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Crítica e criação

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

A possibilidade de contato com escritores já estabelecidos no mercado editorial e a troca de experiências entre alunos fazem das Oficinas de Criação Literária um fenômeno crescente entre diletantes e profissionais. Com a expansão de pequenas editoras dispostas a publicar novos autores e mesmo com o advento da internet como espaço democrático de acesso, poetas, romancistas e roteiristas de cinema entenderam a necessidade de abrirem-se ao diálogo com o público – este, potencialmente podendo vir a formar os literatos da nova safra. A importância das oficinas em meio ao atual cenário cultural é analisada, em artigos inéditos, pelo poeta Carlos Felipe Moisés e pela roteirista Sabina Anzuategui.

Escrita – o confronto com a solidão
por Carlos Felipe Moisés

A ideia de “oficina literária” se baseia no pressuposto de que nenhum livro nasce pronto, e de que todo projeto de escrita admite sempre a possibilidade de vir a ser aperfeiçoado, por maior que seja o esforço do escritor em dar o máximo de si, no encalço da perfeição ou da obra definitiva.

Nesse sentido, “oficina”, antes de ser atividade de grupo, é uma questão de foro íntimo, representa a consciência que todo escritor deve ter de suas limitações, por mais confiança que deposite no talento e na força da inspiração. A ideia de oficina literária na verdade se opõe à de escrita como pura inspiração. Se tudo dependesse apenas de inspiração e talento, toda oficina seria inócua. Se o escritor for de fato dotado desses dons, o resultado será naturalmente positivo; se não o for, inútil insistir.

Se tudo dependesse apenas da potencialidade de cada um, escrever seria, como diz Osman Lins, “um ato infernalmente solitário” (Guerra sem Testemunhas: O Escritor, Sua Condição e a Realidade Social, 1ª ed. São Paulo, Ática, 1974, pág. 77). Um dos motivos que leva alguém a escrever é, de fato, a certeza de que a obra literária é o último reduto onde o sujeito pode conquistar a plena posse de si mesmo, e o livro por escrever será o triunfo da individualidade, contra a massificação, a dispersão, o anonimato. Daí ser inescapável o confronto com a solidão.

Mas ao mesmo tempo em que se empenha na descoberta e na posse de si mesmo, o escritor é também movido pelo impulso de comunicação com o outro, de sintonia com os semelhantes. Escrever é sem dúvida um ato solitário, mas é também, às vezes contraditoriamente, um ato gregário, um convite/apelo a partilhar experiências comuns.

Toda oficina literária lida com a ambiguidade aí implicada. Participar de uma não é só tirar proveito do estímulo e da motivação para escrever; é também aceitar o desafio de ajustar a individualidade intransferível, a subjetividade mais profunda, ao consenso e às expectativas alheias, pelo menos as expectativas e o consenso daquele grupo de pessoas que se reúnem para desenvolver as possibilidades de uma oficina.

Toda oficina deve ser “de criação”, isto é, deve oferecer aquele feixe de motivação e estímulo que diz a cada um: “escreva, escreva, escreva”; mas será também “de crítica”, na medida em que todos serão convidados, de um modo ou de outro, a emitir sua opinião, seu juízo de valor. Ninguém escreve para poder dizer, satisfeito da vida: “pronto, escrevi”. Todo escritor tem necessidade de saber dos outros – o bom senso, e algum pudor, impedirão que o autojulgamento seja soberano – se a tentativa foi bem-sucedida.

Como “criação”, a oficina literária se assemelha à marcenaria dos antigos liceus de artes e ofícios. Ao aprendiz, o mestre marceneiro ensinará os rudimentos do serrote, do formão e da plaina; dos pregos, do martelo, dos parafusos e da chave de fenda; mas no primeiro momento não lhe facultará acesso a ferramentas de melhor qualidade ou mais refinadas.

E lhe proporá experimentar, exercitar-se sem compromisso, com uns retalhos ou sobras de madeira comum, desaconselhando que ele ponha as mãos numa fina peça de jacarandá. O risco de desperdiçar madeira de lei e danificar ferramentas valiosas é muito grande. A diferença é que o escritor aprendiz experimentará e se exercitará com a madeira que quiser. Ferramentas? Ele terá uma só: a língua. E ai dele se não a tratar, desde o início, com o máximo de respeito, delicadeza e precisão. É exatamente para isso que serve a oficina literária.

Já como “crítica”, a atividade se assemelha à terapia de grupo, com a desvantagem (que pode vir a ser uma vantagem) de que na oficina literária todas as personalidades são, em princípio, fortíssimas, extremamente ciosas de suas posições, seus palpites-certezas, seus direitos e prerrogativas. Divergências, conflitos e impasses são inevitáveis. No caso de haver impasse absoluto, cabe perguntar: então o que estamos fazendo aqui? Se cada um tem tanta certeza assim dos seus pontos de vista, melhor ficar em casa. Claro que ninguém é dono da verdade, mas isso não quer dizer que a verdade de cada um seja inquestionável. Gosto não se discute? Falso. Gosto é das raras coisas que vale a pena discutir.

Tudo seria muito simples se, em matéria de qualidade literária, houvesse unanimidade em relação ao que vale ou não vale, ao que é bom ou mau. Todo verdadeiro escritor tem dúvidas a respeito. Só o principiante pseudomoderninho, axiologicamente correto, é que não. “Eu é que inventei, eu é que fiz; eu acho – modéstia à parte – que ficou muito bom e ponto final.

Quem tem autoridade para me convencer de que minha opinião não é tão válida quanto qualquer outra?” Por isso toda oficina literária, caso se decida a enfrentar a questão do valor (minha recomendação é que não deixe de enfrentar), exige alguma psicoterapia, desde que informal, sub-reptícia.

Isso põe em evidência o papel da coordenação, que costuma ser assumido por um escritor: todos os participantes, incluindo o coordenador, devem ser oficiantes do mesmo ofício. Difícil imaginar uma (boa) oficina literária comandada por um professor ou por um teórico da literatura, que não seja também, e acima de tudo, escritor – embora a atividade tenha a ver com tudo isso. Não deixa de ser um pouco ambíguo, mas não há como escapar.

O coordenador será, em princípio, um escritor mais experiente, dotado de sólido conhecimento técnico, mas prático, devendo resistir à tentação de dar aulas ou de teorizar a respeito. Sua experiência será colocada a serviço dos projetos individuais, sugerindo caminhos, oferecendo exemplos comparativos, apontando riscos etc. Mas a oficina funcionará muito bem se todos os participantes estiverem mais ou menos no mesmo nível, no que se refere à experiência adquirida, dispensando-se a figura única do coordenador. Tarefas serão distribuídas em forma de rodízio, para os casos que exijam pesquisa e aprofundamento.

Num primeiro momento, a chave será verificar se o texto final realiza satisfatoriamente a intenção do autor. Mas o coordenador, se houver um só, não tem a palavra definitiva. A questão (o autor conseguiu realizar a contento a ideia de conto, poema etc. que tinha em mente?) será submetida à apreciação de todo o grupo e todos terão sua contribuição a dar.

Caso contrário, os participantes correrão o risco de se transformar em clones do escritor-coordenador. Se este for de fato gênio, não um daqueles “gênios-para-si-mesmos sonhando”, como diz Fernando Pessoa, a clonagem poderá até ser encorajada. Mas para isso não há necessidade de oficina.

A oficina só é necessária, e indispensável, para aqueles escritores que admitem: escrever é um ato ao mesmo tempo solitário e gregário. Graças a isso, a criação literária pode abrigar, no mesmo espaço, o melhor de cada um e o melhor que, à nossa volta, nos espreita e muitas vezes passa despercebido.

Carlos Felipe Moisés é autor, entre outras obras, de Noite Nula (Nankin Editorial, 2008), Histórias Mutiladas (Nankin Editorial, 2010) e Poesia e Utopia (Escrituras, 2007)

Todos querem ser roteiristas
por Sabina Anzuategui

Anos atrás, tive aulas com o editor Jiro Takahashi num curso sobre “Edição de livros populares”. Um dos temas discutidos era sobre o jovem escritor – ou o aspirante a escritor, ainda que não fosse jovem. Lembro de um comentário que me pareceu simples e verdadeiro.

“Todo mundo quer ser artista”, ele disse. “Mas para ser pintor, a pessoa precisa ter talento manual. Para ser músico, precisa tocar um instrumento ou ter uma boa voz. Para ser ator, precisa coragem de se expor diante da plateia.” Então ele sorria de um jeito especial, com seu humor tímido e generoso: “Já, para ser escritor... bem, todo mundo sabe escrever. Parece tão fácil. Por isso as oficinas de criação literária estão sempre lotadas de alunos”.

Há coisas que só um professor percebe, pois não aparecem na imprensa, nas entrevistas dos profissionais, ou nas estatísticas do mercado de trabalho. O professor sabe o degrau enorme que existe entre o sonho de seus alunos e sua possibilidade de realização.

Sou professora de roteiro para cinema e televisão há mais de dez anos. Já trabalhei em faculdades, dei oficinas gratuitas na periferia, oficinas famosas ligadas a festivais, aulas para a classe média em escolas particulares e para intelectuais conhecidos. Devo ter quase mil ex-alunos, de diversas origens, que passaram por minhas aulas em diferentes fases de suas carreiras.

Dois de meus ex-alunos ficaram famosos (não necessariamente por mérito meu). Muitas dezenas se tornaram bons profissionais (ou continuaram sendo), respeitados em sua área, mas desconhecidos do grande público. Imagino o que teria acontecido com aquelas outras centenas... pessoas de que nunca mais ouvi falar.

As pessoas procuram oficinas de roteiro para cinema e TV por vários motivos. Alguns buscam apenas uma distração, um hobby, umas horas agradáveis ouvindo curiosidades sobre a profissão cuja fama possui mais glamour que a prática cotidiana. Esse tipo de aluno geralmente nem realiza as tarefas propostas pelo professor. Ele quer apenas ouvir: e quanto maior o charme do professor, quanto mais picantes as histórias que contar, maior será sua satisfação com o curso.

Mas, além dos turistas, existem os alunos que gostariam realmente de trabalhar na área. Alguns estão quase lá, em profissões parecidas: jornalistas, publicitários etc. Outros sentem um desejo que parece além de seus recursos – donas de casa, jovens de baixa renda, oficiais de justiça aposentados... querem acreditar na possibilidade, mas o bom senso insiste em repetir que o sucesso seria improvável.

A oficina é uma maneira rápida e barata de sondar o terreno, para ambos os casos: não exige muita dedicação, custa pouco e às vezes é gratuita. Em algumas semanas, o aluno poderá entender melhor o problema, em seu caso específico – qual a distância que deverá percorrer para chegar ao pote de ouro: a profissão ideal, em que somos criativos e influenciamos o mundo, sem sair da cadeira de nosso escritório.

Um bom professor desfaz a miragem na primeira aula. Em primeiro lugar, um roteirista profissional é raramente criativo segundo o senso comum – ou seja, a criação espontânea, a expressão pessoal e original. O roteirista profissional é criativo conforme a encomenda: deve canalizar suas ideias para o projeto, de cinema ou TV, para o qual foi contratado.

São raras as situações em que um produtor procura o roteirista e diz: “Quero fazer um filme (ou programa), vou buscar o dinheiro necessário para isso, mas não tenho uma ideia: preciso que VOCÊ, criador original, me diga o que filmar.” Já ouvi ou participei de situações parcialmente parecidas – ou seja, em que o briefing (encomenda original) era mínimo. Mas um caso sem NENHUM briefing nunca vi. Inspirada pela sabedoria camponesa de minha avó, costumo dizer que as pessoas te pagam para fazer o que ELAS querem. Ninguém te paga para fazer o que VOCÊ quer.

Cada um julga a qualidade de um professor segundo seus próprios critérios. Para mim, o principal é a honestidade. Talvez alguns alunos não percebam, mas o professor que elogia demais a profissão de roteirista, e exalta demais as oportunidades de trabalho, está no fundo vendendo otimismo, e, como bom vendedor, exagera as qualidades para conseguir mais clientes.

Um professor não deve deprimir o aluno, isso é claro. Ser roteirista pode ser interessante, e pode até render um bom dinheiro. As oportunidades existem: o mercado audiovisual no Brasil tem uma boa parcela de produção própria (principalmente na TV), e todo ramo de negócios renova regularmente suas equipes. Mas ninguém deve iludir os outros. E iludir, no caso de oficinas de roteiro, significa vender a ideia de que um curso de dois meses vai transformar o aluno num roteirista.

Escrever roteiro é um trabalho. Como todo trabalho, para trabalhar é preciso de um chefe (quem manda no dinheiro manda nas ideias). Esse chefe é às vezes distante e coletivo, como nos concursos culturais promovidos por entidades públicas e privadas. O chefe pode também ser muito próximo e até delirante (por exemplo, um milionário que gostaria de fazer cinema, mas não sabe como). Muitos aspirantes acreditam que o chefe pode ser você mesmo – grande mito difundido a partir de exemplos do mercado americano, em que é possível vender um roteiro original para empresas produtoras.

Mas, assim como a neve no Natal, tal fenômeno encantador não ocorre no Brasil. Aqui, se você é uma galinha dos ovos de ouro, as empresas vão comprar a galinha e jogar fora os ovos. Depois vão pedir à galinha que solte de suas entranhas vários objetos dourados – chaveiros de ouro, porta-retratos de ouro, abridores de lata de ouro.

Uma oficina de roteiro pode mostrar ao aluno os primeiros passos das várias missões do role-playing game de se tornar um roteirista remunerado. A primeira, mais óbvia e mais difícil, é aprender a escrever bem. Mas existem outras: conhecer o mercado audiovisual; estabelecer uma rede de relações profissionais; entender sobre preços e legislação, para negociar bem. Uma oficina é apenas isso: um começo. Talvez não seja o único modo de começar – mas, dependendo do professor, pode ser um ótimo impulso para os que têm persistência e talento.

Sabina Anzuategui é roteirista dos filmes Como Esquecer (Direção de Malu Di Martino, 2010) e A Casa de Alice (Direção de Chico Teixeira, 2007), e autora do romance Calcinha no Varal (Companhia das Letras, 2005).