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Palco de resistência
foto: Acervo Centro de Teatro do Oprimido/Divulgação
“Eu era uma jovem atriz representando uma peça num teatro portenho enorme e sombrio. Um dia uma notícia sacudiu o teatro e as suas vetustas estruturas: tinha chegado um diretor do Brasil (...), um revolucionário, um militante político e teatral, um homem perseguido.”
Essa história quem conta é Cecília Boal, em texto publicado no programa da montagem Murro em Ponta de Faca, no Sesc Belenzinho (veja boxe O mesmo murro, outras facas). Foi assim que ela conheceu um diretor “charmoso, muito charmoso”, como diz, chamado Augusto Boal, que escreveu em 1971 a peça citada acima.
O ano do encontro foi 1966, e seria com essa contundente figura que Cecília se casaria e viveria por mais de quatro décadas – até 2009, ano da morte do encenador carioca. “Vim com Boal para São Paulo e o acompanhei pelo mundo”, segue a viúva, lembrando também uma curiosidade: “a peça que eu representava no momento em que Boal apareceu no meu camarim era a história de uma moça que se apaixona por um homem de circo e vai embora com ele”.
Químico de formação, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Augusto Boal nasce em 1931. Aos 19 anos, decide embarcar para Nova York, para cursar direção e dramaturgia na Universidade de Columbia. De volta ao Brasil em 1956, é convidado para integrar o Teatro de Arena de São Paulo, dividindo as tarefas de direção com José Renato, mentor artístico da companhia.
Com o tempo, o jovem passa a exercer natural influência sobre os colegas, por conta de sua vasta formação intelectual, responsabilizando-se, junto com José Renato, pela guinada no direcionamento do grupo. Boal investe na formação dramatúrgica da equipe, instituindo um curso prático na área, adaptando o método do diretor e escritor russo Constantin Stanislavski (1863-1938) – ao qual teve acesso em sua experiência norte-americana – ao formato do Arena.
O resultado foi a interpretação naturalista, até então não experimentada no Brasil, e que caracterizou a trajetória da trupe. “Boal trouxe método ao nosso trabalho teatral, muitas vezes criativo, mas sem uma reflexão sobre o sentido da arte”, diz o ator e diretor Paulo José, que dirigiu a montagem original de Murro em Ponta de Faca, em 1978, e que também assina a atual versão.
“Ele trouxe uma relação dialética entre paixão e ideologia, entre sentimento e razão, entre liberdade e responsabilidade.” O ator explica também que, numa companhia que teve o privilégio de reunir tantas “cabeças criativas” – Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e Juca de Oliveira, para citar apenas duas delas –, era preciso que alguém “amarrasse o guiso do gato”, como diz. “Ou seja, sistematizasse as experiências, os laboratórios, o processo que leva um texto escrito a se transformar em teatro. Esse alguém era o Boal.”
Teatro nacionalista
Sua estreia com direção na casa é Ratos e Homens, de John Steinbeck, que lhe rende o primeiro Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), como revelação de diretor, em 1956. No ano seguinte, segue-se Marido Magro, Mulher Chata, comédia de costumes sobre a “juventude transviada” de Copacabana e sua primeira incursão como autor.
Em 1958, encena A Mulher do Outro, de Sidney Howard, que se torna um fracasso de bilheteria, agravando a crise do Arena – no mesmo ano, o teatro se recuperaria financeiramente com Eles Não Usam Black-Tie, texto de Guarnieri e José Renato.
O interesse de Boal, no entanto, é o aprofundamento de sua investigação dramatúrgica, sempre voltada para a realidade brasileira. Por isso sugere, ainda em 1958, a criação do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, cujos encontros resultam em produções que vão compor a fase nacionalista da companhia nos anos seguintes, todas dirigidas por Boal.
Peças como Chapetuba Futebol Clube (1959), de Oduvaldo Vianna Filho, de 1959; Gente Como a Gente (1959), de Roberto Freire, essa encenada, no mesmo ano, no Teatro das Segundas-feiras, um espaço aberto para experimentar os textos criados durante o seminário; A Farsa da Esposa Perfeita (1959), de Edy Lima; e Fogo Frio, de Benedito Ruy Barbosa, já em 1960, uma produção conjunta entre o Arena e o Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa.
“A evolução assumidamente nacionalista do teatro se fazia acompanhar de uma politização cada vez mais radical”, explica a pesquisadora Tânia Márcia Baraúna Teixeira, autora da tese Dimensões Socioeducativas do Teatro do Oprimido. “Não apenas no tema das peças, o teatro passou a ser experimentado como instrumento de luta para uma transformação social.”
Como exemplo desse contexto, a especialista cita o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), de São Paulo, e o “ao qual muitos artistas do Arena aderiram”, informa, e Movimento de Cultura Popular (MCP), de Recife, em Pernambuco.
Rumo ao exílio
Boal ficou no Teatro de Arena até 1970 – e foi responsável e/ou colaborador em muitos dos clássicos da casa, como a montagem de O Inspetor Geral, comédia de Nikolai Gógol, de 1966, a “série” Arena Conta... (Tiradentes, Zumbi, Bahia), e A Primeira Feira Paulista de Opinião (1968). No entanto, com a decretação do Ato Institucional nº 5, em fins de 1968, o cerco aos artistas e intelectuais no Brasil se aperta e, em 1971, esse ciclo se rompe, com o Augusto Boal preso e exilado, tendo que prosseguir com sua carreira no exterior. Inicialmente na América Latina – Peru, Chile e Argentina –, depois Portugal, em 1976, estada que marca o início de seu exílio europeu.
No mesmo ano publica, na França, Théâtre de L’Opprimé (teatro do oprimido, em francês) e, em 1978, fixa residência nesse país. “O governo francês reconhece o valor desse grande dramaturgo brasileiro”, analisa a atriz Claudete Félix, “curinga” do Centro do Teatro do Oprimido (CTO) do Rio de Janeiro desde 1986, ano em que Boal volta do exílio e começa a difundir seu método no Brasil.
Segundo a concepção do dramaturgo, o curinga era, nos tempos em que atuou no Arena, aquele ator que conhece todos os personagens de um espetáculo e que pode, portanto, interpretar todos eles quando necessário. Com a evolução do método, aqui no Brasil, a figura passou a ser definida como “um artista com função pedagógica, praticante estudioso e pesquisador do TO”, conforme explica Claudete.
“Boal recebe apoio e cidadania francesa pelo seu mérito e pertinência ideológica”, retoma a atriz sobre a estada do dramaturgo na França. “Ele funda o Teatro do Oprimido de Paris e o dirige durante 18 anos até que é convidado por Darcy Ribeiro para voltar ao Brasil, em 1986.”
Boal no mundo
Uma vez de volta ao seu país, Boal cria então o Centro de Teatro do Oprimido do Rio, no mesmo ano de 1986. É lá que ele dá continuidade ao desenvolvimento do método estético que o tornaria conhecido no mundo todo. O TO reúne exercícios, jogos e técnicas teatrais que objetivam a “desmecanização física e intelectual de seus praticantes e a democratização do teatro”, nas palavras da pesquisadora Tânia Márcia Baraúna Teixeira.
O aspecto social fica por conta das intervenções sociais, por meio das quais os participantes buscam refletir e influenciar a realidade usando a linguagem teatral. A filosofia, porém, não foi originada na França. Os conceitos que Boal aprimorou em Paris, durante seu exílio na Europa, foram fruto de toda a sua atividade no Brasil durante os anos de 1960 e na América Latina, na década de 1970.
“Ao longo dos 40 anos de sistematização, dependendo do lugar onde estava e da opressão que passavam as pessoas de cada lugar, o método foi se desenvolvendo”, explica Claudete. “Seja na América Latina ou na Europa e até mesmo no Brasil.”
Como exemplo dessa constante evolução, a atriz cita ainda o Teatro Legislativo, criado por Boal nos anos de 1990, e ainda a revisão de toda a sua pesquisa sobre o TO que resultou no livro A Estética do Oprimido (Garamond, 2009), que acabou sendo publicado quatro meses depois de sua morte.
Hoje, segundo informa Claudete, o Teatro do Oprimido está presente em mais de 70 países. Ela conta que “milhares de praticantes e estudiosos” visitam o CTO carioca, virtual ou fisicamente, em busca da experiência prática e teórica que o método criado por Boal proporciona.
“Consideramos o Teatro do Oprimido como o teatro do diálogo”, diz. “A arte que denuncia e propõe alternativas.” Só no Brasil, cerca de 150 grupos atualmente apresentam espetáculos calcados nas técnicas do TO, “com a finalidade de pensar um tema e explorar artisticamente as possibilidades de alterar a realidade opressora do coletivo social envolvido”, teoriza a atriz. Além dos grupos brasileiros, há companhias adeptas do teatro de Boal também em lugares como Guiné-Bissau, Moçambique, Índia, Palestina, Alemanha, Senegal, Argentina, Colômbia e Venezuela.
Vocabulário básico
Conheça as várias faces do dramaturgo
Teatro-jornal – Técnica criada em 1971, no Teatro de Arena de São Paulo, por meio da qual se encena entrelinhas das notícias censuradas pela ditadura militar.
Teatro invisível – Cenas montadas nos locais onde a situação dramatizada deveria acontecer na vida real. Surgiu na Argentina, como resposta à impossibilidade de realizar montagens dentro dos edifícios teatrais.
Teatro-imagem – A encenação baseia-se nas linguagens não-verbais. Essa foi uma saída encontrada por Boal, no Chile, para trabalhar com povos indígenas que participavam de um programa de alfabetização.
Teatro-fórum – Técnica em que a barreira entre palco e plateia é destruída e é estabelecido o diálogo entre os artistas e o público. Produz-se uma encenação baseada em fatos reais, na qual personagens oprimidos e opressores entram em conflito.
Teatro legislativo – Ao longo da “sessão” de teatro-fórum, os espectadores elaboram propostas escritas que são sistematizadas por especialistas e votadas pela plateia. As aprovadas são enviadas às autoridades.
Arco-íris do desejo – Conjunto de técnicas que analisam vítimas de opressões veladas, ou seja, não físicas ou explícitas. É também conhecido como Método Boal de Teatro e Terapia.
O mesmo murro, outras facas
Com direção de Paulo José e forte carga ?emocional, clássico do autor ganha nova montagem
Escrita por Augusto Boal em 1971, ano em que foi exilado do Brasil pela ditadura, Murro em Ponta de Faca (foto) foi encenada pela primeira vez, em 1978, com Paulo José na direção, produção de Othon Bastos, e com Renato Borghi, Francisco Milani e Martha Overbeck no elenco.
Os cenários e figurinos foram de Gianni Ratto e trilha sonora de Chico Buarque. Trinta e três anos depois, o texto – um relato sobre a ditadura militar dos anos de 1970 – voltou aos palcos brasileiros, novamente com Paulo José na direção, e apresentado no Sesc Belenzinho, de 12 de agosto a 18 de setembro.
A remontagem, segundo o diretor, conseguiu ser ainda mais intensa do que a primeira. “Talvez porque o contexto político não esteja tão próximo, dando lugar também aos dramas existenciais”, comenta Paulo. “As diferenças, segundo o Paulo, é que a primeira era mais fria, cerebral, e a montagem atual, pelo próprio afastamento do momento histórico, foi mais emocional”, complementa a atriz e produtora Nena Inoue, idealizadora do projeto.
Infelizmente, Augusto Boal não teve chances de ver seu texto no palco. Na época, por só ter retornado ao Brasil em 1984, com a anistia. E hoje por ter partido três anos antes da concretização do projeto. Por esse motivo o espetáculo ganha ares de tributo. “A equipe, elenco, recursos artísticos e técnicos deixariam Boal orgulhoso”, finaliza Paulo José.
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