, às vezes a 200 metros de onde estão. “É um ambiente árduo para se trabalhar”, diz Edmundo Costa, que dá aulas de biologia e se dedica a estudos de licenciamento ambiental e atividades turísticas em grutas da região de Bonito, em Mato Grosso do Sul. “Mas também é frágil do ponto de vista biológico e, por isso, é importante pesquisar para saber como agir para protegê-lo.”

Apesar dos esforços desses poucos especialistas, ainda há muito trabalho a fazer. Do total de cavernas registradas no Brasil, menos de um terço já foi estudado. Há uma enorme riqueza biológica a descobrir. É preciso, porém, se apressar, porque grande parte dela está em perigo antes mesmo de ser conhecida. “Destruição de cavernas por mineração, hidrelétricas, desmatamento do entorno, poluição, tudo isso causa diminuição das populações, já reduzidas, de cavernícolas, ameaçando sobretudo os troglóbios”, enumera Eleonora. “A situação pode se agravar com o decreto 6.640 e, por isso, é preciso estudá-los para conservá-los.”