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Espaço de representação

A incerta história do teatro remete à antiguidade grega, ao século 6 a.C., quando servia aos chamados ditirambos, homenagens ritualísticas ao deus grego Dionísio. Nesse início, de acordo com o livro Máquina para os Deuses (Edições Sesc SP: Editora Senac São Paulo, 2009), do cenógrafo Cyro del Nero (1931-2010), “foram estabelecidas as primeiras formas do edifício teatral.

O público encontrou seu lugar na encosta das montanhas, criando com naturalidade o theatron – que quer dizer ‘de onde se vê’”. A partir daí, a busca pelo espaço ideal para o teatro passou por inacabadas discussões, pautadas principalmente pela relação entre o espaço da representação e a plateia.

A história das tipologias cênicas evolui em um processo de constante retorno às manifestações já utilizadas, trazendo sempre releituras das possibilidades de encenação. “Se vemos o desenvolvimento da arquitetura teatral desde a Grécia, não são muitas as transformações, são 10 ou 12 tipologias, e a última é a que chamamos de espaço de uso múltiplo, ao qual o encenador dá o caráter que quer. Daí para frente, voltam as buscas de experiências com espaços não necessariamente construídos para teatro”, explica o cenógrafo e arquiteto cênico J. C. Serroni.

Essas investigações trazem à tona a percepção do ambiente como elemento que recria a própria linguagem teatral. Diversas foram as idas e vindas em busca da ideal encenação, passando pelo teatro romano; pelas apresentações nas ruas, itinerantes e em igrejas, na Idade Média; pelo teatro Elizabetano, na Inglaterra, no final do século 16; e pelo teatro de palco italiano, no Renascimento.

Avançando nessa história até épocas mais recentes, surgiu na década de 1920 o conceito de “teatro total”, do arquiteto alemão Walter Gropius, que deu origem à ideia do chamado “Black Box”, termo utilizado para salas adaptáveis a várias tipologias; e, mais recentemente, o “Found Space”, que seria um lugar qualquer transformado em teatro, como a Cartoucherie, sede do Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, que cumpre temporada no Sesc Belenzinho, neste mês (ver boxe Fábrica Teatral).

fotos - espetáculo Macunaíma: Acervo Sesc Memórias/Paquito e do espetáculo Ham-Let: Acervo Teatro Oficina.


plateia incorporada

Uma das discussões sempre trazidas à tona diz respeito às diferentes possibilidades para o público vivenciar o espaço cênico. “O que muda é o modo como o espectador, dada a relação com a cena, ocupa o ambiente. O espetáculo se relaciona não só com a arquitetura do lugar, mas com todo o seu imaginário e a proposta de encenação”, afirma o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), José Simões de Almeida Junior, autor da tese de doutorado Cartografia Política dos Lugares Teatrais da Cidade de São Paulo (USP, 2007). Nesse sentido, diversos foram os que seguiram a proposta do dramaturgo francês Antonin Artaud, do Teatro da Crueldade, em que se diluiriam as distâncias entre ator e plateia.

Em seu livro O Teatro e Seu Duplo (1938), Artaud propõe que “uma comunicação direta será estabelecida entre ator e espectador, pois este estará situado no centro da ação e envolvido por ela”. A encenadora Cibele Forjaz, diretora da Cia.

Livre de Teatro, buscou referência em Artaud para criar, ao lado da cenógrafa Simone Mina, concepções de espaço cênico que propõem a relação direta com a plateia, em montagens como Arena Conta Danton (2004), Vemvai – O Caminho dos Mortos (2007), entre outras. “Cada vez mais o espaço cênico passa a ser conceito fundamental para o entendimento específico de cada encenação, sempre com os espectadores dentro da cena, compartilhando experiências”, explica Cibele.

O Grupo Teatro da Vertigem também trouxe, a partir dos anos de 1990, uma proposta com base na relação com os espaços cênicos, por meio de peças realizadas, no Hospital Humberto Primo (O Livro de Jó – 1995), no antigo Presídio do Hipódromo (Apocalipse 1,11 – 2000), no rio Tietê (BR-3 – 2006), entre outros lugares não concebidos para a atividade teatral.

Segundo o diretor técnico e designer de luz do grupo, Guilherme Bonfanti, “o Vertigem trabalha com espectador não passivo, que não está confortavelmente instalado no escuro de uma plateia, mas integrado na experiência sensorial”. A respeito dos locais escolhidos, complementa: “A memória do lugar, o que ele representa e sua geografia vão agregando significados para o espectador que amplificam a experiência”.


palco italiano

Até hoje considerado o formato mais tradicional, o palco italiano surge durante o Renascimento. No entanto, sempre muito associado à monarquia e a uma arquitetura teatral que privilegiava a hierarquia das cortes, esse modelo foi muito questionado.

“É assustador pensar que, no teatro europeu, o público comum assistia ao espetáculo em pé e só senta a partir da Revolução Francesa”, reflete a crítica teatral Maria Lúcia Candeias. Para o cenógrafo J. C. Serroni, “essa estrutura mais conservadora foi muito questionada porque mantinha a plateia distante e separava os ricos dos pobres. Além disso, acabou se tornando um espaço burguês, de um teatro feito sem muita inquietação, sem querer que as pessoas pensem”.

A herança de uma estrutura que atendia aos interesses das elites vem sendo superada por novas possibilidades cênicas. “Acho complicado associar o uso do palco italiano ao conservadorismo, pois há coisas revolucionárias que podem ser feitas nele e vemos, por exemplo, programas de televisão em formato arena, mas reacionários”, afirma o diretor da Cia.

Antropofágica, Thiago Reis Vasconcelos. A trupe mantém a Karroça Antropofágica – inspirada no “carro de Téspis”, da Grécia Antiga – que percorre a cidade, em uma espécie de cortejo com 30 atores. “É uma maneira de devolver à Pólis a intervenção teatral”, explica. Para Guilherme Bonfanti, “a questão de sair da caixa preta tem a mesma relação de a pintura sair da tela, por exemplo. É antes uma inquietação do que falência de um espaço”.


dramaturgia do espaço

Por mais que a utilização de locais alternativos remonte à antiguidade, é com o teatro moderno, a partir da luz elétrica, que o espaço passa a ser explorado como linguagem. “Durante anos, o teatro foi visto apenas como texto.

É no final do século 19 que espetáculo e diretor ganham importância”, considera Maria Lúcia Candeias. No Brasil, o marco dessa sintonia entre forma e conteúdo é a encenação de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943. Com direção de Zbigniew Ziembinski e cenografia de Tomás Santa Rosa, a montagem trouxe, pela primeira vez, a reflexão do próprio espaço cênico como ente dramatúrgico.

“O espaço traz sensações de aperto, odor, proximidade com os atores; então sempre colabora na escritura do texto”, diz Thiago Reis Vasconcelos. Em São Paulo, as possibilidades criativas dessa concepção passam então a ser exploradas. Encenadores como José Celso Martinez Corrêa, com o Teatro Oficina; Zé Renato e Augusto Boal, no Teatro de Arena; Antunes Filho, no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), do Sesc Consolação, entre outros, buscam novos desdobramentos.

“O espaço tem uma função dramatúrgica fundamental e é essencial para o próprio conceito de encenação”, diz Cibele Forjaz. O dramaturgo e diretor teatral Antunes Filho complementa a análise salientando a atual liberdade de criação. “No teatro contemporâneo, com imaginação e propósito, tudo está absolutamente aberto a tudo, desde que o teatro cumpra a sua função primordial: o outro" (leia sobre Prêt-à-porter 10, do CPT, no Dossiê).

A discussão textual também leva a indagações sobre a possibilidade de uma peça específica ser apresentada em qualquer local. “Existem algumas tendências, mas acho que o texto não determina o espaço, mas sim o encenador com sua interpretação”, opina J. C. Serroni. As experiências do Teatro da Vertigem, em ambientes únicos, trazem também a alternativa de um texto que acompanha a própria escolha do local.

“O que interessa, desde o início, é ir em busca de um espaço que dialogue com aquilo que queremos discutir com o espetáculo”, afirma Guilherme Bonfanti. Já o professor José Simões de Almeida Junior cita uma frase da escritora francesa Anne Ubersfeld, “o teatro não é a cópia do mundo, é o mundo”. E acrescenta: “Esses grupos não estão copiando a cidade, mas sim resignificando uma outra cidade”.


limites e abstrações

No livro Antitratado de Cenografia Variações Sobre o Mesmo Tema (Editora Senac, 1999), o cenógrafo Gianni Ratto (1916 - 2005) escreve: “O espaço cênico não tem limites: ele se multiplica pela dimensão do texto e de suas personagens. Ele não pode ser medido por metros quadrados ou cúbicos; ele existe – infinito – onde uma palavra de poesia ressoa”.

A beleza da sentença de Gianni traz a discussão a respeito do espaço como limitador da criação. Para J. C. Serroni, existem situações que restringem bastante. “Se não tem coxia, não tem como sair de cena; se não tem fosso, você está no piso; se não tem urdimento, não dá pra subir. Mas aprendemos com isso e trazemos novas soluções.” Os grupos que improvisam espaços utilizam isso a favor da inventividade. “A precariedade do espaço leva, às vezes, a resoluções cênicas muito interessantes”, afirma Thiago Reis Vasconcelos.

Para muitos encenadores, o trabalho do ator contribui para expandir os limites espaciais ou modificar sensações. “É na relação do espectador com os atores que se dá a transição entre o espaço real e o imaginário. Grande parte desse espaço imaginário é criado a partir da ação do ator”, reflete Cibele Forjaz.

Nesse mesmo caminho, a crítica Maria Lúcia Candeias afirma que “qualquer pessoa que entra transforma o lugar, e o ator, evidentemente, mais ainda, porque tudo leva a prestar atenção nele”. A expansão do espaço, tanto a partir da movimentação do ator, quanto através de outros elementos, é consolidada, nos anos de 1930, com as contribuições do arquiteto e encenador suíço Adolphe Appia (1862 - 1928), que passa a entender o palco como um cubo, em suas três dimensões.

Todas as reflexões e tentativas de definir o espaço cênico ideal levam ao entendimento de que uma linguagem não pode ser restrita, deve seguir se reinventando. “Não sabemos o que é o espaço cênico nesse terceiro milênio, pois o teatro vem sofrendo grandes mudanças. É um momento de transição, e parece que vivemos um novo Renascimento, mas só vamos saber disso bem lá na frente”, afirma J. C. Serroni.

Em outro momento do livro Antitratado de Cenografia, Gianni Ratto anota: “O espaço vazio do palco não é um lugar inerte, morto ou adormecido que seja. Um palco vazio é comparável a uma mulher, a um homem, a uma criança à espera de um ato de amor. Amor em todos os sentidos, desde o místico até o sensual, sempre conduzindo a um orgasmo, a uma catarse resultante de um encontro”.


Experiências cênicas

Programação especial do SescTV discute os diferentes espaços teatrais


Para este mês, a série Teatro e Circunstância – exibida pelo SescTV, toda terça-feira, às 22h – traz a temática especial “O Espaço Cênico”, com episódios que discutem os diferentes espaços como linguagem. No dia 4, o documentário Transgressões traz, entre outras, entrevistas com o crítico Jefferson Del Rios, que relembra a encenação de O Balcão, de Jean Genet, sob direção do argentino Victor García, e com o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa.

No dia 11, A Conquista dos Espaços contextualiza a ampliação da cena teatral, tanto no sentido geográfico quanto no arquitetônico e estético, a partir da experiência de grupos como o Teatro XIX e a Cia. Pessoal do Faroeste.
Já no dia 18, O Não Lugar traz o debate sobre as diferentes formas de encenação em locais mais acessíveis à população, como, por exemplo, a proposta da Trupe Zózima, que leva a cena para dentro de um ônibus.

O último episódio, O Espaço Protagonista, dia 25, relata trabalhos como o do Teatro da Vertigem (SP), que passou a criar espetáculos em espaços alternativos ao edifício teatral. O programa, dirigido pelo cineasta Amilcar Claro e com roteiro do crítico teatral Sebastião Milaré, também terá exibições em horários alternativos, às quartas (16h), sábados (18h) e domingos (22h).


Fábrica teatral

Novo espetáculo da companhia Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchkine, chega ao Sesc Belenzinho


Em atividade ininterrupta desde 1964, o grupo francês Théâtre du Soleil foi fundado por Ariane Mnouchkine, como uma Sociedade Cooperativa Operária de Produção, que defendia novas formas de organização, privilegiando o trabalho coletivo e um teatro popular.

Com isso, em 1970, a companhia se instala na Cartoucherie de Vincennes, uma antiga fábrica de munição do exército francês, que se transforma na sede do grupo. É com a proposta de recriar essa concepção de espaço cênico que Ariane Mnouchkine e sua trupe chegam ao Brasil, para 15 apresentações, entre os dias 5 e 23 de outubro, de sua mais recente criação, Os Náufragos da Louca Esperança (Auroras), inspirado no romance póstumo Os Náufragos do Jonathan, do francês Júlio Verne.

O Grupo retorna ao local em que, em 2007, encenou Os Efêmeros, ainda na unidade provisória do Sesc Belenzinho. Hoje já inaugurada, recebe o novo espetáculo, em uma estrutura construída especialmente para isso, com cerca de 1.500 m² e capacidade para 585 pessoas.

“Louca Esperança” faz referência ao nome do cabaré e navio em que ocorrem muitas das cenas, e também ao sentimento dos personagens, com a esperança por uma sociedade pautada pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, que também traduzem valores políticos e humanos benquistos pelo Théâtre du Soleil. A dramaturgia é assinada por Hélène Cixous, e a trilha sonora original é executada ao vivo pelo compositor Jean-Jacques
Lemêtre.

A narrativa se passa em 1914 e traz uma equipe de artistas fascinados com o surgimento do cinematógrafo, que se reúne no sótão de um cabaré para realizar um filme mudo. A obra, dentro da peça, é dirigida por um cineasta de esquerda e retrata a saga de emigrantes que, em 1889, abandonam o País de Gales rumo a um novo Eldorado, na Austrália.

Ariane Mnouchkine pensa o teatro em estreita comunhão com a plateia, sendo que, geralmente, seus atores trocam de figurino ou fazem a maquiagem à vista do público. Além disso, não costuma encenar em palcos tradicionais, preferindo os espaços cênicos que permitem uma outra relação. O espectador é arrebatado desde a entrada, quando é rompida a fronteira entre o cenário e a cidade, o público e os atores, e todos se descobrem parte do espaço cênico. ::