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Transformações silenciosas e desempenho econômico

por Octavio de Barros

Octavio Manoel Rodrigues de Barros, doutor em economia pela Universidade de Paris X Nanterre, foi assessor do Ministério da Fazenda e do Banco Central do Brasil e consultor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Foi também diretor de economia da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). É economista-chefe do Banco Bradesco, em que comanda um departamento fundado por ele, encarregado de estudos estatísticos e pesquisas macroeconômicas. Atualmente é chairman do Comitê de Economia da Câmara Americana de Comércio (Amcham) e membro do Conselho Superior de Economia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). É coautor, com Fabio Giambiagi, dos livros Brasil Globalizado e Brasil Pós-Crise –Agenda para a Próxima Década. Esta palestra de Octavio de Barros, com o tema “Economia Brasileira sem Retoques”, foi realizada em reunião do Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 16 de setembro de 2010.

 

Nós, economistas, incorremos frequentemente em um pecado mortal: pensamos que aquilo que não pode ser medido simplesmente não existe. Há, porém, transformações silenciosas, subterrâneas na economia, que não temos a menor competência para captar em nossas análises conjunturais. Tomamos pouca distância em relação ao que estamos assistindo e por isso talvez sejamos exageradamente céticos e arrogantes, e nossas análises pequem pela superficialidade. Mas na prática, quando pensamos no Brasil das últimas duas décadas, temos de reconhecer que estamos vendo coisas inéditas na história econômica do país.

Não me poupo a críticas, mas tive a sorte de ter aprendido ao longo de minha carreira profissional a ver nosso país também com um olhar estrangeiro. Como estudei e trabalhei no exterior por cerca de 8 anos, me eduquei vendo o Brasil em termos relativos, sempre comparado com outras nações. Nós, brasileiros, somos muito mais severos com relação a nosso país do que os estrangeiros, porque eles têm um olhar relativo. O nosso é absoluto. Somos implacáveis com as coisas que não funcionam aqui e isso é normal, compreensível e necessário. Já os analistas de fora, quando comparam, veem que o Brasil amadureceu e deu um salto em vários planos, inclusive no institucional, a despeito de tudo o que não funciona ou que funciona mal por aqui.

Meu olhar, então, tem um pouco dessa contaminação estrangeira, ainda que me considere um analista genuinamente brasileiro e focado nas coisas do dia a dia de nossa economia. Vejo também as coisas que não andam ou que avançam lentamente aqui. Tenho clareza sobre a falta de sentido de urgência que existe no Brasil e sobre todos os “custos de transação” que infernizam a vida das empresas e das famílias, impedindo um crescimento mais acelerado da produtividade no país.

Cenário decisivo para o Brasil

Antes de refletir sobre o Brasil, é importante contextualizar o momento global que atravessamos e que explica muito as possibilidades da economia brasileira, bastante inserida internacionalmente. Na economia mundial estamos vivendo um ciclo desinflacionário, particularmente nas economias maduras, um período que tenho chamado por enquanto de “estagnação benigna”. Benigna porque não estamos diante de uma nova crise sistêmica, como aquela a que assistimos em 2007 e 2008. Não estamos mais falando de problemas de crédito bancário ou de crise hipotecária subprime. Esse tipo de coisa não está mais no radar, mas estamos vivendo um período de acomodação depois de uma recuperação importante que houve no pós-crise. Isso ocorreu graças a um conjunto de ações e de medidas que foram tomadas de forma coesa e contínua por vários governos simultaneamente.

Pela primeira vez talvez na história recente do capitalismo mundial houve certa coesão de políticas macro entre nações maduras e emergentes. O fato é que estamos vivendo um período de acomodação não só na Europa e nos Estados Unidos. Há alguma desaceleração do crescimento na China e economias maduras como a japonesa estão em frangalhos. Ouvi recentemente uma frase sobre a Espanha que é emblemática da frustração mundial: “A economia espanhola está tão mal, tão mal, que até parece que já estamos no ano que vem”. Em suma, as economias emergentes, a despeito de sua característica de novas locomotivas, também desaceleram um pouco.

A mensagem essencial é esta: em um par de anos não prevemos na economia mundial nenhum crescimento vibrante, mas apenas moderado. É tudo de que precisamos no Brasil. Parece estranho, mas temos de torcer para que o mundo não se recupere tão rapidamente. Precisamos de um tempo para ajustar nossa economia e evitar um sobreaquecimento. Por enquanto, não trabalhamos com pressões inflacionárias relevantes advindas de fora que possam contagiar o Brasil. Mesmo as pressões recentes e importantes de commodities, não as vemos como de grande fôlego. São essencialmente choques de oferta e pressões decorrentes da grande liquidez internacional.

Acredito que existe um grande diálogo entre a inflação global e a do Brasil. Portanto, os juros no mundo tendem a se manter baixos durante um bom tempo, e isso também tem implicações para nós. Por conta desse extraordinário diálogo entre o Brasil e a economia internacional, não prevemos nenhum aumento de taxa de juros num horizonte visível no mundo e talvez mesmo no Brasil.

De forma bem geral, sabemos que houve um período, particularmente de 2004 a 2007, que chamamos de “anos dourados” da economia mundial, em que o Produto Interno Bruto [PIB] do planeta cresceu em torno de 5%. Esses anos foram extraordinariamente favoráveis ao Brasil. Ganhamos na loteria graças a uma forte demanda mundial pelos produtos que o país exporta. Estimo que, entre 2003 e 2009, o Brasil ganhou de presente cerca de US$ 100 bilhões dos chamados termos de troca. Isso é renda macroeconômica que alavancou pesadamente importantes políticas no país.

A China explica boa parte desse comportamento. Os chineses, aliás, também jogaram para baixo preços e salários no mundo inteiro. Portanto, houve afrouxamento monetário e excesso de liquidez global em todo aquele período. O Brasil surfou nesse cenário global e o que estamos vendo agora no pós-crise é o reconhecimento de que não voltaremos tão cedo àqueles anos dourados que para nós se estenderam até quase o final de 2008. A economia global vai continuar crescendo razoavelmente, mas a taxas mais próximas da média histórica.

Para 2011 prevemos desaceleração da economia global. A China passa de 10% de crescimento em 2010 para 9%, que ainda é exuberante. A Índia desacelera, como o Brasil e a Rússia. Mas o fato é que alguns meses atrás havia um grande otimismo com a economia americana e pessimismo em relação à zona do euro. A situação se inverteu: hoje há uma visão mais construtiva da economia europeia, apesar das dificuldades de Irlanda, Portugal, Grécia e Espanha, e mais preocupada em relação à americana. Mas esse pêndulo muda toda hora. Não há praticamente nenhum analista econômico no mundo que tenha uma visão muito otimista sobre o crescimento nos próximos dois anos, mas é importante insistir que não estamos mais falando de qualquer coisa que chegue perto da crise que tivemos em 2007 e 2008.

País mais previsível

No Brasil, a economia tende a ingressar num ciclo de expansão mais equilibrada. O que vimos em 2010 foi um crescimento quase que incendiário, sobretudo no primeiro semestre. Fomos beneficiados com um afrouxamento monetário e com políticas fiscais que turbinaram a atividade econômica. E ao mesmo tempo ficou clara a leitura generosa que o mundo tem a respeito do Brasil, pelo fato de sermos um país percebido de fora como mais arrumado, mais disciplinado e mais previsível.

Diante da aversão ao risco que existe no mundo, pela primeira vez na história recente o Brasil está sendo beneficiário dela. A penúria de oportunidades de negócios no mundo acaba fazendo com que o diferencial de crescimento governe as decisões de investimento em nações como o Brasil. Ou seja, o mundo, diante de um cenário de incerteza, olha para a América Latina e vê aqui um país com uma situação econômica razoavelmente organizada, que melhorou institucionalmente.

Ineditamente, o processo eleitoral não gerou nenhuma ansiedade dos mercados. Refiro-me, é claro, à ótica fria dessa entidade abstrata chamada mercado, mas fato é que o Brasil é percebido como a segunda mais parruda democracia da América Latina, depois do Chile. O mundo tem essa visão de que somos a bola da vez, o queridinho dos mercados. A despeito disso, estamos prevendo uma desaceleração endógena da economia brasileira, depois daquele incêndio a que assistimos no primeiro semestre. Para o ano de 2011, é plausível supor que algum ajuste fiscal confirme essa desaceleração da atividade. Isso nos parece decisivo. Caso contrário, não sustentaremos o crescimento desejado.

Na prática, vamos migrar de um crescimento de 7,5% em 2010 para algo na direção de 4,5% em 2011. Diante das taxas medíocres das últimas décadas, crescer 4,5% a 5% não me parece um grande desafio para o Brasil. Apenas agregamos ao crescimento histórico brasileiro a previsibilidade adquirida nos últimos anos. Mas acho francamente um desperdício. Poderíamos crescer muito mais, mas vamos falar disso mais adiante.

Observando a perspectiva histórica, os 7,5% de 2010 são mais que o dobro do que crescemos na média dos períodos Fernando Henrique Cardoso e Lula somados, que foi 3,2%. Obviamente, neste momento o país não tem capacidade de sustentar taxas dessa magnitude, embora no futuro, se tivermos mais senso de urgência e apetite por reformas, o Brasil possa crescer a taxas maiores.

A história é mais ou menos a seguinte: a sensação térmica continuará muito agradável, mas a economia desacelerará de forma endógena e com alguma ajuda do mundo. A produção industrial, depois de um índice exuberante em 2010 de quase 11%, em 2011 crescerá 4%. É um número bom, pois temos de considerar que a demanda mundial apresentará taxas moderadas.

Quanto às condições da demanda doméstica, elas parecem intactas. Do ponto de vista salarial, a sensação térmica se manterá agradável, favorecendo o processo de decisão das famílias tanto para consumo como para poupança. O medo de perder o emprego é o menor da história, segundo a CNI [Confederação Nacional da Indústria]. Está havendo inclusive uma rotatividade voluntária da mão de obra, que exerce forte pressão sobre o mercado de trabalho, provocando mudanças estruturais. O setor de serviços está ganhando peso relativo na economia e não vejo grandes mudanças nele quanto a essa tendência de empregos e salários. Há setores, como a construção civil, em que os incrementos salariais são muito fortes. Por essa razão, as vendas no varejo vão se manter, em termos de volume físico, ainda em ritmo alucinado, 6% em 2011, o que é muito alto.

O desemprego é o menor da história, 6,9%, e em 2011 ainda poderá cair para a faixa de 6,2%, segundo nossas projeções. O Brasil tende a manter um apetite por investimento externo muito alto. Além disso, estamos apostando que o país deve experimentar nos próximos 15 anos o maior ciclo de investimento infraestrutural desde os anos 1970.

Aos trancos e barrancos, a infraestrutura deverá melhorar bem no Brasil porque estamos muito defasados. Isso gera muitos empregos qualificados e não qualificados. Hoje precisamos de 1,4 milhão de novos empregos por ano – esse é o crescimento médio da população economicamente ativa (PEA) – e estamos criando mais do que isso. Terão sido gerados 2,4 milhões de empregos com carteira assinada em 2010 e, em 2011, estamos prevendo 1,6 milhão, em função do crescimento do PIB, que projetamos em 4,5%, como já mencionei.

De qualquer forma, o país deve criar em 2011 mais empregos do que o crescimento vegetativo da população economicamente ativa, e empregos que tendem a se tornar cada vez mais formais. Hoje mais da metade da população trabalhadora brasileira tem contrato formal de trabalho. Em dez anos, sem nenhuma reforma trabalhista, só pelas mudanças estruturais, serão cerca de dois terços da população trabalhadora com a chamada carteira de trabalho assinada. Isso alarga horizontes de decisão das famílias.

Massa salarial e inflação

O salário real está crescendo. Por salário entendam-se aqui todas as formas de rendimento mensal, que em 2010 já alcançaram 3% acima da inflação no Brasil inteiro. Em 2011 prevemos que ainda haverá um acréscimo de 2,5% em termos reais. Mas o mais impactante é a massa salarial total, que inclui seguro-desemprego, pensões – os benefícios de toda a rede de proteção social. Nesse conceito de massa total de rendimentos, o crescimento atingirá 6,9% acima da inflação em 2010 e 5,8% em 2011. Isso ajuda a explicar muita coisa que aconteceu no Brasil, sobretudo o ambiente político em que estamos inseridos hoje. E a confiança do consumidor, segundo pesquisa regular da Fundação Getúlio Vargas, atingiu seu recorde histórico.

Estamos trabalhando com indicadores de inflação que não se distanciam muito da meta estabelecida. Vários fatores ajudam a explicar por que a inflação está razoavelmente comportada em um país que cresce 7,5%. Parece algo atípico para o Brasil, mas o fato é que as importações estão desempenhando um papel importante. Há competição feroz entre os setores e hoje temos todos eles sendo agredidos por novos players que entram em todas as áreas, nos serviços, na indústria. Isso ajuda a explicar uma inflação moderada e também o fato de não termos inflação relevante vinda de fora, pois na Europa e nos Estados Unidos ela está próxima de zero.

Para 2011 temos índices que convergem para algo não muito longe dos 4,5%, que é o centro da meta. A inflação de serviços seguirá sendo pressionada no Brasil na medida em que as melhoras de renda se mantenham no ritmo observado nos últimos anos. É algo estrutural. Vamos ter de purgar essa pressão durante pelo menos mais uma década, até que a produtividade no setor de serviços aumente bem. Esse é o maior desafio para a política monetária no Brasil, que é a pressão de serviços decorrente de uma duradoura mudança de preços relativos. Já a inflação de bens (exceto alimentos) tende a se manter bem baixa durante bom tempo. Estamos prevendo a inflação de bens duráveis quase zerada em 2011.

Ainda considero nossa meta de inflação muito alta, sou defensor de uma redução de 0,5% a cada quatro anos. O Brasil tem a segunda maior meta do mundo, depois da Guatemala. Temos de caminhar para algo da ordem de 3% num horizonte de dez anos. Isso é fundamental para a queda de juros e, portanto, para o crédito de longo prazo.

A percepção de concorrência acirrada está documentada em pesquisa do Bradesco. Conseguimos desenvolver talvez a maior pesquisa expectacional do país. São 2,5 mil indústrias entrevistadas por mês desde setembro de 2005, com amostra probabilística, cobrindo o Brasil inteiro. Nessa pesquisa estamos observando que houve uma mudança de patamar da percepção de contestabilidade dos mercados, eles estão sendo percebidos como mais contestáveis, mais afetados pela competição.

Isso é algo bom sob o olhar macroeconômico, ainda que incomode as empresas no aspecto micro. Portanto, não trabalhamos, pelo menos neste momento, com aumento de juros no Brasil. Podemos reavaliar isso, dependendo do cenário global, da evolução das expectativas e do ajuste fiscal que esperamos para 2011. Não podemos dizer que a probabilidade de aumento de juros seja zero, mas, como o cenário mundial é de crescimento moderado, não faz sentido acreditar que o mundo maduro ainda experimentará um ciclo desinflacionário e que vamos ter uma pressão inflacionária relevante só nossa. Afinal, a economia brasileira é muito integrada e as economias desenvolvidas manterão os juros reais em patamar negativo.

Com relação à taxa de câmbio, é um tema que afeta a vida de todas as empresas e de certa forma das famílias, mas não vemos nenhuma perspectiva de depreciação cambial relevante num horizonte visível, enquanto o Brasil for percebido como o queridinho dos mercados. Existe uma máxima a que sempre me refiro: tudo o que é positivo valoriza o câmbio, ou seja, atrai financiamentos e investimentos. Hoje somos um polo de atração de negócios, o risco Brasil é desprezível. Somos um país que oferece muitas oportunidades em todos os setores e é natural que a taxa de câmbio se aprecie, a despeito de o Banco Central comprar reservas vorazmente e mesmo que venha a intervir no mercado de derivativos de câmbio. O Brasil vai ter de purgar, durante um par de anos ou mais, uma taxa de câmbio ainda apreciada.

O país está caro e vai continuar assim durante um bom tempo, mas isso faz parte do processo de equilíbrio. Se temos hoje um déficit em transações correntes, ele tem de ser visto como um fator que complementa nossa oferta doméstica e que está garantindo o ciclo de crescimento. Na fase em que o Brasil está, o déficit externo é solução e não problema. Evidentemente, me refiro a algo em torno de 3,5% do PIB em 2011. Em algum momento a taxa de câmbio encontrará seu destino, mas em nosso cenário ela será mantida num patamar parecido com o atual. Está no nível mais apreciado de sua história, praticamente no mesmo de 1994.

Para que se tenha uma ideia, descontando o diferencial de inflação interna e externa, hoje o câmbio real está mais valorizado do que há um ano e meio, quando chegou ao patamar nominal de R$ 1,55. Isso faz parte de nosso equilíbrio macro e não há muito que fazer nesse plano, por mais chocante que possa parecer para alguns setores exportadores de manufaturados. Se o Brasil diminuir o histórico descompasso de oferta e demanda, possivelmente o déficit externo poderá se reduzir e a taxa de câmbio se tornará menos apreciada. Se não tivéssemos esse déficit externo, o Brasil estaria crescendo bem menos ou estaria com pressão inflacionária maior. Acho fundamental o regime de câmbio flutuante no qual operamos. Em algum instante os sinais do déficit externo poderão permitir que o câmbio encontre uma outra trajetória. Neste momento, o câmbio apreciado é uma variável de ajuste que atenua as pressões inflacionárias.

Os investimentos também estão crescendo. Na indústria, 80% dos setores que o Bradesco monitora com entrevistas estão otimistas com seus negócios. É notável essa percepção construtiva do empresariado, sobretudo industrial. A formação bruta de capital fixo em 2010 cresce três vezes o PIB e em 2011 essa relação será de mais de duas vezes. Portanto, o investimento já vem aumentando mais do que o PIB faz um bom tempo. Ele cresce desde 2006 mais do que o consumo das famílias (salvo no momento agudo da crise). Essa é uma grande notícia, porque esse investimento vira expansão de capacidade mais adiante. Isso sugere que aquela “boca de jacaré” que o Brasil sempre teve entre oferta e demanda pode se estreitar um pouco nos próximos anos.

Governos complementares

Minha responsabilidade como economista-chefe do Banco Bradesco é sair da discussão ideológica e política e olhar o Brasil a partir de uma abordagem não apaixonada e com o máximo de distância. Por vezes confundem isso com mero otimismo. É um equívoco. O que quero é apenas acertar a direção das coisas. Considero que foi um luxo o país ter tido Fernando Henrique e Lula, a despeito de tudo o que não funcionou ou que nos incomodou em ambos os governos. O Brasil deu realmente um grande salto de amadurecimento nos últimos 16 anos.

Quais são as mudanças silenciosas que mencionei? Primeiro destaco a mobilidade social acentuada. A cara do Brasil mudou muito, sobretudo nos últimos dez anos. O país construiu o maior regime de proteção social do mundo emergente, segundo pesquisas de alguns organismos internacionais como a OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]. É o maior welfare state entre os emergentes – seguro-desemprego, regime de pensões e programas sociais diretos e afirmativos bastante abrangentes.

O risco político é irrelevante, há um mercado de trabalho formalizado e a demografia poderá ajudar uma enormidade o crescimento da produtividade nos próximos 25 anos. As políticas sociais estão mais focalizadas nos efetivos pobres, apesar de algumas distorções na previdência e nos gastos educacionais. O sistema bancário brasileiro – não somos nós que reconhecemos, mas o próprio BIS [Banco de Compensações Internacionais] e todos os especialistas – tem uma regulação paradigmática, não por mérito do regulador, mas por circunstâncias históricas, por termos enfrentado crises bancárias severas no passado. Temos uma expansão do crédito muito saudável, não temos risco de subprime, até porque a gestão do risco de crédito no Brasil é melhor e mais vigiada. O mercado de capitais está adquirindo uma importância que nunca teve no Brasil e tende a melhorar ainda mais, com medidas que deverão ser anunciadas para dar liquidez a títulos privados de renda fixa de longo prazo e reduzir o papel do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], que hoje atenua a falha de mercado que é a ausência de crédito privado de longo prazo. Essa discussão é complexa e temos de pensar o papel do chamado crédito direcionado no Brasil, que parece bom à primeira vista mas agrava distorções no custo do capital de outras modalidades de crédito.

A produtividade vem crescendo de forma notável em todo o setor privado, que é vibrante e tem visão estratégica. Durante um momento de minha vida profissional, tive o privilégio de acompanhar investidores em visitas a várias empresas de países da América Latina e da Europa central. Posso dizer, sem nenhum exagero, com toda a independência, que o setor privado brasileiro (refiro-me aqui às empresas médias ou grandes) dá de goleada em seus pares no mundo emergente. As empresas privadas brasileiras aprenderam muito com as crises, têm uma visão estratégica e dinâmica, exibindo uma criatividade estupenda – algo que mudou muito no país nos últimos anos.

Isso se reflete no grau de concomitância dos investimentos privados. Está acontecendo um fenômeno interessante, captado por nossas pesquisas: 83% dos setores que monitoramos estão neste momento em processo de investimento. Nos últimos dez anos, é o maior índice de concomitância, ou o que chamamos também de índice de difusão do investimento, que não está concentrado neste ou naquele setor.

O apetite estrangeiro é inédito, e o Brasil passou a ser reconhecido como potência regional. Todo mundo sabe que o país nunca teve esse papel na América Latina e hoje é tratado com destaque. Não estou atribuindo o mérito a este ou àquele governo. Foi um conjunto de amadurecimento e de circunstâncias internacionais que propiciou isso.

Commodities e mudanças silenciosas

O regime de metas de inflação em um governo historicamente de esquerda é algo reconhecido globalmente e é um bom exemplo para o mundo emergente. Os investimentos em infraestrutura, a despeito de tudo o que não funciona, ganham um consenso nos corações e mentes. Como já disse, possivelmente iremos viver nos próximos 15 anos o maior ciclo de investimento em infraestrutura desde os anos 1970.

O Brasil tem os produtos que o mundo está demandando vorazmente, sobretudo o mundo emergente. O país é o maior produtor mundial de commodities, e somos bem dotados delas, tanto agropecuárias como metálicas. Em segundo lugar vem a Austrália e em terceiro os Estados Unidos. Produzimos 16 commodities, entre agropecuárias e metálicas, e nelas ocupamos do primeiro ao sexto lugar no ranking mundial. É sem dúvida um privilégio. Não bastasse, o Brasil é, depois da China, o país emergente com o mais diversificado tecido industrial. Temos uma indústria completa e complexa. Só não produzimos semicondutores. Além disso, o passivo externo do Brasil mudou muito. Antes ele era contratual, essencialmente dívida externa. Hoje é caracterizado pelo investimento estrangeiro, que é um exigível apenas de longo prazo.

Estou tentando transmitir uma visão distanciada das coisas que aconteceram e acontecem no Brasil. Então, por favor, insisto mais uma vez que não me acusem de otimista. As pessoas por vezes me confundem com meu próprio cenário. Tenho de conviver com esse desconforto.

Os problemas fiscais relativos à qualidade do gasto são muito importantes. A carga tributária é fortíssima. Precisamos seguir em busca de um ajuste das contas públicas para que as despesas totais aumentem abaixo do crescimento nominal do PIB brasileiro. Se isso for perseguido, muitas reformas poderão ser endereçadas mais facilmente no Brasil. Daqui para a frente elas deverão focar o lado da oferta, de quem produz e de quem investe.

No final das contas, é possível que já estejamos vivendo um aumento gradual de produtividade. A dificuldade de medir isso é imensa. Acho que as medidas de estoque de capital no Brasil estão subestimadas. O foco tem de continuar no aumento do estoque de capital físico e humano. As reformas devem ter isso como uma verdadeira obsessão.

Acho que, independentemente das condições favoráveis globais, o governo Lula teve o mérito de ter exercitado certa radicalidade nas opções sociais. Ou seja, com a combinação de preservação da estabilidade, graças ao trabalho eficiente do Banco Central, e políticas sociais ousadas, a desigualdade vem sistematicamente se reduzindo. A manutenção da estabilidade tem sido decisiva. Essa é uma fórmula vencedora. A pobreza no Brasil continua caindo e o poder de compra dos assalariados aumentou.

Em 1999 eram necessários quase 160 salários mínimos para comprar um carro popular. Hoje são necessários 56. Outros aspectos sociais também poderiam ser ressaltados. O número de filhos por mulher despencou, isso expressa melhora na qualidade de vida. O atual crescimento demográfico no Brasil é de 1%, e a população tende a aumentar até um pico em torno de aproximadamente 220 milhões lá por 2040 e depois começará a cair.

No plano da educação, nosso principal calcanhar de Aquiles, a despeito do atraso brasileiro na comparação com a Ásia emergente e mesmo com a América Latina, não podemos deixar de reconhecer que está havendo uma evolução favorável do número de anos de instrução da população. O foco deveria ser cada vez mais o ensino básico e fundamental. Temos já cerca de 40% da população brasileira com mais de dez anos de escolaridade, o que equivale ao universitário incompleto. Graças ao boom do ensino universitário privado, que é um fenômeno extraordinário, mudanças qualitativas ocorrem na formação técnica de segmentos jovens da sociedade.

Muita gente tem uma visão crítica do ensino privado universitário. Eu leio de modo diferente. Acho que é muito positivo, na medida em que temos cerca de 7 milhões de jovens em universidades privadas ganhando conhecimento técnico, produtividade e eficiência, entrando em contato com novos métodos de gestão, de marketing etc. Onde estariam esses milhões de brasileiros se não tivéssemos as faculdades privadas que proliferaram nos últimos anos? Óbvio que não farão pesquisa de ponta. Longe disso. Mas estariam por aí vagando pelas ruas com baixas perspectivas de inserção, na medida em que o ensino público universitário certamente não iria absorvê-los. É algo que muda a cara de um país do ponto de vista da produtividade, mas não temos como aferir isso a olho nu.

O que mais me chama a atenção é a mobilidade social. Isso é algo que nós, no departamento econômico do Bradesco, temos monitorado de forma mensal, quase que em alta frequência. Em janeiro de 2004, tínhamos 38,73% da população brasileira na classe C, por exemplo. Hoje são 54,36%. A classe E representava 35,4% da população há seis anos, hoje corresponde a 18,14%. Concretamente, de janeiro de 2004 até setembro de 2010, os segmentos sociais A, B e C somados se expandiram o equivalente à população da Espanha: 46 milhões de brasileiros a mais.

Seria ingenuidade negligenciar o efeito disso nas estratégias empresariais. Além disso, todos os estudos sobre consumo no mundo identificam que a faixa etária entre 20 e 59 anos é a que concentra o maior poder de consumo, e hoje temos 72 milhões de brasileiros nessa faixa de idade, nos segmentos A, B e C. Em dez anos projetamos quase 90 milhões de brasileiros nessa situação. Ou seja, o Brasil tem ainda uma força dinâmica que se sustentará nos próximos anos.

Bancarização acelerada

Chama a atenção o processo de bancarização que foi possível desenvolver no Brasil nos últimos anos. São 134 milhões de contas bancárias no Brasil, um crescimento meteórico nos últimos dez anos. Temos 91 milhões de contas de caderneta de poupança e 136 milhões de cartões de crédito. Há 35 milhões de pessoas que usam internet banking em bases regulares. Nesse contexto, a relação crédito/PIB já está próxima de 50%. O crédito hipotecário também vem ganhando uma importância que nunca teve, daqui a um ano e meio o financiamento habitacional vai superar pela primeira vez na história o de carros.

Portanto, estamos falando de grandes transformações que nos obrigam a um esforço de especulação sobre o estágio onde se encontrará o Brasil nos próximos dez ou 15 anos. Onde estará a renda per capita brasileira nesse horizonte? Em 1985 ela estava em US$ 8,5 mil, hoje está próxima de US$ 11 mil. Em 2020 estimamos que possa estar entre US$ 16 mil e US$ 18 mil. Um pouco mais do que isso? Não descarto a hipótese.

Concluo dizendo que recentemente, em Washington, participei de um magnífico debate sobre o futuro da China e da Índia. A questão central era qual das duas economias era a mais promissora. Durante duas horas se debateu tudo o que se possa imaginar sobre ambas. Em momento algum houve qualquer menção ou referência aos futuros governos dos dois países. Ou seja, nada de política, nada que sequer se parecesse com risco de mudança no rumo da política econômica. Partia-se do pressuposto de que a direção estava dada pelos fundamentos e por estratégias amplamente consensuais sobre o futuro. Era tão óbvio que não havia incentivos a andar para trás nos dois países que os brilhantes debatedores só especulavam sobre temas e questões de longo prazo.

No Brasil estamos longe disso, ainda que pela primeira vez na história os mercados tenham desprezado olimpicamente riscos políticos curto-prazistas decorrentes do processo eleitoral de 2010. Talvez a sociedade já tenha se dado conta de que não haja muita diferença nos caminhos que levam ao crescimento e ao desenvolvimento econômico. Incontestavelmente, todo mundo sabe o que precisa ser feito no Brasil nos próximos anos em termos de reformas. Não faz sentido achar que haja alguns privilegiados clarividentes e outros cegos para a realidade.

Ainda assim me chama a atenção que no Brasil se discuta exageradamente a economia de curto prazo. Há uma verdadeira overdose de curto prazo nas páginas dos jornais, como se houvesse um tremendo risco de descarrilamento da economia caso essa ou aquela medida não seja tomada prontamente. Em minha visão, esse tipo de risco é desprezível. Falta aos analistas um pouco mais de distância para reconhecer que o país já superou, faz tempo, seus riscos de curto prazo e que agora seus desafios são essencialmente de longo prazo.

O que interessa na prática para um país como o Brasil são dois temas: infraestrutura e educação. O resto é adereço para ocupar páginas e páginas de jornais. Não nego que haja desafios imensos no país, mas o que me parece desmedido é a dúvida persistente de alguns sobre o interesse de governantes em enfrentá-los. Acho que há uma tendência geral (diga-se de passagem, não é só no Brasil) a subestimar a inteligência do rival político e seu discernimento para saber o que precisa ser feito. O debate político frequentemente expõe certa arrogância dos que acreditam deter o monopólio do caminho correto a seguir. Nós, economistas, somos muito pretensiosos, temos de admitir mais esse pecado.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – Apesar dessa visão otimista, é bom lembrar a rigidez estrutural no Brasil no que diz respeito, por exemplo, à carga tributária bruta, com 37% em média do PIB e com tendência a não baixar nos próximos anos. Outra rigidez impressionante é a do custo do dinheiro, seja para consumo, seja para investimento, enquanto a arrecadação de tributos federais bate recordes. Resumo da ópera: as contas públicas estão se deteriorando rapidamente. De fato, o mercado consumidor está em expansão, devido ao crédito muito fácil e caro e ao aumento da renda real de várias categorias profissionais, além do próprio salário mínimo. Mas quero lembrar que a propensão a consumir nas classes de baixa renda é muito alta, porque elas têm uma série de necessidades não atendidas. E isso leva à inadimplência.

Os investimentos estrangeiros no Brasil tendem a crescer, até pela capitalização da Petrobras, mas em títulos do Tesouro também. Os títulos brasileiros são mais rentáveis que os americanos. Lembro, porém, que empresas estrangeiras repatriaram muito capital em 2009 e 2010, o que deixou esse saldo negativo no balanço de conta corrente.

O welfare state brasileiro é muito interessante, porque tem o Bolsa Família, com um número de beneficiários muito grande, mas o valor é baixo. Em 2010 foram R$ 11 bilhões, com previsão para 2011 de R$ 13 bilhões. Individualmente é um valor baixo, um cristalizador da pobreza. Quem diz isso é a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. A aposentadoria do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] também é baixíssima.

O conceito de classe média que adotamos é estranhíssimo. Por exemplo, Marcelo Neri diz no jornal da Fundação Getúlio Vargas que a classe C ganha de R$ 1.126 a R$ 4.526. Um indivíduo que recebe R$ 1.500 por mês, valor superior ao limite inferior da classe média, se tiver dois filhos numa escola privada no Recife, por exemplo, já vai gastar somente nisso R$ 1.090 de mensalidade. Se optar por um seguro-saúde, vai pagar no mínimo R$ 500. Somente com dois vetores de gasto se acaba a classe média.

Em relação à produtividade, a ONU [Organização das Nações Unidas] divulgou recentemente um trabalho em que mostra que caímos, nesse indicador, da 56ª posição para 58ª no mundo, e que o Brasil é a 101ª nação em termos de corrupção no setor público. Em desvio de dinheiro público estamos na 126ª posição.

Outra questão é a infraestrutura, que está à beira de um colapso. Não vejo perspectiva de investimentos, seja no orçamento da União, seja pelas estatais. Há dificuldades nesse âmbito no Brasil e, além disso, estamos perdendo um espaço muito grande na venda de manufaturados ao exterior. A China está tomando mercado dentro e fora do país.

Finalmente, quanto à universidade privada, o senhor tem razão, melhorou muito do ponto de vista da quantidade de alunos, mas o compromisso com a pesquisa básica é zero.

OCTAVIO DE BARROS – Quanto à questão fiscal, é óbvio que o Brasil precisa melhorar muito, e isso vai acontecer quando se conseguir emplacar a regra básica defendida faz tempo por muitos analistas: o gasto público nominal deve crescer menos que o PIB nominal durante dez anos. Isso endereçaria bem o problema da carga tributária e também outras reformas como a trabalhista. Acredito que seja possível costurar politicamente esse tema. Ninguém está falando em queda em termos absolutos do gasto público, mas apenas em crescimento nominal do gasto menor que o do PIB. É algo absolutamente plausível.

No comitê de economia da Câmara Americana de Comércio organizei recentemente um seminário sobre a “agenda do destravamento” do desenvolvimento. Há muita coisa que emperra o investimento no Brasil e obviamente o custo do capital é um grande desafio, assim como a carga tributária, a falta de infraestrutura, nossas defasagens no plano educacional. Todo mundo sabe qual é a agenda do país para melhorar a eficiência e a produtividade. Não vou discordar de muitos pontos que o senhor mencionou, mas tento ver os processos cumulativos incrementais do ponto de vista institucional que uma sociedade crescentemente democrática adquire. Não tenho dúvida de que essas agendas ganham maturidade na medida em que há avanço institucional.

Paradoxalmente, a situação fiscal do Brasil é a melhor do G20 neste momento. Entre todos esses países é a menor relação do déficit nominal sobre o PIB. Mas temos uma estrutura de gastos muito distorcida. Somos uma das nações do mundo que têm o maior peso de transferências a pessoas em proporção ao gasto público total. Do orçamento da União, 76% são transferências a pessoas. Nos países com maior peso do Estado na economia, esse percentual é da ordem de 65%. Então precisamos fazer uma reforma da previdência que reduza as distorções e que, pelo menos, tome em consideração o aumento de esperança de vida da população.

Ou fazemos um ajuste da previdência bem feito politicamente ou mudamos a regra do salário mínimo, porque do jeito que está não vão sobrar recursos orçamentários para os tão necessários investimentos públicos. Previdência não é coisa para amadores ou para ser tratada ideologicamente. Precisamos de uma reforma nas finanças públicas para melhorar a capacidade de investir do Estado, que é pequena justamente porque o orçamento é comprometido com transferências a pessoas. Quero deixar claro que temos de preservar nossas políticas sociais focadas nos pobres, mas temos de protegê-las fiscalmente.

Com relação à mencionada inadimplência dos consumidores, minha visão é oposta: ela está estruturalmente em queda livre no Brasil. O mercado de trabalho explica isso. Temos cálculos específicos do Banco Bradesco, monitoramos a inadimplência com lente de aumento e ela está caindo de forma consistente. Seria até um paradoxo imaginar tamanho ganho de renda, um mercado de trabalho vibrante, o desemprego em queda como estamos vendo e a inadimplência aumentando. Então quem estiver dizendo que a inadimplência está crescendo no Brasil está enganado. Monitoramos o comprometimento de renda mês a mês no Brasil e não acendemos a luz amarela. Trabalhamos com um desemprego de 6,2% em 2011, o que dá certo conforto à qualidade do crédito.

ISAAC JARDANOVSKI – A notícia a respeito disso saiu truncada, falava em 11% como se fosse a inadimplência, mas na verdade ela cresceu 11%, passando a 4,8%.

OCTAVIO – Esse tipo de dado é muito volátil. Com relação ao welfare state brasileiro, vamos direto ao ponto. Há dois profissionais que reputo como os melhores especialistas desse tema – Ricardo Paes de Barros, do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], e Marcelo Neri, da FGV [Fundação Getúlio Vargas]. Paes de Barros é um dos melhores do mundo no entendimento de políticas sociais. Marcelo Neri também é um craque.

Todo mundo sabe que o Bolsa Família é um dos melhores programas sociais do mundo emergente. Ainda temos muita análise a fazer para entender bem seu sucesso, mas possivelmente está entre os mais eficientes e baratos. Pode ser aperfeiçoado para evitar que o beneficiário se sinta funcionário público etc., mas tem um custo baixo e contribui para o aumento do estoque de capital humano com potenciais reflexos para as futuras gerações. O desafio é pensar qual é a sustentação, a médio e longo prazo, de toda essa rede de proteção social, que envolve previdência e seguro-desemprego, programas afirmativos etc. Na verdade esse é um desafio para todos os países. Temos de ver se a economia gerará ganhos de produtividade para sustentar isso.

Com relação à exportação, é evidente que estamos vivendo uma mudança de preços relativos na economia mundial a favor das commodities, em detrimento dos manufaturados. Isso ficou óbvio nos últimos dez anos e considero que continuará na próxima década. Lembro também que países como Canadá, Austrália e Nova Zelândia são muito mais dependentes de commodities do que nós e têm índice de desenvolvimento humano entre os dez melhores do mundo.

Hoje só não vê quem não quer que atividades agropecuárias e também de commodities metálicas são cada vez mais intensivas em tecnologia e conhecimento. Então precisamos manter certa distância e entender essa situação como um privilégio. Não vemos o risco caricato de que o Brasil se torne uma economia meramente primário-exportadora.

Temos de lembrar que além de ser o país mais bem dotado como produtor mundial de commodities, o Brasil, depois da China, tem o mais diversificado tecido industrial do mundo emergente. Aqui se produz tudo, à exceção de semicondutores. Não estou querendo dizer que todos os setores são eficientes, mas temos uma indústria diversificada e um setor privado industrial criativo, flexível e com visão estratégica.

É evidente que há alguns setores industriais “cortando os pulsos” por falta de competitividade, por conta do câmbio apreciado e dos custos altos em vários planos. O que reduz nossa competitividade é muito mais o chamado custo Brasil, que tem pouco a ver com câmbio. Considero, porém, que o setor industrial brasileiro hoje está com uma visão muito construtiva de seu próprio negócio, a despeito da taxa de câmbio apreciada.

Quanto ao tema da educação, nunca esperarei que as escolas universitárias privadas no Brasil, salvo algumas nobres exceções, façam pesquisa de alta qualidade, nem acho que esse seja o desafio delas. Talvez algumas ilhas de excelência possam fazer. O que espero realmente é que essa horda de jovens brasileiros que não tinha nenhuma perspectiva educacional depois do curso secundário encontre nas faculdades privadas aquilo que no passado foram as escolas técnicas. Importante é que esses jovens entrem em contato com métodos de gestão, de marketing, agreguem conhecimento ao seu dia a dia e aumentem sua empregabilidade. Isso tudo amplia a produtividade e favorece o desenvolvimento do país. A pesquisa de qualidade é majoritariamente feita nas universidades públicas, que no Brasil absorvem 70% do orçamento da educação. Uma distorção, em minha visão. Gasto em educação deveria focar da pré-escola ao fundamental.

ROBERT APPY – Um dos raros economistas que havia previsto a crise internacional alertou o Brasil para que não caia no ufanismo diante do resultado obtido. É uma advertência importante e depois de sua exposição fiquei um pouco assustado. O senhor não falou sobre o déficit público, o drama de nossa balança comercial, em que uma taxa cambial supervalorizada tem por efeito o aumento das importações e redução das exportações.

Quando se eliminam as commodities, cujo mercado hoje depende unicamente dos chineses, o resultado é uma desindustrialização. Decidimos importar todos os produtos que podem ser fabricados aqui e isso se agrava a cada dia.

Sobre o déficit público, não há dúvida de que em 2010 o governo foi movido apenas pela campanha eleitoral, com gastos preocupantes, de efeito prolongado sobre nossa despesa pública. Finalmente, o senhor afirma que não há risco político e penso o contrário. Basta ler algumas declarações do antigo ministro da Casa Civil, José Dirceu.

OCTAVIO – Com toda a admiração que tenho pelo senhor, vou desafinar um pouco, se me permite. A tese da desindustrialização no Brasil me parece uma falácia. Muito pelo contrário, a indústria brasileira está cada vez mais forte, mais parruda, com visão estratégica de médio e longo prazo, investindo como nunca e apostando no futuro. É claro que alguns setores estão sendo afetados de forma agressiva pela invasão chinesa. Sei, por exemplo, que acabou a indústria de buzinas, de pentes ou de guarda-chuvas. É tudo chinês ou vietnamita hoje em dia. Não vou entrar nesse mérito, porque meu olhar é macro. Faço pesquisa e posso lhe garantir que o setor industrial brasileiro no agregado está cada vez mais forte, a despeito da competição.

O que governa a exportação de manufaturados é essencialmente a demanda mundial, não tanto o câmbio. Ele tem influência, é óbvio, seria uma ingenuidade dizer o contrário, mas todos os modelos econométricos mostram que as exportações de manufaturados são determinadas fundamentalmente pela demanda mundial. E esta não tem hoje perspectivas alvissareiras, pelo menos no horizonte de uns dois anos, para produtos manufaturados cuja demanda está em economias como os Estados Unidos e Europa.

Não é só a China que é voraz consumidora de commodities, mas ela salvou o Brasil. Deu-nos de presente todo o cenário que descrevi. É pobre a análise contrafactual, mas imaginem o que seria de países como a Coreia ou o Japão, que não têm nenhuma commodity, se dispusessem de recursos naturais. Como teria sido seu desenvolvimento? O Brasil é bem dotado de commodities e nossa história industrial, inclusive, está ligada a elas.

Nosso déficit externo, num olhar macro, está salvando o país nesta fase. Sem ele, teríamos pressão inflacionária, e não conseguiríamos sustentar o crescimento fantástico, porque o déficit externo é um complemento da oferta doméstica.

Se a demanda corre muito mais veloz do que a oferta, é evidente que isso gera déficit. Se achamos que daqui para a frente o Brasil crescerá de forma mais equilibrada, essa “boca de jacaré” entre oferta e demanda a médio prazo tenderá a evitar que o déficit externo se agrave no futuro. Em 2011 o déficit externo ainda crescerá bem. Estamos prevendo um número que assusta muita gente, US$ 70 bilhões, 3% do PIB. Mas é totalmente financiável. O mundo hoje está disposto a financiar. O país contará com US$ 320 bilhões de reservas em 2011, não temos mais o fardo histórico da dívida externa contratual, somos credores líquidos, não temos incerteza institucional. Não há incentivos para andar para trás do ponto de vista econômico e institucional macro, nem mesmo do político. Claro, falta uma reforma política séria que elimine distorções regionais e o oportunismo caricato de determinadas candidaturas. Mas fato é que quando comparamos nossa democracia com a mexicana, por exemplo, vemos que esta última é primitiva perto da brasileira.

Quanto às finanças públicas, não discordo, sou um dos maiores defensores da reforma da previdência. Hoje temos a idade média de 28,3 anos e em 2050 a idade média do brasileiro será de 40 anos. De todos os 30 principais países do mundo o nosso é o que vai envelhecer mais. Então, se não fizermos uma reforma da previdência que pelo menos introduza o elemento “maior esperança de vida” e investirmos pesado em educação, daqui a 30 ou 40 anos seremos um país de “pessoas idosas sem educação”.

Fabio Giambiagi, meu parceiro intelectual em alguns trabalhos, dá um exemplo: hoje, com apenas 6% da população brasileira acima de 65 anos, gastamos aproximadamente 12,5% do PIB com previdência. A Europa tem 12,5% da população acima de 65 anos e compromete com previdência o mesmo percentual do PIB. Ou seja, o Brasil nem sequer envelheceu e já gasta como um país velho em termos de previdência. Então é nossa responsabilidade, sem ferir direitos adquiridos, encontrar fórmulas de transição que permitam, para os que entram no sistema a partir de agora, novas regras de previdência, um novo desenho. Precisamos, no mínimo, introduzir o fator demográfico nos cálculos do tempo da aposentadoria. A esperança de vida aumenta uma enormidade e não podemos ficar passivamente assistindo enquanto o carro bate no muro. Além disso, inacreditavelmente, gastamos 3,2% do PIB apenas com a rubrica “pensões por morte”. Sempre digo que a previdência não é para amadores. É coisa técnica para profissionais e para gente competente politicamente, capaz de endereçar soluções de transição eficientes.

JULIAN CHACEL – Casimiro Ribeiro, um economista de boa cepa que foi diretor do Banco Central e assistente de Octavio Bulhões, dizia que qualquer exposição de um economista começava com esta frase: a situação se deteriora satisfatoriamente. E se encerrava com uma indagação: há perigo de as coisas melhorarem? Sua exposição eu diria que é o contrário do que diria Casimiro: não há perigo de as coisas piorarem, a situação melhora a cada dia. Do ponto de vista de método, não podia ser diferente. O senhor utilizou apenas variáveis macroeconômicas e penso que em seu departamento de pesquisas talvez trabalhe em determinadas circunstâncias num nível menor de desagregação. A visão macro às vezes esconde um pouco aquelas mudanças silenciosas a que o senhor se referiu.

Como eu não posso fazer uma intervenção longa, vou falar agora em goulots d’étranglement [gargalos], ou seja, na perspectiva dos próximos três ou quatro anos é preciso ver o lado real da economia, que o senhor focalizou de modo muito rápido, porque não poderia ser de outra maneira. Minha preocupação é com a recuperação da infraestrutura, que está dilapidada, e com sua expansão futura. Por exemplo, não há uma visão clara do que pode representar, em termos de avanço de produtividade, o transporte intermodal. Fala-se dele, mas na verdade é um ente abstrato.

O senhor falou em produtividade sistêmica, e no que respeita à infraestrutura há uma enorme incapacidade gerencial, que me faz inclusive temer pela organização da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. Tenho dúvidas a respeito da capacidade gerencial do país para recuperar uma infraestrutura que pressupõe obras extremamente complexas.

EDUARDO SILVA – Sob o ponto de vista de infraestrutura de transporte, o que se vê é que vamos levar muitos e muitos anos para fazer o entrosamento de todas as modalidades. Há dificuldades reais, o fato físico, não estamos falando de economia nem de dinheiro.

OCTAVIO – Julian Chacel, o senhor não pode imaginar como me encanto com as lições e as mensagens que recebo de pessoas mais experientes como o senhor. Aprendo muito e gosto sempre de ouvir o contraponto. Por isso no Bradesco tenho vários consultores externos e dou preferência a profissionais que pensam diferente de mim. Pela terceira vez quero dizer que uma das coisas que mais me incomodam na vida é ser chamado de otimista. Não sou pago nem orientado para ser otimista. Posso no máximo admitir que tenho uma visão construtiva do Brasil no plano institucional. Meu foco é traçar o cenário que considero mais provável. E nos últimos cinco anos aquele que o departamento econômico do banco previu foi positivo, apesar dos milhares de problemas com os quais convivemos. Poderíamos marcar outra palestra em que só me concentrasse em tudo aquilo que é problema no Brasil.

Gosto de olhar os níveis de desagregação também, não só a questão macro. Porém, o acompanhamento macro apenas naquilo que nós, economistas, chamamos de “alta frequência” ofusca nossa capacidade de ver as mudanças silenciosas que ocorrem no país. Visito muito o chão da fábrica e sei perfeitamente tudo o que inferniza a vida das empresas no Brasil e as deficiências de um país emergente, cheio de desafios. Converso em média quatro ou cinco vezes por dia com empresários, industriais ou não. Então estou sensível a tudo o que incomoda e irrita a comunidade empresarial. Em suma, acho que levantar as coisas que não funcionam é um tipo de abordagem e já fiz palestras específicas monotemáticas sobre tudo o que é ruim no Brasil. Aí as pessoas vão dizer que sou pessimista. Não sou, estou apenas fazendo meu trabalho.

Quando afirmo categoricamente que o setor industrial hoje está reagindo bem à conjuntura e de uma forma agregada está com uma visão muito construtiva de seu próprio negócio, não nego que esteja também suportando as dores de uma economia que se abre cada vez mais, sem contar os setores que estão sofrendo por conta da invasão chinesa ou do câmbio. A economia brasileira, historicamente fechada, está se abrindo e isso dói, mas no olhar macro isso está ajudando o Brasil a aumentar sua produtividade.

Nossa infraestrutura realmente é africana em vários planos. Viajo muito e posso dizer que o Brasil está muito defasado no setor de transportes. Mas acredito que o pulo do gato nessa área possivelmente virá em 2011. O setor privado em tese está muito interessado em participar da infraestrutura. Só que não foi ainda suficientemente mobilizado para isso.

Ainda em termos de infraestrutura, o Brasil tem um velho vício: é dependente do modelo “obra no orçamento”. É muito engessado e tem um sistema sujeito à corrupção, a problemas que todos conhecemos. Minha intuição é que, passadas as eleições, vamos ter certa mudança de atitude em relação ao envolvimento do setor privado em infraestrutura, através de todos os mecanismos já conhecidos de concessão e outras coisas. É só dar ao setor privado maior horizonte de conforto jurídico que a infraestrutura no Brasil se expande espetacularmente.

ADIB JATENE – Todos sabem que atuo na saúde e sempre fui muito preocupado com o financiamento dessa área. Os países que têm sistemas de saúde públicos, como o nosso, Alemanha, Espanha, Canadá, Austrália, Reino Unido, Suécia, gastam na média 6,5% do PIB, e o dispêndio público é muito maior que o privado. No Brasil, direcionamos à área em 2008 3,5% do PIB. O orçamento de 2010 é da ordem de R$ 1,7 trilhão, sendo 54% dele para serviço da dívida, gastos financeiros etc. Dos 46% que sobram, as transferências para estados e municípios, os salários de funcionários e encargos consomem mais ou menos 17%. A previdência social sozinha responde por outros 17%. De maneira que para despesas discricionárias sobram 10%, e é nelas que se incluem a infraestrutura e todos os gastos de governo. Não há dinheiro e a saúde não consegue captar o volume de recursos de que necessita para chegar a 6,5% do PIB. Não sei como resolver essa equação.

OCTAVIO – Não sou especialista em saúde, mas penso que o Brasil precisa enfrentar o desafio de pensar esses temas fundamentais, como a saúde, sempre em profundo diálogo com a educação, que é uma espécie de tratamento preventivo. Tenho aprendido que a saúde no Brasil talvez falte mais onde há maior precariedade nas políticas sociais. É um dos maiores desafios do novo governo.

JATENE – Gastamos com educação mais do que com saúde.

OCTAVIO – Sim, e tenho a impressão de que a educação vai ganhar mais peso. Isso pode mitigar a médio e longo prazo a necessidade de recursos para a saúde. É o que disse: o orçamento é muito concentrado em transferências a pessoas e sobra muito pouco para investimento público.

JATENE – Uma vez disse a Lula que ele estava financiando a especulação financeira internacional. Ele achou ruim.

OCTAVIO – Se o senhor me permite, considero que esse tema é complexo e suscita algumas leituras que talvez sejam superficiais. O Brasil ainda está em processo de construção monetária, estamos indo numa boa direção, acreditem. O país tem um passado que o condena em vários aspectos ligados à inflação, estamos em processo de construção institucional, de reputação, em que o papel da autoridade monetária é fundamental. Estamos construindo uma moeda, seguindo em boa direção, e num horizonte curto de dois ou três anos existem possibilidades de convergir para taxas de juros semelhantes àquelas que são observadas em países emergentes com características similares ao Brasil.

Hoje gastamos alguma coisa em torno de 5% do PIB com serviço da dívida, chegamos a gastar 8,5%. Vem caindo ano após ano o peso dos juros da dívida sobre o PIB como despesa do Brasil, o que é muito bom. Os países desenvolvidos gastam de 3,5% a 4%, e estamos caminhando para isso. Os juros reais estão em 5,5%, e penso que temos grande chance de alcançar taxas, em uns quatro anos, em torno de 3% ou 2,5%. Isso colocará desafios imensos para o país, pois a taxa de juros é alta no Brasil porque outro índice – a “taxa de impaciência da sociedade” – é muito alto. Ou seja, a sociedade brasileira, por razões várias, não está disposta a esperar para ter acesso a bens de consumo e a serviços que expressam melhoria de vida.

A taxa de juros alta significa que a sociedade topa pagar o preço que for pelos recursos que lhe darão acesso imediato a seus objetos de desejo. Pensemos o que seria hoje a pressão de demanda (sem resposta compassada de oferta, salvo via importações e déficits crescentes) com a metade dos juros reais que temos hoje. O Banco Central administra esse processo de construção institucional monitorando a demanda e acompanhando a evolução da taxa de impaciência social e o ritmo de expansão da oferta.

Não dá para achar que a política monetária vai resolver o problema fiscal, é um equívoco. Ela não pode ter dominância fiscal, não pode ser feita em função disso. Temos de achar um caminho para esse tema. Concordo que os economistas se indignam pouco com o tema dos juros mais altos do mundo, como se fosse uma fatalidade brasileira. Mas o tema tem de ser endereçado de forma inteligente e não por artifícios ou atalhos. Acho que a redução do descompasso de oferta e demanda no Brasil pavimentará a redução de juros. Nesta fase, precisamos é focar no lado da oferta, de quem produz ou investe.

LUIZ GORNSTEIN – Como se faz para baixar o juro da caderneta de poupança? Sempre há uma demagogia nessa história de CDI, liquidez diária, recompra automática de títulos. Isso me parece que é um problema complicado, não é?

OCTAVIO – Isso requereria uma conversa muito longa, e foge um pouco de nosso objetivo. O cenário macroeconômico benigno e a tendência de redução da taxa de juros no médio e no longo prazo não só promoverão o desenvolvimento do sistema financeiro nacional como trarão bons desafios, sendo um deles a remuneração da caderneta de poupança. Atualmente, ela é de 6,17% ao ano mais a TR [taxa referencial], ou seja, rentabilidade incompatível com uma taxa básica de juros de um dígito. Dessa forma, torna-se inevitável uma discussão sobre como viabilizar a caderneta de poupança no longo prazo.

Como solução imediata, a redução do patamar atual de rentabilidade pode auxiliar, ou seja, o fato de zerar a TR e reduzir a remuneração fixa, lembrando que ela está estabelecida por lei, tende a minimizar o problema. Contudo, não é uma solução definitiva. Assim, medidas que busquem uma resolução eficiente serão propostas, e provavelmente estarão relacionadas a novos indexadores para a caderneta, como um percentual da taxa de juros ou do índice de preços. De qualquer maneira, ainda não há uma solução definitiva e os estudos estão avançando. Vale ressaltar que o impasse da remuneração da caderneta não é apenas financeiro, tendo impacto jurídico relevante, principalmente do ponto de vista do crédito imobiliário.

Não temos passivo de longo prazo no Brasil. Por isso, faltam ativos de longo prazo, salvo o crédito que o BNDES concede. No Acordo de Basileia 3, um dos itens aprovados é um índice de liquidez que exige que todo financiamento de longo prazo tenha um passivo bancário mínimo – poupança ou captação igualmente de longo prazo. O Brasil hoje financia o crédito hipotecário de 20 ou 30 anos com caderneta de poupança que tem liquidez de 30 dias.

 

ISAAC – Sobre o Basileia 3, pelo que está sendo cogitado, vai se exigir mais capital dos bancos e maiores reservas num prazo médio. Penso que isso, de certa forma, não será problema para os grandes bancos.

OCTAVIO – No Brasil, não. Fora talvez seja.

ISAAC – Mesmo assim, você não vê nisso o risco de maior concentração no setor bancário, já que os bancos pequenos e médios terão maiores dificuldades com as novas normas?

OCTAVIO – É uma boa reflexão. Os formuladores de políticas macro, sobretudo depois de uma hecatombe financeira como a que observamos recentemente nas economias maduras, se preocupam muito com a saúde do sistema bancário. Sistema financeiro frágil é sinônimo de problema, para todos os setores. No bojo desse imperativo maior que é o robustecimento das instituições financeiras, certamente vem também alguma concentração bancária. Esse é um tema da maior pertinência.

ISAAC – Na verdade o Brasil está num Basileia 2,5...

OCTAVIO – O Brasil está muito bem do ponto de vista regulatório, o grau de concentração bancária aqui não é maior do que aquele que existe em outros países, está até abaixo do de outros emergentes. Com a obsessão de fortalecer o sistema bancário, criamos instituições muito grandes e então a concentração bancária é quase um corolário desse imperativo. É um tema importante para se pensar no futuro, mas agora, do ponto de vista regulatório, estamos muito bem.

CLÁUDIO CONTADOR – No curto prazo é possível o divórcio entre política e economia, mas no longo prazo sabemos que a política acaba contaminando a economia. Essa é a grande preocupação. Os eventos dos últimos anos traçam um futuro não muito róseo em termos de influência na área econômica e já temos algumas sementes problemáticas. Uma delas é a questão do setor público, que precisa de urgente saneamento, assim como a previdência, mas o fato é que não vejo ambiente para uma reforma saudável, honesta, decente. Isso será um problema sério. No tocante ao Bolsa Família, trata-se de um programa fantástico, mas contém um erro seríssimo: não tem porta de saída. Depois que a pessoa entrou, não sai mais.

OCTAVIO – Não concordo muito. Os especialistas veem melhoras nesse tema. Segundo eles estamos tendo um fluxo de saída do Bolsa Família até maior do que eles mesmos imaginavam originalmente. Depois do aumento do estoque de capital das famílias é difícil imaginar que todos vão se sentir funcionários públicos eternos.

CONTADOR – De qualquer forma é um programa barato. Outra questão é que não poderemos viver eternamente com poupança externa, com esse déficit previsto de US$ 50 bilhões. Ela ainda é interessante, mas não pode substituir a poupança do setor público, em primeiro lugar, e depois do privado.

OCTAVIO – Suas perguntas são as minhas também, no fundo estamos todos no mesmo barco, nos colocando as mesmas questões. Não pensem que tenho a resposta. O que temos a fazer são as perguntas certas. Começando pela poupança externa, uma questão que vale a pena fazer é: o Brasil será uma Austrália? A Austrália viveu cerca de dez anos consecutivos com déficit externo de 8% do PIB sem nenhuma crise, só que com uma política macro estupenda do ponto de vista fiscal. E deu um salto de crescimento, sendo mais dependente do que o Brasil de commodities.

Tenho uma intuição de que o Brasil vai se firmar nesse cenário global nos próximos 15 ou 20 anos. Já é o maior produtor mundial de commodities entre metálicas e agrícolas e vai se consolidar ainda mais nessa direção, o que não significa necessariamente apostar na tese da desindustrialização, porque é imenso o setor industrial ligado a commodities no Brasil. Mas também não gosto de imaginar nosso país como eternamente dependente da poupança externa.

O Brasil vai ter de enfrentar o desafio de aumentar a poupança doméstica. Não sabemos se pelo lado das famílias, que no país têm uma propensão gigantesca a consumir, ou pelo lado das empresas. Mas penso que estamos indo na boa direção: a principal fonte de poupança é o lucro das empresas, lucros retidos. O setor público precisa fazer um esforço maior para reduzir sua dívida em relação ao PIB. Se fizer isso, por definição estará poupando.

Quanto às remessas de lucros mencionadas, discordo da visão de que sejam um problema. Ao contrário, são a solução. Quanto mais lucros remetidos para os acionistas não residentes, mais sinais de que as empresas estão muito bem e prontas a investir mais. O Brasil é a economia emergente mais internacionalizada do mundo.

FRANCISCO BARBOSA – Você disse que está vendo coisas inéditas. Realmente, pelos dados mostrados, percebemos muita coisa nova. Mas algo que a gente vê sempre, pelo menos nos últimos 30 anos, é crescimento medíocre do Brasil. Se confirmarmos 7,5% em 2010, a média da década estará abaixo de 4%.

OCTAVIO – É isso mesmo, 3,65%.

FRANCISCO – Com juro composto, usando uma taxa média, dá isso. No governo Fernando Henrique ficou perto de 2,5%.

OCTAVIO – Foi 4,07% com Lula e 2,31% com Fernando Henrique. Um teve mais sorte do que o outro.

FRANCISCO – Minha tese é que, depois de todo o processo de privatização elevar a produtividade nos setores básicos da economia, 4% ou 4,5% é um índice pior do que os 2,5% de Fernando Henrique, que fez toda a transformação. Mais: estamos diante de um quadro de câmbio que tende a desacelerar a economia em 2011.

Qual foi o problema nesses 30 anos? Foi a excessiva volatilidade da economia. De 1996 para cá, 14 anos, tivemos cinco desativações na economia brasileira, inclusive a de 2009. Essa excessiva volatilidade é que faz a economia dar dois passos para a frente e um para trás. E essas condições de taxa de câmbio e de juros mostram que o quadro continua.

Os 7,5% de 2010 se baseiam numa taxa muito baixa em 2009, principalmente no primeiro trimestre, quando chegamos ao fundo do poço da última crise. Nem sei se o alto crescimento do primeiro trimestre de 2010 compensa a queda. E o responsável pela volatilidade é sempre a política monetária do Banco Central.

OCTAVIO – Muito obrigado pela pergunta, mas vou discordar. A volatilidade do Brasil neste momento é a menor dos últimos anos. Volatilidade supõe um cálculo complexo, sobretudo quando nos referimos à da taxa de câmbio. Nessa, por exemplo, estamos vendo neste momento a menor volatilidade de nossa história recente. Portanto, há uma aderência muito grande entre volatilidade cambial no Brasil e volatilidade do PIB.

O país está muito mais previsível, por várias razões: amadureceu institucionalmente e macroeconomicamente e ganhou reputação da autoridade monetária. Conquistamos reputação fiscal, a despeito de tudo o que não funciona e dos problemas da gestão pública. Temos uma situação hoje mais organizada. O Brasil, só pelos ganhos de previsibilidade, conquistará 4,7% ou 5% de PIB nos próximos anos. Acho um desperdício, poderia crescer no mínimo 6% ao ano se fizesse reformas, mas não acredito nelas. Acredito em avanços cumulativos, incrementais e inerciais, em temas que vão ganhando maturidade.

Victor Hugo, no século 19, dizia: “Nada mais poderoso do que uma ideia cujo momento tenha chegado”. Há ideias que vêm rápido, outras demoram mais, mas chegam. À medida que a democracia se aprofunda, elas vão ganhando maturidade, e sabemos do amadurecimento que houve durante as administrações FHC e Lula. No caso de Lula, o mundo inteiro reconhece o fenômeno de um governo de esquerda na América Latina que majoritariamente arbitrou pelo bom senso.

Tenho uma visão mais construtiva a respeito da parte institucional, independentemente de quem esteja no poder no Brasil, desde que nossa democracia continue sendo aperfeiçoada, de preferência com uma reforma política partidária.

ZEVI GHIVELDER – Pelo que se tem observado, o próximo governo entra com um viés estatizante bastante acentuado. Se isso se concretizar, pergunto se o cenário que o senhor traçou para os próximos anos se sustentará.

OCTAVIO – A discussão de Estado maior ou menor veio no contexto da saída da crise. Todos os países do mundo subitamente reconheceram que precisavam de mais Estado na economia, porque houve muita desregulamentação. No bojo disso, estamos tendo, talvez de forma precipitada, a leitura de que todas as nações, o Brasil incluído, caminham para um ciclo mais estatizante. Não deveríamos dar bola para o que se debateu sobre o papel do Estado durante o processo eleitoral no Brasil. Há outra frase, desta vez de Otto von Bismarck, que dizia: “Nunca se mente tanto como antes das eleições, durante uma guerra e depois de uma caçada”.

Não embarquei ainda nessa de estatização, não estou convencido. Concordo que o modelo de desregulamentação realmente vai ficar descansando durante um bom tempo, mas é cíclico ter mais ou menos Estado. O setor privado acaba se impondo, e o nosso, que é bom demais, vai atropelar quem quiser avançar demais nessa área. Em alguns segmentos o setor público podia atuar mais, como na área de saúde e particularmente na de educação. Mas não acredito no viés estatizante como algo enraizado.

CHACEL – Posso inferir de suas palavras que o senhor deposita uma grande esperança nas parcerias público-privadas?

OCTAVIO – São muito importantes e inclusive permitem lidar melhor com tensões de natureza ideológica que ainda persistem. Acho que vamos ter uma avalanche de concessões no Brasil. O investimento público não dará conta sozinho dos imensos desafios infraestruturais do país.

FERNANDA DELLA ROSA – Dentro desse cenário favorável que você apresentou, há algum ponto de preocupação ou nada a temer?

OCTAVIO – Temos de ficar espertos e vigilantes sempre. Mas pela primeira vez a aversão ao risco global tem favorecido o Brasil. É estranho mas é verdade. No cenário de curto prazo, o que poderia mudar um pouco nossa trajetória de sucesso seria a ocorrência de algum problema maior na China, na medida em que a economia brasileira é megadependente da demanda chinesa por commodities. Temos de monitorar com lente de aumento o que acontece com os chineses. Problemas na China não estão por enquanto no radar, mas podem entrar. Se o país andar para trás ou tiver uma crise política, o Brasil vai sentir bastante, porque isso vai afetar os preços das commodities e a taxa de câmbio.

Outro ponto importante é que, à medida que o poder de compra da população aumentar na China, a demanda por voz e por democracia crescerá muito, podendo trazer algum tipo de questionamento, sobretudo em períodos de crescimento menor. Por enquanto, o crescimento chinês é uma espécie de “cala-boca” em termos de demanda por democracia.

Falando de outros riscos, destacaria a hipótese de o Brasil se contentar com um crescimento que vamos chamar de medíocre, 4,7%. Há pessoas que consideram isso muito bom. Se avançássemos em reformas que aumentem a produtividade, o crescimento brasileiro poderia chegar a 6% facilmente. O risco é sermos pouco ambiciosos nesses esforços.

JOSEF BARAT – Na verdade algumas reformas muito importantes foram feitas, que garantiram estabilidade monetária, abertura comercial, adaptação do país à globalização, aumento de produtividade. Essa pujança do setor privado decorre em grande parte da mudança de ambiente, de uma nova participação na economia mundial. E tivemos também alguns bônus importantes, o principal deles no mercado externo, e agora o bônus demográfico, que espero seja aproveitado também.

Há, porém, um descompasso que terá de ser equacionado. É o divórcio entre o desenvolvimento econômico e o social, toda essa carência de infraestruturas nos dois âmbitos. Isso tem consequências muito fortes não só sobre a competitividade do setor privado, mas também sobre o desenvolvimento humano etc. Diz você que essas coisas vão chegar por pressão do setor privado. Minha dúvida é a seguinte: para entrarmos num caminho mais seguro de concessões e parcerias, principalmente para mexer no vespeiro das infraestruturas, deveríamos ter alguma forma de segurança jurídica, garantias de contratos e de fortalecimento institucional. O que se vê, porém, é que estamos na direção contrária, não é? Temos partidarização das agências reguladoras e quebras de contratos de concessão. Isso gera turbulências, e como uma grande parte desses recursos virão do capital externo, o investidor vai exigir garantias jurídicas. O Brasil não tem uma tradição muito boa em relação a contratos, nosso Judiciário é um horror, está ancorado no século 19. Como resolver esse imbróglio?

OCTAVIO – Tenho as mesmas preocupações, mas ao mesmo tempo não consigo ver o Brasil andando para trás do ponto de vista institucional. Tenho a intuição de que vamos melhorar o papel das agências reguladoras. Não acredito que o Brasil sofra o risco de um apagão regulatório. No plano político-partidário, precisamos de uma megarreforma, de preferência com a introdução do voto distrital misto. O Judiciário pode sofrer críticas relativas a agilidade, tolerância com mecanismos protelatórios e outros temas tópicos, mas na comparação com outros emergentes, eu o considero muito razoável.

Para terminar, permito-me citar Karl Marx, em seu livro O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Ele disse: “Os homens fazem livremente a história em condições que não são livremente determinadas por eles”. Marx tinha a percepção de que os processos políticos são complexos. Em suma, não quero dar conselho a ninguém, mas tenho aprendido nesses anos a ser menos preconceituoso, mais humilde nas análises, a ouvir mais as pessoas que pensam diferente e ter uma atitude um pouco mais construtiva, que por vezes é confundida com otimismo.