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Em Pauta
Ilustrações: Marcos Garuti
Cultura na revitalização urbana
No último século, a paisagem arquitetônica e urbana da cidade de São Paulo viveu uma transformação incisiva e veloz. Em decorrência, o patrimônio cultural sofreu graves perdas. Tanto que, atualmente, urgem ações pela preservação física, paisagística e ambiental da cidade. E a utilização da cultura como requalificação dos espaços urbanos é colocada à luz entre as soluções para esse problema.
O tema ganhou força com a ?iniciativa de aproximar a cultura e o patrimônio histórico exemplificada pela ?Pinacoteca, a Sala São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa – em contraste com ?regiões tomadas pela degradação. O professor da Faculdade de Arquitetura e ?Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Lúcio Gomes Machado e o ?arquiteto e urbanista Decio Tozzi analisam a questão.
Espaços Culturais e Cidadania
por Decio Tozzi
A cidade de São Paulo, no último século, sofreu uma evolução única na história da arquitetura e do urbanismo, com característica “autofágica”, refazendo-se sobre si mesma e destruindo, nesse processo, as marcas e documentos de importância para a leitura histórica dessa evolução.
A velocidade desse quadro de transformação urbana traz em seu bojo um sentido predatório, voraz em seu aspecto especulativo, causando consequências desastrosas à qualidade do meio ambiente, à paisagem urbana e à preservação do patrimônio cultural da cidade.
A falta de preocupação do poder público com aspectos de preservação física, ambiental e paisagística, bem como de documentação, deixou São Paulo desprotegida com relação à força de devastação desse processo de transformação.
Na estrutura espacial da cidade, porém, notam-se ainda marcos significativos da ocupação histórica espontânea, manchas urbanas sobreviventes à devastação que indicam, pela qualidade arquitetônica e pela sabedoria de sua implantação, os caminhos de recuperação e revitalização urbana.
Desde a década de 1970 cresce uma consciência que move toda a sociedade paulistana, através do exercício da cidadania, a promover um conjunto de propostas de revitalização e requalificação não só de espaços urbanos como de edifícios significativos, cujas transformações tipológicas exibem um alto nível de criatividade e excelência arquitetônica.
A Carta de Veneza de 1964, da qual o Brasil é signatário, explana que “a conservação dos monumentos é sempre favorecida quando a ele se atribui uma função útil à sociedade”.
Além disso, “a noção de monumento compreende não só a criação arquitetônica isolada como também o ambiente no qual ela se insere. O monumento é inseparável do meio no qual ele se situa e da história da qual é testemunha”.
Nesse sentido vimos, nessas últimas décadas, a cidade de São Paulo ser dotada de excepcionais programas de lazer cultural com novos usos ditados pela contemporaneidade.
É exemplar o programa de centros interativos de lazer e cultura que o Sesc vem desenvolvendo em todo o país, numa experiência única, de criação de espaços para o desenvolvimento do conhecimento e da criatividade.
Por outro lado, o programa de Revitalização do Centro de São Paulo propõe uma estratégia de reciclagem e construção de edifícios como a Pinacoteca, o edifício antigo do Dops, de triste memória, o Museu de Arte Sacra, a Estação da Luz, a Sala São Paulo no pátio central da Estação Júlio Prestes, que constituem bons exemplos de intervenção pelo poder público acompanhados do esforço de reabitar a área central.
Iniciativas espontâneas da população como a recente implantação de um conjunto de teatros nos prédios da Praça Roosevelt e a transformação do bairro da Vila Madalena em centro de atividades culturais e de lazer nos indicam a importância da percepção do desejo emergente da população na prática social urbana.
Na qualidade de arquiteto desta cidade, tive oportunidade de contribuir nesse processo de implantação através da criação de dois novos importantes espaços de cultura e lazer.
A Vila Itororó
O primeiro é a Recuperação e Revitalização do conjunto da Vila Itororó, que desde a década de 70, quando foi apresentado o projeto à Prefeitura do Município de São Paulo, esperava sua construção.
A Vila Itororó, construída a partir de 1916 pelo imigrante português Francisco de Castro, constitui um dos mais interessantes conjuntos arquitetônicos espontâneos do mundo pela sua singularidade e bizarria.
Construída com material de demolições configurou uma impressionante colagem arquitetônica de caráter surrealista que compôs inicialmente um conjunto de 35 casas além de pequeno castelo que ilustrou o desejo e a fantasia de poder de seu construtor.
Considerando a permanente perda de memória dos bairros paulistanos nesse processo autofágico de evolução urbana, foi proposto um conjunto de atividades que registra e pratica, através de oficinas e exposições, os usos e costumes da tradição e das vocações históricas do bairro do Bixiga.
Além disso, o projeto contempla uma solução exemplar para os moradores, que deixam a atual condição habitacional infra-humana e são realocados no próprio bairro, em moradias dignas e com todo o conforto.
O Parque Villa-Lobos
Na década de 1980, ministrava aulas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da USP, e no caminho de ida e volta sempre observava a imensa área onde hoje se implanta o Parque Villa-Lobos, um dos últimos vazios urbanos do centro expandido de São Paulo, totalmente degradada, usada até então como “bota fora” de detritos de toda natureza, oferecendo grande prejuízo ambiental, desde a poluição tóxica até a segurança da população.
Considerando a importância da área, tive a ideia de propor a construção de um novo parque. Após detalhada consulta à legislação municipal, parti com uma ideia para a epopeia urbanística que constituiu a implantação do Parque Villa-Lobos. Desenhei um parque contemporâneo, de geração atual.
Sabemos que os parques urbanos de primeira geração destinavam-se apenas a caminhadas e meditação, possuindo áreas verdes, caminhos e restauração.
A sociologia urbana pós-guerra transformou o conceito de tempo livre das populações urbanas, que passou também a significar um tempo de conhecimento, substituindo o lazer alienado pelo saber e a cultura.
Portanto, os novos parques urbanos, em todo o mundo, são formados por parques temáticos, que além das áreas verdes e clareiras apresentam um programa em que a população usufrui a cultura e expressa sua sensibilidade.
Escolhi o tema da música e montei seu programa com a população da cidade, pois corria o ano de 1987, centenário do nascimento do grande maestro e compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos. Além disso, a área oeste onde se implanta o parque caracteriza-se pela tradição musical popular paulistana.
Dessa forma, nasceu correta e democraticamente a conceituação do Parque Villa-Lobos em homenagem ao compositor, um local com o caráter musical desde o ensino até a apresentação pública, resultando num parque temático atual, de extrema modernidade e contemporaneidade.
Assim conceituado e proposto o novo parque, procurei os vereadores mais atuantes de São Paulo que apoiaram o projeto, e eles se encarregaram de coordenar a divulgação da ideia e sua discussão com toda a população de São Paulo, além de promover uma coletiva de imprensa para anunciar o novo evento urbano.
Iniciou-se um dos mais belos processos de luta de uma cidade para dar um destino digno e correto a uma importante área vazia e perigosa de seu território.
Passei a divulgar a ideia e o plano. Por três anos, falei e fiz apresentações em associações atléticas, câmaras comunitárias, favelas, associações de bairros, clubes desportivos, praças públicas, além das reuniões no grande auditório do Colégio Santa Cruz, onde empresários e políticos demonstravam seu entusiástico apoio.
O que um cidadão falava, outro apoiava, e foi crescendo em toda São Paulo a ideia do Parque Villa-Lobos, saudada por todas as categorias sociais.
Lembro-me do dia memorável em que o então prefeito e ex-presidente Jânio Quadros demonstrou sua condição de grande estadista declarando: “Que se faça um parque para a cidade”, e ofereceu também uma área menor da prefeitura que completava o perímetro.
Foi uma vitória da cidadania antes da promulgação da Constituição Cidadã de 1988!
Pela primeira vez na região um movimento da sociedade influiu democraticamente na destinação de um grande vazio urbano.
Dessa data em diante a história é conhecida: o Parque Villa-Lobos vem sendo implantado pelas sucessivas gestões e São Paulo vê com entusiasmo a construção, neste ano, dos dois primeiros pavilhões da área cultural:
Orquidário Professora Ruth Cardoso e o CEREA – Espaço Iconográfico do Meio Ambiente.
Os Auditórios e o Centro de Convergência Musical, com escolas de dança e música, serão as próximas construções que completarão o Plano Diretor original. São Paulo deu o exemplo, e eu tive a honra de conduzi-lo.
Relato esse fato da história urbana de São Paulo pensando nos jovens, nas novas gerações, para que encontrem sempre, no amor à cidade e a seus habitantes, a razão principal de sua atuação como arquitetos e cidadãos.
A cidade como local da cultura
por Lúcio Gomes Machado
Há um sentimento difuso sobre a inadequação de nossas cidades para uma vida digna. Os sintomas percebidos pelos diversos segmentos sociais variam da falta de segurança ao trânsito caótico, passando pelo sentimento de solidão no meio da multidão. De transportes coletivos superlotados a falta de empregos atrativos. Ouve-se recorrente queixa de que nossas cidades são feias, malconstruídas, sem os equipamentos necessários e são ainda muito mal mantidas.
Mas a cidade é uma das mais importantes invenções da humanidade. Marco do domínio das técnicas de agricultura na antiguidade, local do comércio e da indústria nos séculos passados, é hoje o palco privilegiado dos serviços diferenciados.
Revendo as cidades do passado, percebemos uma clara identidade entre a forma urbana, a organização social e a arquitetura que marca os seus espaços. Gradativamente, essa coerência foi sendo perdida, resultando em um ambiente irreconciliável com a cultura contemporânea: parecem as cidades serem uma colagem de elementos conflitantes, com técnicas e formas inadequadas. Ou talvez pior: os espaços resultam de improvisações públicas e privadas visando o simples atendimento a necessidades prementes, enfatizando somente o funcional-construtivo, destituído de qualquer outra preocupação.
Desse modo, podemos explicar certa coerência na percepção de inadequação das cidades pela falta de atributos culturais nas intervenções e nas atividades realizadas, em qualquer escala que se considere.
A partir da construção do Centro Pompidou, em Paris, no final da década de 1960, perceberam o governo francês e, posteriormente, as elites dirigentes dos demais países do hemisfério norte a importância dos equipamentos culturais para a renovação das cidades e para a integração dos jovens ao mundo urbanizado contemporâneo.
De forma suplementar, destacou-se o papel catalisador da cultura para a renovação da economia urbana e para maior atratividade das cidades, seja com o desenvolvimento do turismo interno e externo, seja para a instalação de empresas que demandam quadros altamente qualificados – os quais, por sua formação e prática social, demandam atividades culturais –, além de salários competitivos e oferta de serviços urbanos qualificados.
Decorreu dessas constatações a implementação de políticas econômicas e de planejamento urbano – isto é, políticas nacionais, regionais e locais – visando tanto a modernização de antigos equipamentos culturais quanto a implantação de novos programas em novos centros culturais atendendo às várias demandas eruditas e populares. As políticas públicas e privadas relacionadas com a cultura foram revistas de modo a integrar a formação escolar com a formação para o trabalho e a ampliação da capacidade de compreensão do mundo por meio da ampliação das oportunidades de participação na produção e na fruição de manifestações culturais.
Milhares de centros culturais, museus, salas de concerto e auditórios para música popular foram construídos nos países desenvolvidos, para os quais foram encomendados projetos de alta qualidade com arquitetos escolhidos em concursos de maior ou menor abrangência.
Iniciou-se desse modo o restabelecimento dos esquecidos atributos culturais dos ambientes urbanos; mimeticamente, o entorno foi também renovado quanto à arquitetura e ao desenho urbano, bem como as demais funções urbanas foram revigoradas com o ingresso de novos usuários desses espaços. A identidade entre políticas culturais abrangentes e revitalização de cidades ou zonas urbanas degradadas tornou-se óbvia.
Devemos frisar que, por esse enfoque, a questão cultural transcende a mera atribuição de valores simbólicos aos espaços e aos edifícios ou mesmo a oferta de produtos diferenciados para a elite ou produtos multiplicados pela indústria cultural visando a grande massa.
Na realidade, a cultura é, cada vez mais, geradora de oportunidades empresariais, de emprego e de renda, qualificando e diferenciando as cidades que realmente almejam assumir preponderância na polarização da rede urbana. O que era caso excepcional de cidades sedes de grandes conglomerados da indústria cultural passou a ser o alvo perseguido por toda cidade que deseja inserir-se no mundo contemporâneo.
As políticas exercidas no Brasil têm normalmente caminhado em direção oposta, primordialmente por não haver política integrada de governo reconhecendo a cultura como fator decisivo. Há enorme dificuldade das diversas esferas de governo em implementar programas integrados entre os diversos setores. Educação, Cultura, Economia, Planejamento Urbano, Lazer adotam diretrizes próprias, desconsiderando as possibilidades de sinergia e de complementaridade dos potenciais respectivos, ao que se soma a descontinuidade de implementação de programas entre as sucessivas gestões.
No âmbito de cada uma das intervenções, ignora-se sistematicamente o papel fundamental que tem o projeto arquitetônico de qualidade para alcançar os objetivos das políticas traçadas, mesmo quando estabelecida de modo fracionado e não integrado. A prática adotada na esmagadora maioria dos casos é a escolha de projetos pelo menor preço e não pela sua qualidade. É sabido que essa é a forma de se obter posteriormente o edifício mais caro e de pior qualidade.
Certamente, essa maneira de tratar as intervenções governamentais não eram assim deformadas no passado. Pelo menos até a metade do século passado, a implantação de equipamentos públicos contava, quase sempre, com projetos de qualidade.
Um dos modos de marcar uma gestão administrativa era a qualidade dos equipamentos implantados. Sabiam os antigos governantes que o simples atendimento de demanda, de maneira simplória, seria rapidamente esquecida, enquanto o projeto arquitetônico de qualidade seria um elemento para a perpetuação da sua imagem pública.
De modo análogo com o que sucede com a intervenção no ambiente urbano, com a cultura sendo meio fundamental para a sua qualificação, a arquitetura qualificada induz incremento de tecnologia, valor e qualidade da produção industrial e dos serviços correlatos. É o bom desenho que possibilita a introdução de novas soluções, conforme podemos constatar em períodos decisivos do desenvolvimento econômico de países hoje considerados “de ponta”.
As lideranças mais avançadas da iniciativa privada há muito entenderam esta equação: dificuldade de renovação de quadros administrativos de qualidade, ações com a visão de futuro e ousadia que os evidentes problemas demandam e, sobretudo, demanda concentrada da sociedade para dirigir as decisões políticas no sentido desejado.
“A cultura é, cada vez mais, geradora de oportunidades empresariais, de emprego e renda, qualificando e diferenciando as cidades que almejam assumir preponderância na rede urbana”