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Entrevista

 

 O professor fala da relação entre violência e pobreza, discute o racismo e o papel da mídia no contexto social


A violência urbana se tornou um dos principais temas da contemporaneidade. Não apenas no Brasil. Por quê? Certamente não é apenas no Brasil, mas nas Américas do Sul e Central que se concentram os níveis mais altos de homicídios do planeta. É impossível dar uma explicação que valha para todos esses países.

Entre os fatores que podem agravar a violência no século XXI estão a concentração de renda – isso vale tanto para o Brasil como para os EUA –, discriminação, racismo, mau funcionamento dos sistemas judicial, policial e penitenciário, corrupção em todos os níveis do aparelho de Estado, impunidade e crime organizado.

No Brasil todos esses fatores pesam. Mas, ao mesmo tempo, convém levar em conta que em São Paulo, por exemplo, nos últimos cinco anos, a taxa de homicídios tem caído para menos da metade da média nacional, que hoje é de aproximadamente 24 homicídios por 100 mil habitantes ao ano.



Sempre existiu a violência urbana, porém seu crescimento é brutal. Você acredita que haja um componente de formação na sociedade brasileira que acabe elevando ainda mais esse potencial?


Não é verdade que sempre existiu a violência urbana. Esse fenômeno, tal como nós conhecemos, é uma característica do século XX. Claro que aqueles fatores de ordem geral que mencionei são muito agravados no Brasil por causa da concentração de renda – por favor, não estou me referindo à pobreza: há na África países extremamente pobres com taxas de criminalidade baixas. Além disso, a discriminação racial expõe desigualmente à violência do crime os afro-descendentes em comparação aos brancos.

O número maior de vítimas de homicídio ocorre entre os pobres e afro-descendentes. Ela atua não somente expondo essas pessoas a indicadores sociais mais baixos, mas também expulsando as crianças e adolescentes da escola, obrigando suas famílias a morarem em comunidades precaríssimas. O milagre é que 98% dos habitantes das favelas e da periferia das cidades são cidadãos respeitadores das leis, apesar de diariamente espoliados.

O fato é que a violência interpessoal se agrava nesses espaços e a fragilidade dos laços de coesão na comunidade torna essas populações alvos fáceis da submissão frente ao terror disseminado pelos pés de chinelo do crime organizado que controlam o narcotráfico e de policiais corruptos.


Olhando a história brasileira, percebemos momentos de grande tensão e violência. Mas, com os anos, a violência urbana se tornou um ator que perpassa todas as classes sociais. Você acredita que isso se dê também por uma espécie de quebra de contrato social, de rompimento da sociabilidade?


É uma balela achar que a violência está democratizada. De modo algum: a violência, se considerarmos o homicídio, se abate fundamentalmente sobre as classes pobres e sobre os afro-descendentes. Desconheço, por exemplo, adolescentes de classe média abatidos sistematicamente pelas polícias militares do Rio de Janeiro e de São Paulo.

A sociabilidade está totalmente fraturada entre brancos e afro-descendentes, entre classes médias e pobres. As grandes metrópoles se configuram em guetos muitas vezes murados. Apesar de toda a ideologia da integração das raças, da democracia social, continuam a coexistir dois mundos, separados, mas interdependentes. Há um exército de serviços de reserva de empregados domésticos e, o que é pior, meninas domésticas, que vivem em estado de virtual escravidão, submetidas às famílias dia e noite.

Talvez, num dia em que as classes dominantes não puderem mais ter mão de obra doméstica, a sociedade brasileira se transforme afinal. Será uma segunda abolição da escravatura, agora doméstica.





"Não creio ser exato dizer que o Estado conduz jovens como aquele do Ônibus 174 [filme documentário de José Padilha, 2002] para a criminalidade, porque não pode ser anulada também a responsabilidade individual dele"






A violência contra os negros no Brasil é histórica. Mesmo em momentos de democracia, como nos últimos 25 anos. Como fazer para evitá-la?


Debelando o racismo estrutural a que são submetidos os afro-descendentes na sociedade brasileira. Esse racismo se alastra além das relações interpessoais e se manifesta pelos péssimos indicadores sociais a que eles são condenados.

Outro agravante é o viés racial da polícia e da justiça em relação aos afro-descendentes. Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, há mais de dez anos demonstrou que os negros recebem na justiça criminal sentenças mais pesadas para os mesmos crimes cometidos por brancos.

Progressos têm ocorrido – por exemplo, as políticas de quotas na educação superior –, mas a democracia ainda está atrasada em relação à população afro-descendente.



Os índices de violência contra a mulher, o idoso e a criança são altos no Brasil. Este é um “privilégio” brasileiro?


Não é um “privilégio” brasileiro. Em todos os países esses grupos são alvos da violência. Quanto às crianças, especialmente nas casas, no convívio com as famílias, é difícil de monitorar.

Mas esse problema estende-se ainda às escolas, instituições e asilos, ambientes de trabalho (sem falar do trabalho perigoso e forçado, em si uma violência) e à comunidade.




“Não adianta baixar a idade de responsabilidade criminal e manter 60% das crianças e adolescentes fora da escola, como ocorre em alguns países da América Central”




Muitos ligam a violência à questão econômica, numa linha direta. Alguns estudos, porém, sugerem que nem sempre uma questão é consequência da outra. Qual é a sua opinião?

Como já disse, a pobreza é um fator que agrava o risco da criminalidade. Mas evidentemente não há uma relação direta entre pobreza e criminalidade. Tende-se a confundir espaços da pobreza com espaços do crime, como, por exemplo, as favelas do Rio e a periferia de São Paulo.

O terror dos bandos armados se instala nos espaços da pobreza pela incapacidade do Estado de garantir para os pobres os direitos que as classes dominantes têm, a começar pela proteção do direito à vida. Durante muitas décadas, a polícia tem se concentrado mais na proteção da classe média do que na dos pobres e na opressão das organizações criminais.


Como consultor de organismos internacionais, qual a política mais eficaz no tratamento à violência urbana?


Não existe uma receita mágica, as políticas têm de ocorrer em diferentes níveis. Primeiramente, não há nada melhor do que o trabalho dentro das comunidades, com as associações e centros de moradores, articulando todas as expressões ali presentes da sociedade civil, desde o clube de futebol até as religiões.

Há um nível local da gestão dos recursos públicos que pode melhorar o acesso à moradia, ao saneamento básico, ao aprimoramento da rede escolar e sua integração nas comunidades. Uma esfera acima são as políticas propriamente ditas de segurança pública, como o treinamento das polícias, com clara indicação da necessidade do respeito à lei, com aprendizado da resolução pacífica de conflitos, controle do uso do armamento e relações positivas com as comunidades.

Mais acima ainda estão as políticas nacionais de segurança, construindo uma articulação e coordenação das políticas estaduais e promovendo reforma de legislação.





“(..) Não há nada melhor do que o trabalho dentro das comunidades, com as associações e centros de moradores, articulando todas as expressões ali presentes da sociedade civil, desde o clube de futebol até as religiões”





A gestão de Rudolf Giulianni como prefeito (de 1994 a 2002) de Nova York, quando ele instituiu a famosa ação de tolerância zero, foi vista como uma medida no combate à violência na cidade norte-americana. A tolerância zero de Giulianni é o caminho também no Brasil?

A tolerância zero na verdade é um slogan; nunca houve em nenhum lugar a rigor uma tolerância zero. No caso de Nova York, a taxa de homicídios não baixou simplesmente por causa da tolerância zero, mas sim graças à atuação de vários fatores, como a baixa no envolvimento de jovens no narcotráfico.



Muitos defendem que a idade para a responsabilidade criminal seja baixada para 16 anos. O que seus anos como conselheiro em organismos internacionais dizem a respeito?


Inútil, lugar de criança e adolescente é na escola. Não adianta baixar a idade de responsabilidade criminal e manter 60% das crianças e adolescentes fora da escola, como ocorre em alguns países da América Central. A institucionalização de crianças e adolescentes é um desastre e somente agrava a entrada deles no circuito do crime.

É preciso lembrar que, atrás de qualquer delito praticado por crianças e adolescentes, há sempre um adulto. E que os percentuais de crimes violentos e homicídios praticados por crianças e adolescentes são extremamente baixos.

Baixar a idade da responsabilidade penal é passar atestado de incompetência por parte de governos e adultos. Além disso, é preciso informar às populações que clamam por ela que essa mudança não vai trazer mais segurança pelo simples fato de que o grosso da criminalidade é cometido por adultos.


Acredito que você tenha visto o filme sobre o Ônibus 174, de José Padilha (2002), aquele cujo garoto que sobreviveu ao massacre da Candelária anos depois foi morto pela polícia após tentar fazer um assalto. De fato, o Estado brasileiro é um dos atores que levam a criança a esse caminho, por não oferecer mecanismos de escape?


O Estado é responsável por falhar nas obrigações da Convenção dos Direitos da Criança. Claro que as famílias são responsáveis, mas, quando o Estado não ampara as famílias, a responsabilidade ?maior é dos governos. Não creio ser exato dizer que o Estado conduz jovens como aquele do Ônibus 174 para a criminalidade, porque não pode ser anulada também a responsabilidade individual dele.

Mas, ao examinar a biografia dele, vemos que depois que ele escapou à chacina da candelária, no Rio, não teve estruturas de apoio que lhe permitissem ter uma vida decente, distante da criminalidade.


Desses filmes feitos no Brasil, e são muitos, sobre a violência, qual é o que mais bem aborda o tema?


Gostei do Tropa de Elite, principalmente pela atuação do Wagner Moura, excepcional, conseguindo concentrar todas as contradições da função policial.

A leitura das audiências do filme é a de que nele viram a celebração da violência, mas creio que isso não é responsabilidade do diretor do filme, mas daquilo que vai na cabeça da população brasileira, tomada – por justos motivos – pelo pavor do crime e pela frustração com a polícia e a justiça, celebrando, por fim, o “olho por olho”.


O Brasil a cada crime hediondo é varrido por grandes indignações e sempre se fala na necessidade da pena de morte. Sua experiência internacional indica que esse instrumento é coercitivo ou não? Vários estados americanos, nas últimas décadas, abandonaram tal tipo de pena, por exemplo.


A situação no Brasil é simples. Pela Convenção Americana [dos Direitos Humanos], países como o nosso que não tinham pena de morte quando ratificaram a convenção somente podem instituir a pena de morte se denunciarem a convenção. E o Brasil nunca vai dar esse vexame. Portanto, pode haver toda a agitação para a galera, mas a pena de morte não será instituída.

As pesquisas demonstram que o poder dissuasivo da pena de morte é nulo: muitos países que tinham pena de morte e a aboliram não experimentaram aumento da criminalidade. Além disso, nos que não tinham e instituíram esse tipo de pena, a criminalidade não diminuiu. Hoje, mesmo nos Estados Unidos, 17 estados praticam uma moratória, não executam mais prisioneiros.


E no caso da pena de prisão perpétua, figura que inexiste no Brasil? Qual é a sua opinião?


A tendência do direito penal no mundo é diminuir as penas e não aumentar. As objeções que levantei à pena de morte também prevalecem para a prisão perpétua: o efeito de dissuadir a prática do crime é nulo.


Violência no cinema, violência na televisão, violência no trânsito. Não é uma cadeia que se retroalimenta, terminando em mais violência?


A relação entre a mídia eletrônica e a violência é extremamente complexa. Milhares de pesquisas indicam que não há nenhuma relação de causalidade entre ser exposto à violência e cometer crime.

Mas há pesquisas que indicam que a exposição continuada de crianças atingidas pela violência familiar pode predispor à prática de violência, até mesmo da criminalidade. Mas, ainda assim, qualquer afirmação mecânica entre causa e efeito é furada.


No final de tarde, existem vários programas só para registrar a violência. Alguns deles com discursos de quase arrombamento da lei. Como você vê o papel da mídia televisiva dentro deste processo de violência urbana?


Não acredito em censura à violência. Na televisão, pelas razões que falei há pouco. No máximo, talvez ajudasse se houvesse grades de idade para os programas. Outra possibilidade seria um conselho que seguisse a programação e aconselhasse sobre os momentos em que as empresas de televisão estão apelando demais para a violência, uma espécie de ombudsman de cada canal, como existe na Folha de S.Paulo, no New York Times.

Os maiores perigos para a criança e o adolescente estão nas casas, nas famílias, nos bairros, enfim, na realidade concreta e não naquela virtual da televisão.


Grupos como PCC, Comando Vermelho, Falange Vermelha etc. controlam o crime organizado no Brasil. Há um filme, Quase Dois Irmãos, da Lúcia Murat (2004), que defende a ideia de que o crime organizado foi inspirado nas lutas dos grupos de esquerda contra a ditadura. Você acredita nessa filiação?


Não tenho muita competência nessa área e nem vi o filme. No final da ditadura militar de 1964, houve um momento de alguma convivência de militantes políticos e criminosos comuns nas prisões. Mas acho um exagero transformar essa convivência em politização das organizações criminosas.

O que pode ter acontecido é que algumas lideranças criminosas com maior grau de escolaridade se apropriaram de algum discurso político ou de contestação e passaram a manipulá-lo nas suas falas.





“A relação entre a mídia eletrônica e a violência é extremamente complexa. Milhares de pesquisas indicam que não há nenhuma relação de causalidade entre ser exposto à violência e cometer crime”





Baseado em sua experiência, o que você pensa das penas alternativas?

Sou totalmente entusiasta. A prisão é um desastre. Somente para casos extremamente graves a reclusão deveria ser considerada e, evidentemente, não nas formas como que ela existe, como mera vingança social. Esse processo deveria levar em conta também mais respeito aos direitos do preso, jamais renunciando à sua inserção na legalidade.

Há muitos criminosos que cometeram um homicídio e provavelmente jamais cometeriam outro se as condições de reclusão fossem mais apropriadas para a sua ressocialização.

É claro que as penas alternativas funcionam principalmente para crimes de bagatela e não violentos; seria uma piada propor penas alternativas para narcotraficantes ou chefes do crime organizado, casos a meu ver em que, para impedir sua circulação na sociedade, cabe a reclusão. A prisão deve ser administrada de forma econômica, pois manter presos em instituições é extremamente caro.


Qual é o papel das religiões no Brasil para conter a violência?


As religiões não são o elixir contra a violência. Não há nenhuma dúvida de que, na medida direta em que celebram o valor da humanidade, as religiões vão defender os direitos e até promover a civilidade, o respeito pelas mulheres, pelas crianças e contribuir para a pacificação da sociedade. Mas não há nenhum milagre a esperar das religiões. A violência é um problema social e não de falta de religiosidade ou crença no além. ::