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Achados na praia

por Álvaro Cardoso Gomes

Tenho achado coisas interessantes na praia. Outro dia, encontrei uma mulher boiando no riacho. Em meio a caixas de papelão, latinhas de cerveja, garrafas de refrigerante, sacos de lixo, ela se deixava levar em direção ao mar. Quando empacou num banco de areia, resgatei-a das águas e dos detritos.

Estava imunda e mal lhe podia divisar os traços. Levei-a, então, para casa e, com detergente, sapólio e uma grossa bucha, consegui tirar as manchas de óleo e barro. Depois que lhe dei um banho, usando sabonete e xampu, reparei que era muito bela. Tinha a pele branca, quase transparente, os cabelos loiros como o trigo, o corpo pequeno, os seios miúdos e pernas longas. Mas o que mais me encantou foi a boca vermelha como um morango.

Deitei-a no sofá da sala. Perguntei-lhe então de onde era. Não me soube responder. O mesmo aconteceu com o nome, estado civil. Apenas balançava a cabeça, dando um sorriso parvo. Mas me disse que sabia cantar e declamar. E pôs-se a entoar uma canção com uma bela voz de soprano.

Não pude me conter ante sua beleza e acariciei-lhe os seios. Quando tentei beijá-la, murmurou:
– Preferia cantar... Pouca importância dei a seu protesto e forcei-lhe os lábios, buscando sua língua. Ela não resistiu, entregando-se passivamente. No dia seguinte, a mulher tinha os olhos boiando numa água turva.

Perguntou-me:
– Quer que recite alguma coisa?
Quando começou a declamar um poema que falava de água, de areia, de um pássaro deslumbrado ante o sol que morria por entre as árvores, tapei-lhe a boca com um beijo. Meus dedos correram-lhe a carne, pouco sólida ao contato. E, ao possuí-la, senti uma espécie de atrito, o que me provocou um grito de dor.

Pela manhã, a mulher tinha os traços meio difusos, como se fosse feita de um vidro opaco. Mesmo assim, continuava bela. Quis então cantar. Reparei que a melodia saiu desafinada. Os versos, por sua vez, não tinham pé nem cabeça. Mas ela nem deu por isso: dizia “areia deslumbrada”, “pássaro da fonte”, “árvore de sol” com a maior naturalidade. Tomei-a nos braços, e ela dissolveu-se, como a areia na ampulheta.

No dia seguinte, joguei os restos da mulher na praia. Logo me esqueci dela, porque, como já disse, este lugar sempre oferece coisas bem interessantes. Nessa mesma manhã, terminei por encontrar a carcaça de uma tevê a cores, uma máquina de costura toda enferrujada, litografias dos Alpes suíços manchados de bolor, preservativos usados, peças de roupa rasgadas. Havia também um belo relógio Pateck-Phillipe, com o vidro trincado e sem os ponteiros.


Álvaro Cardoso Gomes é professor titular da USP na área de Literatura Portuguesa, foi Visiting Profesor na University of Califórnia, Berkeley e Visiting Writer no Middlebury College, Vermont. Autor de O Sonho da Terra (prêmio Bienal Nestlé, 1982), Os Rios Inumeráveis (1977), Concerto Amazônico (2008), O Comando Negro (2010), As Joias da Coroa (2011), romances. Também escreveu romances juvenis, como A Hora do Amor, Fase Terminal, além de títulos paradidáticos, como Por Mares Há Muito Navegados, O Poeta que Fingia.