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Poética da contradição

Nuno Ramos vive um momento de revisão da carreira. Em outubro lança o livro de poemas Junco (Iluminuras, 2011), escrita de carpintaria que lhe custou quatorze anos. Em 2010, teve sua obra completa reunida no livro-catálogo Nuno Ramos (Editora Cobogó), com texto crítico de Alberto Tassinari. O artista multifacetado também ganhou, em 2009, o Prêmio Portugal Telecom de Literatura por Ó (Iluminuras, 2008), além de acumular em seu currículo uma vasta obra visual marcada pela variedade de materiais e gêneros, seja a pintura, a escultura, a instalação ou o vídeo.

Em depoimento à Revista E, afirma que para fazer arte é preciso estar atento aos sinais, contrapondo-se à ideia contemporânea de arte cerebral, racional, sem nenhum vínculo com a intuição. “É preciso estar à altura do chamado que determinadas linguagens impõem ao artista. Cada linguagem é um chamado que o elege”,  diz Nuno que no dia 21 de setembro, participou do projeto Estante Viva no Sesc Belenzinho. A seguir, os melhores trechos.



Chamado poético

Há bastante contradição naquilo que faço. Isso tem o lado legal e outro lado que não sei se dá certo. Tento ser um artista variado, livre, e às vezes posso me tornar um pouco arbitrário, fazendo obras com pouca conexão umas com as outras. A arte brasileira tende a ser menos contraditória do que a minha. Os artistas aqui são mais coesos. Sou um artista muito conflituoso. A minha poética é aflita, voraz, mas é assim que funciono.

É preciso estar à altura do chamado que determinadas linguagens impõem ao artista. Cada linguagem é um chamado que o elege. Literatura e artes plásticas são chamados diferentes, então tento ouvi-los separadamente. Eu me afastei da literatura quando me tornei artista plástico. Minha adolescência foi muito marcada pelos livros, e aos poucos me senti insatisfeito com aquilo.

As artes plásticas entraram com muita força e isso me deu muita liberdade para criar, porque não era palavra, era uma matéria, uma coisa viva fora de mim. Mas sempre escrevi. Um dos motivos de eu ter publicado bastante recentemente é que tenho muita coisa acumulada que acabei soltando depois. Agora em outubro vou lançar um livro de poemas pela Iluminuras chamado Junco. É um livro que estou fazendo há quatorze anos, desde 1997. Um material que revi muito. Quando escrevo sinto outro registro, uma coisa diferente da minha atividade como artista plástico.

Há uma parte da minha atividade que é uma série de instalações com texto chamada Falas – e esses textos são feitos para uma área de junção entre o que escrevo e as instalações. Mas normalmente prefiro separar a unir as duas atividades. Porque são matérias diferentes, não há como equalizar muito.

Crítica especializada

Sempre ouvi muita crítica. O acesso a ela não é algo distante de mim. Com a idade, o peso disso vai diminuindo. Penso que o papel da crítica seja um desejo de mais arte. Ela não está ali para coibir ou inibir o artista. Muitas vezes é uma forma de permitir que o artista lide com sua linguagem de uma maneira mais forte.

Devo muito aos meus amigos críticos. Agora, o limite da crítica é a inibição da obra. Quem manda é a obra. O que vale é a arte e não a crítica. Ela não produz um mundo novo, mas ajuda a constituí-lo. Se o artista ficar inibido, talvez ela não esteja ocupando uma função boa. De todo modo, a crítica puxa a arte para mais longe. É assim que tento entender e me relacionar com ela de modo geral.

Influências estéticas

A canção é muito inexata e para mim os títulos das músicas são muito sugestivos, algo que impulsiona meu trabalho como artista plástico. Tenho admiração infindável por alguns compositores, porque é das poucas vezes que se vê a coisa popular dignificada, tal como os sambas do Cartola, que se impõem pela qualidade. Algumas vezes utilizei canções populares em minhas obras porque penso o Brasil de maneira inevitável.

Também utilizo poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto porque dizem respeito a mim como brasileiro, é a matéria que tenho. Passei muito tempo misturando materiais nos meus quadros – metal, vidro, coisas orgânicas. Eu ia pintando com esses retalhos. Aos poucos, meus retalhos começaram a incluir outras coisas, como canções, pedaços de filme, poemas. São matérias próximas de mim, pertencem à nossa cultura. Já minha ligação com Joseph Beuys deve muito à potência da matéria. Ele inaugurou isso: a banha, o feltro, a matéria com uma literalidade e uma violência tamanhas.

Bandeira Branca

No Brasil as coisas são muito caóticas. Vivi dois fenômenos diferentes por conta da polêmica sobre minha obra Bandeira Branca na 29ª Bienal de São Paulo: o primeiro, por conta de uma desordem de caráter institucional. Eu tive, através do Ibama, duas licenças para utilizar os urubus na instalação. No entanto, minha licença foi cassada sem nenhuma justificativa teórica. Isso é um pouco chocante, porque a gente não estava brincando.

A Bienal e eu mandamos um pedido para o Ibama e eles aprovaram. Quando pediram para retirar os urubus, eles cassaram a licença que haviam emitido anteriormente. A situação mostra que certas instituições no país não se sustentam e têm pouca penetração social. Vivem de influência.

O segundo foi o fato de presenciar a violência das manifestações via internet. A rede é algo que ninguém controla. Aquilo foi tomando uma proporção à beira do linchamento. O fato é que não fizemos Bandeira Branca sem consultar os órgãos responsáveis. Quando os urubus voltaram para o zoológico, onde estão em “uma jaula de centro e trinta avos”, ninguém mais falou neles.

A polêmica não tinha nada a ver com os bichos. A disputa não era pelo bem-estar dos urubus, mas pelo palanque como forma de acesso a um espaço público. Hoje quem está do outro lado não é uma coisa chamada público, mas pequenos organismos civis que fazem essa intermediação. Se os bichos tivessem ficado, não haveria do que me queixar, porque a obra ficou mutilada.


“Penso que o papel da crítica seja um desejo de mais arte. Ela não está ali para coibir ou inibir o artista. Muitas vezes é uma forma de permitir que o artista lide com sua linguagem de uma maneira mais forte. (...) Agora, o limite da crítica é a inibição da obra”