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Liberdade cerceada?

ilustrações: Marcos Garuti

Para contribuir para o entendimento sobre o tema, a doutora em Ciência da Comunicação Isabel Orofino e a professora titular do programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Lucia Santaella discorrem, em artigos inéditos, sobre os possíveis benefícios (e malefícios) da proibição da propaganda para crianças em nossa sociedade.

Regulamentar é preciso
por Lucia Santaella


A regulamentação da publicidade para crianças é uma parte específica da regulamentação da publicidade em geral, assim como esta é parte da regulamentação das mídias no seu todo. Essas relações entre partes e todo devem ser consideradas para evitar equívocos e confusões. Comecemos pela questão da regulamentação das mídias.

Dado o passado ditatorial do nosso país, a censura paira como um fantasma toda vez que se fala em regulação das mídias. Vem à lembrança a reação criativa dos jornalistas que enchiam com receitas de cozinha os espaços censurados do jornal. Vem à lembrança o fato de, por pura arbitrariedade ignorante e puritanismo hipócrita, termos tido de esperar vinte anos para poder assistir a filmes que marcaram época, como Laranja Mecânica (Kubrick) e O Último Tango em Paris (Bertolucci).

Para evitar que a regulação desande em censura, o controle estatal não deve passar perto dos conteúdos, pois, quando o controle avança sobre o conteúdo, as fronteiras entre controle e censura ficam porosas. Nesse momento, os ânimos se ?agitam, pois qualquer interferência nos conteúdos das mídias fere o princípio da liberdade de expressão.

Isso não significa que a liberdade de expressão seja um direito absoluto. Há restrições impostas pela própria Constituição brasileira, que estipula requisitos para que tal direito seja exercido com responsabilidade.
Não é por acaso que todas as democracias consolidadas possuem instituições reguladoras das mídias, prevendo a aplicação de regras democráticas por meio de mecanismos públicos.

Esses mecanismos são operacionalizados em função de conselhos constituídos por entidades públicas reconhecidas no setor. Comunicação, distribuição e difusão da informação são serviços públicos. Portanto, a esses serviços cabe também um controle público baseado em princípios inalienáveis da liberdade em equilíbrio com o funcionamento legislado por regras. São as regras que evitam o caos e o desmando. Mas, no que diz respeito a conteúdo, as regras devem ser de obrigações e não de proibições.

As considerações acima parecem perfeitamente válidas para as mídias informativas, como a imprensa, por exemplo. Mas o elenco das mídias é variegado, e o funcionamento ?comunicacional e social delas é distinto. Há diferenças notáveis entre as mídias informativas, as mídias de entretenimento e as mídias publicitárias. São tipos de discursos que não se confundem. Consequentemente, uma regulamentação das mídias deve prever essas diferenças.

O discurso publicitário comercial tem por função estimular o consumo de bens e serviços. Para isso, por meio de recursos muitíssimo bem elaborados de sugestão, de sedução e de persuasão, esse discurso envolve a construção sígnica de um pacote de emoções, expectativas e sensações. Enquanto a sugestão aciona a capacidade de sentir e a persuasão atrai o pensamento, a sedução captura o receptor nas malhas do desejo.

Muito mais do que podemos conscientemente nos dar conta, a publicidade não apenas molda desejos, mas, sobretudo, responsabiliza-se por grande parte de nossas formações cognitivas ao determinar até certo ponto o perfil daquilo que pensamos e sentimos sobre as coisas, guiando consequentemente o modo como agimos e o que buscamos. Se não fosse por isso, o consumo não teria a força e o poder que tem.

Não se quer com isso enxergar o ser humano como um ser unidimensional, inteiramente submetido aos conteúdos midiáticos, mas também não se quer minimizar a força que a publicidade exerce sobre o psiquismo humano. Se isso já é válido para os adultos, o que dizer da publicidade para a venda de produtos infantis?
Sabe-se que o mercado publicitário brasileiro está entre os cinco maiores do mundo.

Sabe-se também que a média de assistência televisiva das crianças brasileiras é uma das mais altas do mundo. Sabe-se ainda que a publicidade de produtos infantis é justamente patrocinadora dos programas voltados para o público infantil. Ora, boa parte dos hábitos das crianças e, em especial, de seus hábitos de consumo está sendo cultivada pelo bombardeio diário de publicidade a que estão submetidas.

Nesse contexto, não é preciso colocar ênfase no fato de que a criança é um ser em formação, vulnerável, suscetível à absorção de influências externas, despida de crenças, convicções e valores próprios que façam frente crítica às informações recebidas e, mais do que isso, com a capacidade ainda não inteiramente desenvolvida de diferenciar ficção e realidade.

Estudos realizados nos Estados Unidos concluíram que, só por volta dos cinco anos, a criança começa a diferenciar mais precisamente o conteúdo de um programa televisivo e o de uma propaganda. Mesmo assim, não é certo que ela já possa reconhecer a intenção persuasiva da publicidade, muito menos suas camadas de sugestão e de sedução, o que a deixa à mercê do poder de indução do consumo. Urge, portanto, que haja legislações que abordem de maneira específica regras sobre publicidade para crianças.

Um estudo realizado por Cristiano Aguiar Lopes, chamado Legislação de proteção de crianças e adolescentes contra a publicidade ofensiva: a situação do Brasil e o panorama internacional (2010), informa-nos que a regulação da publicidade brasileira adota um sistema misto, no qual regras gerais de proteção ao consumidor e temas mais sensíveis, como álcool, tabaco e publicidade infantil, são tratados pela legislação, e temas mais corriqueiros são regrados pela autorregulamentação.

Em termos quantitativos, a maior parte da publicidade está sujeita apenas à autorregulamentação. Não há no país uma regulamentação específica sobre propagandas potencialmente ofensivas a crianças e adolescentes. Na verdade, a única lei sobre isso se encontra no Código de Defesa do Consumidor, ao estabelecer no § 2º do seu art. 37 que é abusiva a publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança (aliás, a palavra “deficiência” é aí bastante inconveniente, pois vulnerabilidade e fragilidade não se confundem com deficiência).

O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária dedica algumas de suas previsões à publicidade infantil, porém também de maneira bastante genérica, sem muitos detalhes de como devem ser as propagandas destinadas a crianças e adolescentes.

Diferentemente dessa carência brasileira, estudo internacional realizado em 73 países revelou que 62 deles possuem regulamentações sobre publicidade televisiva que faz referência às crianças; 46 países possuem regulamentações estatutárias e 51 possuem códigos de autorregulamentação; 37 dos países analisados possuem ambos os tipos de regulamentação: estatutário e autorregulamentação; 32 possuem restrições específicas sobre publicidade televisiva para crianças.

Isso não significa simplesmente banir drasticamente a publicidade infantil. Não há nada pior do que a gangorra do tudo ou nada da qual o Brasil, por comodidade ou por submissão a forças espúrias, constitui-se em mestre praticante.

Em suma, é mais do que tempo e hora de que o Brasil entre no longo rol dos países para os quais a formação e o fortalecimento psíquico, ético e educacional de suas crianças constituem-se na riqueza mor de uma nação.


“Estudos realizados nos Estados Unidos concluíram que, só por volta dos cinco anos, a criança começa a diferenciar mais precisamente o conteúdo de um programa televisivo e o de uma propaganda”



Lucia Santaella é doutora em teoria literária, professora titular no programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora, entre outros livros, de Semiótica Aplicada (Cengage Learning, 2002)




Crianças, sociedade de consumo e regulamentação de publicidade

por Isabel Orofino

para Maria Aparecida Baccega


Ao longo das duas últimas décadas houve no Brasil uma ampliação significativa do debate sobre as relações entre mídia e infância. E essa discussão está marcada por grandes avanços em termos de legislação, sobretudo com a aprovação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças em 1989 e, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990.

Hoje a questão que aquece o debate é a proibição da publicidade dirigida à criança. Essa proposta busca a sua efetividade por meio da aprovação, no Congresso Nacional, de dois projetos de lei (PLs): o PL no 5921/01, aprovado em primeira instância em 2008, aguarda pedido de vistas em outras comissões e pede a proibição da veiculação de todo tipo de publicidade endereçada ao público infantil. 

E o outro, o PL no 150/09, também em trâmite, é mais específico e prevê restrições à publicidade de alimentos e bebidas. As organizações da sociedade civil e as agências governamentais responsáveis pelo encaminhamento de tais projetos de lei pedem regras mais rigorosas para esse setor da comunicação e do mercado.  

Porém, mesmo que todo esse processo conte com a mobilização de importantes agentes de defesa dos direitos das crianças, a questão é bastante polêmica. A ideia de proibição tem gerado desconforto na medida em que soa como censura. E no meio acadêmico a discussão encontra dissonâncias, discordâncias e dissidências entre os estudiosos sobre o tema. 

Não restam dúvidas de que toda essa mobilização e debate em torno dos usos sociais da publicidade dirigida à criança é da maior importância. Mas será a proibição o caminho mais adequado? Há controvérsias! Não seria mais progressista buscar o diálogo com as indústrias construindo possibilidades de criação de narrativas e linguagens transformadoras?

O modelo de sociedade democrática que queremos construir para o Brasil pode abrigar medidas restritivas como essas, sem que se defendam a mediação e a negociação? Esses projetos de lei são anacrônicos para o contexto sociocultural do nosso tempo? Que conceito de infância eles defendem? Essas são apenas algumas das questões que estão em pauta.

É claro que este breve artigo não dará conta de cobrir todas elas, por isso vou me limitar a destacar alguns diferentes pontos de vista que alimentam o debate, e deliberadamente buscar ativar a polêmica mais do que reiterar o “pensamento único” sobre o tema.

O momento em que vivemos é marcado por profundas transformações desencadeadas pelo trânsito de uma sociedade de massas para a chamada sociedade de redes. E as repercussões são muito amplas em todos os setores da vida social. Como destacou o teórico latino-americano Jesús Martín-Barbero, na era digital é impossível pensarmos em qualquer tipo de pureza. Pois estes são os tempos da hibridação cultural, do multiculturalismo, da globalização.

O conceito de reflexividade social, como proposto pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, ajuda a visualizar e compreender um tempo em que já não há apenas um emissor poderoso e uma audiência passiva, mas sim uma polifonia em forma de rede. Um tempo em que o debate social se amplifica.

E talvez um dos grandes limites da proibição da publicidade destinada à criança é o nosso conceito de um receptor passivo da teoria da sociedade de massas. É ver a criança como incapaz, indefesa, irracional, ignorante. As pesquisas etnográficas, que se dedicam a ouvir as crianças, têm demonstrado que a recepção da mídia por esse público em particular não é bem assim.

Hoje a criança está imersa, inserida por completo nessa nova cultura, não há como colocá-la “em quarentena”, isolada do contexto cultural mais amplo. A publicidade mobiliza e viabiliza o capitalismo em todo o planeta, e a criança já está imersa nas múltiplas formas de publicidade até não poder mais, assim como todo e qualquer outro ser humano.

O que não acontece apenas através de anúncios, mas de merchandising presente nos mais variados produtos culturais. A criança é consumidora da cultura midiática todo o tempo em companhia dos adultos, ela está diante do repertório comercial todo, inteiro.

Daí que o debate sobre a segmentação da regulação é limitado. A reflexividade social precisa operar em todos os níveis. A criança precisa ser convidada, encorajada a discernir, criticar, escolher, participar. Daí que a proibição parece limitar todo tipo de encorajamento nesse sentido, seja à criação de novas formas de publicidade e campanhas, seja na apropriação e ressignificação realizada pelas próprias crianças.

E é impossível pensarmos a criança dissociada do seu contexto social maior. Não importa se a publicidade está endereçada a ela ou não, pois ela está exposta a toda forma de mobilização de vendas. Por exemplo: que diferença faz a criança assistir a um comercial de salgadinho no horário da manhã e a um comercial de cerveja de noite em que um homem jovem projeta o seu desejo sexual em uma latinha que está sendo empunhada por uma mulher loira, arrumada, que a leva aos lábios, ao que o personagem masculino fala: “Vai, gata, assim, pega, aperta, isso, na boquinha, assim, na boquinha...!”?

Esse comercial deveria ser proibido por uma questão de defesa da dignidade da mulher. É um exemplo grosseiro, machista, patriarcal. Já as crianças, na medida em que participam da cultura midiática em sentido ampliado, estão diante desse e de tantos outros que são extremamente conservadores em termos das representações que oferecem e que nada colaboram para a construção de novas narrativas para uma sociedade multicultural e sustentável. 

Não existe um consenso no debate sobre as relações entre a cultura do consumo e a infância, ainda que as principais agências que propõem esses projetos de lei sejam enfáticas em afirmar que a mídia molda o comportamento de consumo infantil. Há diferentes pontos de vista nessa discussão. Existe, sim, por um lado um discurso quase dominante que soa como pânico moral.

Um discurso que responsabiliza a publicidade como agente direto causador de mudanças em hábitos alimentares e que provocam a obesidade, ou ainda como indutora ao consumismo desenfreado, chegando até a transformar as crianças em zumbis diante das telas e que pode ser facilmente questionado pelo paradigma da causa e efeito, sem considerar contradições e diversidades.

Além disso, o que se percebe nesse discurso é que na maioria das vezes são adultos que falam em nome das crianças sem mostrar evidências empíricas de estudos com as crianças. Mas, na medida em que falam, eles falham em ouvir as crianças, e não mencionam as suas metodologias de consulta e mobilização para a participação das crianças nesse debate.

Talvez o mais importante nessa discussão seja justamente o modo como ela coloca em pauta o entendimento do conceito de infância. O que parece que os movimentos organizadores dessa mobilização não estão levando em conta é a ausência de propostas que incluam a participação da criança nesse debate, acredito que pelo fato de que se ancora em um conceito ultrapassado de infância, o infante, ou seja, aquele que não pode falar, aquele que não tem fala.

O que nós precisamos é ampliar o número de iniciativas que se voltem à participação das crianças nesse debate, pois, se há tantas transformações em curso, é certo que nossas crianças já não são mais as criaturas frágeis e indefesas que o pensamento romântico nos fez acreditar.

 

“Hoje a criança está imersa, inserida por completo nessa nova cultura, não há como colocá-la ‘em quarentena’, isolada do contexto cultural mais amplo. A publicidade mobiliza e viabiliza o capitalismo em todo o planeta”

 



Isabel Orofino é professora do Programa de Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM (PPGCOM/?ESPM-SP). Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Autora de Mídias e Mediação Escolar: Pedagogia dos Meios, Participação e Visibilidade (Cortez, 2005) e Mediações na Produção de TV: um estudo sobre O Auto da Compadecida (PUC-RS, 2006) e de artigos sobre o tema da comunicação, consumo e infância