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Com o sol na cabeça

por Sandra Leibovici


“(...) um artista, um filósofo devem não apenas criar e exprimir uma ideia, mas ainda despertar as experiências que a enraizarão nas outras consciências. Se a obra é bem sucedida, ela tem o estranho poder de ensinar-se ela mesma.”
 Merleau-Ponty


Curiosidade. Esse foi o meu principal impulso para entrar no mundo das artes visuais dos museus e galerias. Um desejo de conhecer e uma vontade de entender o que estava sendo dito ali dentro. Nas primeiras visitas, a aproximação era visual e racional. Admirava e ficava tentando encontrar correspondências com minhas experiências e inquietações.

Com o tempo, as visitas tornaram-se uma prazerosa fuga, como ir ao cinema e ficar absorta em outra realidade durante 2 horas. Saía com um olhar disponível, um corpo sensível e uma consciência mais atenta ao presente. Sentia-me pronta para ser atravessada pelo mundo. Começava uma nova relação.

Uma das minhas experiências mais marcantes dessa relação foi em 2003, quando tive a oportunidade de conhecer a obra do artista Olafur Eliasson na Tate Modern, em Londres. Tratava-se de um projeto monumental, chamado de Projeto Clima (The Weather Project): a reprodução de um sol e de nevoeiro dentro de um espaço fechado, o enorme hall de entrada do museu. 

Para se ter uma dimensão do efeito e da repercussão causados por esse clima interno, vale lembrar que Londres é uma cidade conhecida pela sua falta de luminosidade solar, principalmente durante o inverno (período de realização do projeto), e bastante habituada ao fog, uma espécie de nevoeiro que deixa a cidade cinza e com contornos nebulosos. Ver e sentir esses fenômenos naturais dentro de um museu era extasiante e desafiador. Como reagir?

Assim que entrei no espaço expositivo, fiquei paralisada. O tipo de reação que acontece quando estamos diante de um poder que nos desafia. Cataratas do Iguaçu, os anéis de Saturno, as explosões do Sol, gêiseres, aurora boreal, arco-íris, geleiras... uma visão sublime. 

Passada a desorientação inicial, queria entender como aquilo era possível e descobrir como funcionava. Percorri todo o espaço com um olhar investigativo e desconfiado, tentando ver a mágica por trás do pano. Não precisei me esforçar muito, era fácil de entender. Estava lá para quem quisesse ver, sem esconderijos. Um teto rebaixado de espelhos, um semicírculo de lâmpadas fluorescentes cobertas por uma tela e máquinas de fumaça. Pronto, a mágica estava desfeita.

Porém, ainda assim o espaço continuava a me fascinar e eu não queria deixá-lo. Timidamente, me sentei e fiquei observando a reação das outras pessoas. Mais à vontade, deitei-me e continuei a observar os outros, porém, desta vez, pelo reflexo do espelho. Depois de algum tempo tentando descobrir se aquela perna que se mexia era a minha ou não, minha noção de espaço se refez. Tornei-me parte da paisagem. Sem perceber, perdi a noção do tempo. Assim como eu, muitos outros.

Repeti essa contemplação muitas vezes, sozinha ou acompanhada, de dia ou de noite. Percebi que atividades normalmente feitas no ambiente externo das praças e parques passaram a acontecer ali no espaço do museu, debaixo daquele sol intermitente criado por Olafur. Mobilizações sociais (contrárias à visita do Bush à Inglaterra), namoros, reuniões de amigos e muitas, muitas fotos e vídeos. E, independente da qualidade do fotógrafo ou câmera, todas as imagens ficavam exuberantes.

Com toda essa publicidade espontânea, a presença da obra e a interação com os espectadores se tornaram maciça na imprensa, nos sites, blogues e fotologues. O impacto não era apenas artístico, mas social, político e estético.

Explorando a natureza material do mundo e o modo como nós o experimentamos, a obra de Olafur questiona nosso lugar no espaço e no tempo em que vivemos.  Para se relacionar com ela, basta aguçar os sentidos, absorver as sensações e engajar a consciência com o que está acontecendo à nossa volta. É no olhar e na percepção do espectador que a obra se completa.



Sandra Leibovici, formada em Comunicação Social e pós-graduada em História da Arte, é técnica de programação do Sesc Pompeia