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Cérebros: fuga e o desafio da volta
Motivação pessoal e condições de trabalho ajudam a repatriar cientistas
EVANILDO DA SILVEIRA
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Um dos problemas enfrentados pelas nações em desenvolvimento para progredir economicamente é a chamada fuga de cérebros, a saída para o exterior de mão de obra altamente qualificada, incluindo alguns dos melhores cientistas. A América Latina é campeã nesse tipo de exportação. Dados de um relatório do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (Sela), com sede em Caracas, mostram que, entre 1990 e 2007, o total de latino-americanos qualificados que abandonaram seu país subiu, em média, 155%. No caso do Brasil, a alta foi de 246%, a segunda maior, atrás apenas do México, que viu a saída de seus melhores profissionais crescer 270%. Mas nem tudo está perdido. Muitos resolvem voltar, entre os quais pesquisadores que poderiam continuar uma carreira internacional de sucesso, mas preferem retornar para casa e ajudar a desenvolver a ciência em sua própria terra.
Embora não haja dados estatísticos sobre o assunto, não é difícil encontrar quem tenha feito o caminho de volta. Uns vieram há mais tempo, outros recentemente. Hoje, estão espalhados por várias instituições, muitos em cargos de direção, alguns liderando equipes que desenvolvem projetos importantes. Há até quem tenha vindo para ajudar a criar novos centros de pesquisa. Esse é o caso do neurocientista Sidarta Ribeiro, que deixou os Estados Unidos em 2005 para ser diretor científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), do qual é cofundador.
Após concluir a graduação em ciências biológicas na Universidade de Brasília (UnB), em 1993, e o mestrado em neurobiologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1994, Ribeiro resolveu partir para os Estados Unidos em 1995, para cursar o doutorado em neurociências na Universidade Rockefeller. Concluiu o curso em 2000 e foi para a Universidade Duke fazer seu pós-doutoramento, onde ficou até 2005. “Lá fui orientado no curso pelo professor brasileiro Miguel Nicolelis, idealizador e líder do projeto do IINN-ELS” (ver palestra de Nicolelis nesta edição). Nicolelis teve, segundo ele, um papel fundamental na concretização de seu sonho de retornar ao Brasil.
A volta, diz Ribeiro, era um projeto acalentado desde o início do doutorado, com o objetivo de trabalhar para a reversão da fuga de cérebros na área de neurociências e para a transformação social – uma meta que, em sua avaliação, está sendo alcançada. “Por intermédio da associação de pesquisa de ponta com educação científica para jovens e serviços de saúde de alta qualidade, o projeto IINN-ELS vem ajudando a diminuir disparidades regionais nas áreas científica e social”, diz.
Antes de retornar, Ribeiro era um dos que engordavam o número dos profissionais qualificados latino-americanos que vivem nos países membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Segundo o relatório do Sela, esse total passou de 1,92 milhão em 1990 para 4,9 milhões em 2007 – a referida alta de 155%. No caso dos brasileiros em igual situação, houve um aumento ainda maior: de 63 mil para 218 mil, no mesmo período. De acordo com Ribeiro, a fuga de cérebros é um problema grave para qualquer nação. Daí a importância da volta dos bons cientistas, mesmo que sejam uma minoria. “Se falharmos na repatriação dessas pessoas, estaremos fadados a perder capital intelectual continuamente”, diz o professor.
Opção de carreira
Assim como ele, cada pesquisador que retorna tem seus motivos e razões pessoais e profissionais para fazê-lo. Para alguns, pode ser o desafio de fazer algo essencial, de ter a certeza de que seu trabalho aqui é importante para a instituição e para o próprio país. É o caso de José Ellis Ripper, que se formou em engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 1961 e no ano seguinte foi para os Estados Unidos fazer mestrado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). A intenção era permanecer nove meses apenas. “Fiquei quase dez anos, voltando apenas em 1971”, conta.
Antes disso, pensou em vir em 1966, quando concluiu o doutorado. Devido ao golpe militar de 1964, porém, a situação no Brasil estava complicada, e Ripper ficou em dúvida. Um convite para trabalhar por um ano no então melhor laboratório do mundo, o Bell Telephone Laboratories, definiu a situação. “Pude adiar a decisão de voltar, e esse um ano terminou virando cinco”, lembra. Apesar do emprego invejável numa instituição de ponta, Ripper chegou à conclusão de que o Bell não era o lugar onde desejaria passar o resto da vida. “O tamanho da organização fazia com que ninguém fosse realmente essencial”, explica. “Na época o laboratório provavelmente tinha cinco vezes o número de doutores do Brasil, incluindo todas as áreas.”
Ele começou então a analisar outras opções, além da de retornar. Recebeu uma excelente oferta de uma grande universidade americana, que incluía não só o cargo de professor titular como vagas para ele formar uma equipe. “Ficou claro, no entanto, que eles estavam menos interessados em minha capacidade de ensinar ou mesmo de fazer pesquisas que em meu potencial de atrair recursos governamentais”, diz. Segundo ele, isso é comum nos Estados Unidos. Apesar de ter salário melhor, um professor universitário ocupa boa parte de seu tempo fazendo propostas de financiamento de estudos, que incluem até um grande subsídio para a infraestrutura da universidade à qual está vinculado.
Isso ajudou Ripper a optar pelo caminho de volta. Na época ele fazia parte de um pequeno grupo informal de brasileiros que procuravam uma maneira de retornar e ingressar em alguma instituição em que pudessem trabalhar juntos, de modo a ter massa crítica. A chance surgiu com um convite do reitor e fundador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Zeferino Vaz, para que se tornasse professor no recém-fundado Instituto de Física. “Certamente essa opção tinha como característica ser exatamente o oposto de fazer carreira no Bell”, diz. “Haveria oportunidade de, como indivíduo, fazer diferença. Acho que todo mundo concorda que essa é uma excelente motivação profissional.”
No Brasil, entre outras coisas, Ripper ajudou a desenvolver as fibras ópticas e, mais tarde, em 1989, fundou a AsGa, uma empresa cujo nome vem de arseneto de gálio, um dos semicondutores que serviram de matéria-prima para seus primeiros produtos. O objetivo inicial era implantar no país a fabricação de componentes optoeletrônicos, que transformam sinais elétricos em luminosos, permitindo a utilização de fibras ópticas em telecomunicações. Hoje a AsGa, localizada em Paulínia, é parte integrante do polo tecnológico da região de Campinas, ocupando uma área de 5,8 mil metros quadrados.
Caminhos cruzados
O líder do grupo informal a que Ripper se referiu era o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite. As histórias dos dois se cruzam em alguns pontos. Cerqueira Leite foi para o exterior, mais precisamente para a França, em 1958, para fazer doutorado em física de sólidos pela Universidade de Paris, que concluiu em 1962. Nesse mesmo ano foi para os Estados Unidos trabalhar no Bell, o mesmo laboratório a que Ripper se integraria mais tarde. Uma das diferenças na história dos dois é que Cerqueira Leite voltou duas vezes ao Brasil, a primeira em 1965. “Passei oito ou nove meses no país e retornei aos Estados Unidos porque na época não havia aqui nenhum apoio financeiro para pesquisas”, conta.
Lá ficou mais quatro anos, até o final de 1969, quando veio definitivamente. Segundo ele, um dos fatores que pesaram em sua decisão foi o financiamento que recebeu do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para seu projeto de montar um laboratório de aplicações de lasers para estudos da matéria condensada. “A compulsão para vir, no entanto, foi muito mais complexa e envolveu certamente uma necessidade de retorno às raízes subjetiva e indefinível”, explica. “A verdade é que o fato de ter um salário muito inferior no Brasil ao que eu tinha nos Estados Unidos não teve grande peso em minha decisão.”
Segundo Ripper, dos cientistas que faziam parte do grupo liderado por Cerqueira Leite nos Estados Unidos, vários vieram para a Unicamp (alguns para o Instituto de Física e outros para a Faculdade de Engenharia ou para o Instituto de Computação). “Fizemos parte do mesmo ‘pacote’ comprado pela Unicamp”, conta. “Devido a razões pessoais, voltei cerca de um ano depois de Rogério. Viemos ambos para o Instituto de Física, que ele dirigiu de 1972 a 1975 e eu de 1975 a 1978. Com o apoio que obtivemos, mais tarde conseguimos atrair um número muito maior de pesquisadores, inclusive muitos estrangeiros.” Hoje Cerqueira Leite é presidente e Ripper membro do conselho de administração da Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), que administra o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS).
Terreno fértil
A exemplo dos dois, dinheiro também não foi a principal motivação para o retorno do biólogo Stevens Rehen, um dos pioneiros do estudo com células-tronco embrionárias no país, hoje diretor adjunto de pesquisa do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ. “A ideia de voltar foi movida pelo desafio”, diz. “Retornei porque queria dar minha contribuição ao desenvolvimento científico do Brasil, que hoje é um terreno fértil para novas linhas de pesquisa. Atualmente o governo brasileiro está criando canais de financiamento para o empreendedorismo e para o desenvolvimento da ciência.”
Rehen se graduou em ciências biológicas em 1994, na UFRJ, mesma instituição em que fez o mestrado (1996) e o doutorado (2000), na área de biofísica. Em 2000, foi para os Estados Unidos fazer o pós-doutoramento em neurociências pela Universidade da Califórnia, em San Diego, curso que terminou em 2003. Nesse mesmo ano, ingressou no Instituto de Pesquisa Scripps, para novo pós-doutorado na mesma área. Quando o concluiu, recebeu convite para continuar trabalhando na instituição. “No entanto, resolvi voltar para montar um laboratório na UFRJ, no qual pudesse estudar células-tronco embrionárias”, conta. “Hoje, temos uma equipe de 20 pessoas se especializando nessa área do conhecimento tão importante para o país.”
Além de ter retornado, esses cientistas apresentam outro ponto em comum: todos acreditam que é proveitosa para o país a passagem de alguns de seus pesquisadores pelo exterior. “Uma experiência internacional ajuda, é importante, ainda mais no Brasil, que é carente em algumas áreas”, diz Rehen. “Ir para fora é bom porque você contribui trazendo o crescimento da área que foi estudar. Para a de células-tronco, biologia celular e molecular, por exemplo, um estágio em outro país é estrategicamente interessante, pois o conhecimento está avançando muito rápido.”
Para Ribeiro, do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, a experiência no exterior é muito importante para que o pesquisador tenha horizontes amplos. “Por isso é crucial que nossos talentos tenham a oportunidade de estudar e trabalhar nos melhores centros do mundo”, explica. “A fuga de cérebros ainda ocorre no Brasil, mas o processo vem sendo revertido gradualmente. Ao melhorar o nível de sua ciência, o país vem se tornando mais atraente para cientistas de todo o mundo, e começa a suspender a drenagem de talentos. É preciso fazer um esforço para trazer bons pesquisadores para cá, independentemente de sua nacionalidade.”
Um desses casos é o do biólogo americano Charles Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), radicado na região desde 1976. Clement veio como carregador de bagagem de um grupo de cientistas – entre os quais estava seu pai, Roland Clement –, que visitou o Brasil naquele ano. O objetivo era propor ao governo um projeto de pesquisa, para tentar determinar o tamanho mínimo crítico para a conservação de ecossistemas.
O primeiro destino desse grupo foi o Inpa, cujo então diretor, Warwick Kerr, gostou da proposta e, após discussões com o CNPq, concordou em apoiá-la. Ela foi aceita e se transformou no Projeto de Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais, que existe até hoje. Trata-se de uma colaboração entre o Inpa, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e o Instituto Smithsonian, dos Estados Unidos. Segundo Clement, é uma das mais importantes parcerias do Inpa. “Na época, Kerr também me ofereceu a oportunidade de estagiar por um ano no instituto e depois me contratou”, conta.
Recursos crescentes
Quanto à importância de o país atrair bons cientistas, Clement concorda com Ribeiro. “Se considera a ciência e a tecnologia relevantes, o Brasil precisa se esforçar para trazer de volta os melhores cientistas e tecnologistas brasileiros que se encontram trabalhando no exterior, bem como convidar os melhores estrangeiros para colaborar com o país”, diz. “Durante os últimos governos, o orçamento do MCT e o número de fundações de amparo à pesquisa nos estados têm aumentado gradualmente. Ambos os fatores são importantes para viabilizar as políticas públicas, mas é preciso mais.”
Uma sugestão de Clement é a criação da carreira de Estado de cientista, a exemplo do que existe no caso dos técnicos e analistas da Receita Federal, dos agentes da Polícia Federal e de algumas outras funções do serviço público federal. “Quando o governo brasileiro decidir que ciência e tecnologia são suficientemente relevantes para o futuro do país a ponto de criar carreiras de Estado, com certeza veremos o fim das fugas e o início do retorno em massa dos melhores pesquisadores brasileiros atualmente no exterior”, diz ele.
O governo também acha importante enviar cientistas para estudar em outros países. Tanto que, segundo os últimos dados disponíveis, de 1982 a 1998, o CNPq concedeu 27.726 bolsas no exterior. Atualmente, são 431 bolsistas, em um dos quatro tipos de programa oferecidos: doutorado pleno e doutorado sanduíche (ambos com o recebimento mensal de US$ 1,1 mil), pós-doutorado (US$ 1,8 mil) e estágio sênior (US$ 2,1 mil). Como contrapartida, o cientista deve cumprir o compromisso de realizar os estudos propostos, retornar ao país e aqui permanecer no mínimo pelo mesmo período que ficou fora.
O número dessas bolsas já foi bem maior, principalmente na década de 1980, quando havia mais de 6 mil bolsistas estudando em outros países. Nessa época, o Brasil não contava com uma pós-graduação consolidada, e as bolsas de formação no exterior foram fundamentais para a criação de uma “massa crítica”, que permitiu a estruturação dos cursos de doutorado. Atualmente, esse investimento é mais seletivo e busca atender áreas ainda carentes ou estratégicas, em que a colaboração com pesquisadores estrangeiros possa significar aceleração do desenvolvimento científico e tecnológico do país.
Essa contribuição já vem sendo dada pelos cientistas brasileiros repatriados. Satisfeitos, eles não se arrependem de ter voltado. Entre outras razões de contentamento está a sensação de que seu trabalho no país é mais útil do que teria sido no exterior. Para Rehen, por exemplo, retornar valeu muito a pena. “Apesar dos problemas, como a burocracia para importar material de pesquisa, estou mais feliz aqui”, garante. “É um privilégio participar de algo que vai ajudar o Brasil, como a formação de gente em uma área estratégica como a biologia molecular.”
Ribeiro também tem certeza de que fez a opção certa, mesmo que tenha perdido em alguns aspectos, como a diminuição do número de artigos publicados. Ele, porém, está convencido de que foi por uma boa causa. “O projeto do IINN-ELS foi bem-sucedido e em poucos anos conseguimos estabelecer uma base de pesquisa sólida”, diz. “Estou satisfeito com o que ganho e disponho de um laboratório tão bem equipado como os que conheci nos Estados Unidos. Aqui conto com um grande número de alunos e de colaboradores, muito além do que teria lá.”
Apesar da desaceleração inicial de sua produção científica, Ribeiro acredita que a médio prazo chegará mais longe do que se tivesse ficado no exterior. Para ele, o desafio de criar uma estrutura nova e ousada, como é o Instituto Internacional de Neurociências de Natal, é mais estimulante. Em poucas palavras, ele resume o sentimento da maioria dos pesquisadores que voltaram: “Gosto de viver no Brasil e acredito que meu trabalho aqui pode fazer mais diferença do que em qualquer outro lugar”.