Postado em
Uma alma que se maravilha
No mês de novembro, a pequena Cidade de Goiás tem perfume de manga. Na janela de moldura cinza do casarão colonial da rua que sobe para o Chafariz da Boa Morte, o balde vermelho cheio de manga vale dois reais. Mas é muita manga pra eu comer sozinha, só queria uma pra comer mais tarde, geladinha, enquanto espero a chuva passar... Então leva duas, minha linda. Não, não precisa pagar nada, não! Vai pagar duas mangas?!? E puxa uma cadeira, que tá saindo um café e um mané pelado fresquinho...
Como lindamente cantou Luiz Gonzaga e outros depois dele, quem anda a pé pelas estradas – das grandes metrópoles ou dos sertões – vê muita coisa, coisa a grané. Coisas que somente são vistas andando a pé. Outro poeta nos perguntou: como é o lugar quando ninguém passa por ele? Existem as coisas sem ser vistas?
Na velocidade do carro, da moto, do burrico, o balde de mangas estaria lá? O mel de suas cascas, quem o sentiria? E Dona Zulmira, que colhe as frutas do balde nas enormes mangueiras de seu quintal, mas tem a generosidade de deixar caírem algumas, de maduras mesmo, para o deleite de seu velho cão? Ela haveria naquele novembro? Velozmente, como degustar iguarias tão vilaboenses, o café ralo, a mistura macia de mandioca, milho, queijo, coco e os causos do dia?
Ou o tumulto das crianças saindo da escola e topando com a chuva no caminho (corre, minino, olha o caderno molhando...)? Ou, no lusco-fusco do entardecer, ouvir soar a Ave-Maria de Gounod enquanto Dona Zulmira pragueja notas impublicáveis contra o padre que aposentou o repique dos sinos das seis e “modernizou a cidade” com a melodia eletrônica? Credoemcruz, Nossa Senhora, ouve que coisa mais feia, minha filha! E pega outro manezinho, que ainda é cedo pra janta...
No metabolismo de uma viagem que se empreende caminhando por uma cidade – no quarteirão de nossa casa ou nos rincões mais escondidos do planeta – o viajante estabelece um elo entre atividade física e ação cognitiva. Por meio do movimento do corpo, a caminhada põe em andamento um processo intelectual. Estabelecendo uma cadência orgânica para o visitar – por vezes tão contrário ao ritmo de nosso tempo –, as andanças põem o corpo em uníssono, dos pés à cabeça, do físico ao intelecto, o código do pensamento e o código do poético. Uma caminhada quando empreendida com a mente aberta, o olhar atento e o ritmo orgânico, transforma-se num ato de leitura do texto luxuoso que é o lugar que se visita.
O ofício do viajante é, assim, viver os lugares visitados, valorizando muito mais a qualidade das experiências que a quantidade de locais marcados em um check list imaginário ou a intensidade dos quilômetros de suas andanças. Por que diminuindo sua velocidade e adotando seus pés como meio de transporte, o viajante faz um movimento de aproximação: observa melhor as casas, as ruas, entra na contramão, topa com a surpresa virando a esquina. Espia mais detidamente as pessoas que circulam pelas ruas, como são, o que fazem. Conversa com elas, pede uma dica, entra para uma jabuticaba no pé do vizinho, ouve uma história, uma fofoca. Conecta uma informação à outra. Une percepção e reflexão.
Quem já vivenciou em suas viagens um fim de tarde como aquele da Cidade de Goiás sabe de sua riqueza. Cousineau defende que esta é uma experiência do profundamente real que espreita em toda parte, entre séculos de estereótipos e de falsas imagens que nos impedem de ver realmente, em nossas viagens, outras pessoas, outros lugares, outros tempos. Nesses momentos, o viajante, que não é de casa, não se sente um estrangeiro. São momentos que nos fazem entender que o extraordinário do viajar está justamente na aproximação do viajante com o lugar e sua gente, que só o ritmo de nosso próprio corpo permite. Aí, então, o viajante é uma alma que se maravilha.