Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Paradigmas do Esporte

Preparador físico da seleção feminina brasileira de vôlei, José Elias Proença, graduou-se em educação física e, em 1977, ingressou na faculdade de psicologia. O reflexo da versatilidade de Zé Elias, como é conhecido no meio esportivo, espelha-se na escolha paralela por duas áreas que se entrecruzam ao longo de sua carreira.

Atualmente, faz mestrado em educação física e doutorado em psicologia pela Universidade de São Paulo, com foco em performance motora humana e suas relações sensoriais. Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o preparador físico falou sobre o trabalho realizado com as atletas e a constante quebra de paradigmas da atividade física. Ao ser questionado sobre como gostaria de ser apresentado, Zé Elias define: “O que me resume é: pessoa que gosta de movimento e corpo”. Abaixo, alguns trechos da conversa.

VÔLEI FEMININO

O meu momento de carreira se deve muito a minha história de vida, e o primeiro passo profissional que dei foi no Sesc, em 1971. Na época, nascia o Projeto Juventude, que tinha a proposta do esporte como meio de educação, como possibilidade de desenvolvimento social. A partir daí, voltei-me para essa orientação que é chamada de metodologia social da atividade física, e a minha formação foi relacionada a essa questão de dar oportunidade para a pessoa se expressar corporalmente pelo movimento. Por isso, tenho um vínculo afetivo muito grande com essa história.

Em 1996, estava no vôlei masculino do Banespa e mudei para o feminino, ao aceitar uma proposta do Zé Roberto [José Roberto Guimarães, técnico da Seleção Brasileira Feminina de Vôlei] de trabalhar no sentido de entender a mulher. Achei interessante e, então, começamos a estudar bioquimicamente características femininas. Iniciamos uma série de testes, de acordo com o ciclo menstrual, para entender o que significava aquilo em termos de comportamento e de performance motora.

A experiência com as mulheres trouxe efeitos tanto para o rendimento como para a saúde. O trabalho com o ciclo menstrual, associado ao departamento médico e à fisiologia leva a mudanças na relação comportamental, afetiva e social. Além disso, a seleção feminina tem conseguido resultados e, com isso, essa forma de conhecimento vem à tona. Então, há uma interferência do conhecimento que pode definir a metodologia. Cria-se essa possibilidade de mudança de paradigma. O quanto a teoria interfere e o quanto a metodologia aceita essa teoria e também bombardeia a teoria para que ela repense e desenvolva novos conhecimentos.

Abaixo o excesso

Vim da academia, mas, na vida profissional, passei por essas transformações de paradigmas. A necessidade de a atleta ser forte é uma mudança de pensamento, mas tínhamos que avaliar os efeitos colaterais que já estavam surgindo na década de 1980, com a chamada “tríade da mulher atleta” [síndrome conhecida na medicina esportiva, que inclui osteoporose, distúrbio do ciclo menstrual e problemas de alimentação, advindos da atividade física]. Hoje, por exemplo, há uma busca pela redução da taxa de gordura, mas, ao acompanhar o ciclo menstrual e confirmar através do conhecimento científico, concluímos que é uma situação de alto risco de desenvolvimento de osteoporose.

Eu sinto que está em mudança o paradigma do corpo definido a qualquer preço, por excesso de trabalho ou por uso de substâncias, até mesmo aquelas maléficas ao organismo. É uma relação de interferência de metodologia e de conhecimento, na escolha de intervenções adequadas. Nos próximos cinco anos, acho que todo esse abuso tende a desaparecer.

Dentro da orientação do movimento, temos duas grandes vertentes: uma que é para a técnica e outra para o rendimento. Primeiramente, precisamos desenvolver as coordenações para a técnica, mas para isso é preciso ter sustentação da coluna, da articulação. Então, quando começamos a aprimorá-la, trabalhamos no sentido de desenvolver também esses músculos mais de sustentação do esqueleto e que dão domínio dessas reações. Normalmente, o incremento da habilidade para o esporte sempre foi mais interessante do que a condição física. Porém, se o Ronaldo, por exemplo, fosse um atleta desenvolvido, do ponto de vista das estruturas profundas para sustentar o movimento, teria acontecido aquilo com a patela dele? 

IVALDO BERTAZZO

Para o trabalho com a seleção brasileira, trouxe também outras contribuições importantes, entre elas, a formação que fiz com o Ivaldo Bertazzo. Infelizmente, a universidade ainda não se deu conta da presença desses outros métodos. Quando o Ivaldo fala de coordenação motora é sob a ótica de um conceito completamente diferente da teoria pura, do conhecimento de controle motor gerado na academia.

Hoje, há professores que começam a falar um pouco mais sobre o que chamamos de corpo sensível. Algumas pessoas têm estudado o Ivaldo, que traz esse conceito de coordenação motora levado para a arte, que é a dança. A expressão da equipe de vôlei da seleção brasileira eu também considero arte. Aqueles que procuram o Ivaldo sentem que devem passar pelo sensível, pelo profundo, pela questão das pulsões psicológicas. Eu convivi bastante com ele e não sei se o Ivaldo tem consciência disso, mas precisa saber da importância que ele tem para o esporte.

Acima de tudo o talento

Para o Pelé, foi muito favorável estar em um país tropical e ter a liberdade de, enquanto criança, estar na rua, jogar bola, soltar pipa, subir morro. Ele formou as sinapses relacionadas à história de vida e ao que ele traz na memória. Tudo isso diz respeito à individualidade, que é o primeiro aspecto de uma tríade de influências. Outro ponto é o tipo de tarefa, quais habilidades foram sendo desenvolvidas.

O Pelé, por exemplo, era talentoso com os pés e com as mãos. Por fim, o tipo de ambiente é determinante, se é um lugar que exige mais possibilidades perceptivas, se pede mais controle. Alterando-se um dos componentes da tríade, o indivíduo pode não ser o mesmo. Ele vai tomar outra direção e isso tende a estar relacionado ao momento em que ocorre a mudança. Se o Pelé tivesse nascido em uma família de classe alta, talvez não tivesse criado as mesmas resistências e os estados imunológicos, pois o ambiente favorável interfere na manifestação da genética. Por isso, precisamos atuar com conhecimento dessas relações para poder fazer com que o talento se manifeste da melhor forma.

“Eu sinto que já está em mudança o paradigma do corpo definido a qualquer preço, por excesso de trabalho ou por uso de substâncias, até mesmo aquelas maléficas ao organismo”