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Crédito verde: da discussão à prática
Financiamento público e privado depende cada vez mais da conduta socioambiental
CARLOS JULIANO BARROS
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Em abril deste ano, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, e o presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Fabio Barbosa, assinaram o chamado Protocolo Verde. Além de se comprometer a adotar práticas mais ecológicas em suas atividades cotidianas, reduzindo o consumo de papel e de energia, o setor financeiro privado nacional assumiu, principalmente, a responsabilidade de conceder crédito apenas a empreendimentos que contribuam para o desenvolvimento sustentável do país. Esse mesmo pacto de boas intenções já havia sido firmado, em agosto de 2008, por cinco instituições financeiras públicas durante cerimônia realizada na sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Não é de hoje que preocupações de ordem social e/ou ambiental pesam nas decisões tomadas pelas diretorias dos principais bancos do planeta. Na verdade, essa tendência vem criando corpo há quase meio século. Nos anos 1960, por exemplo, já existiam fundos de investimentos nos Estados Unidos que rechaçavam a aplicação de recursos em empresas que tivessem qualquer tipo de ligação com o apartheid da África do Sul – regime político que tornou oficial a segregação entre negros e brancos, de 1948 a 1990. Mas foi ao longo desta década que o tema da sustentabilidade ganhou fôlego redobrado no planejamento interno das instituições financeiras, e em especial na área de liberação de financiamentos. “O crédito é o coração de um banco, e é onde essa questão está sendo mais debatida”, afirma Sonia Favaretto, diretora setorial de Responsabilidade Social e Sustentabilidade da Febraban. De acordo com o último Relatório Social da entidade, que tem 2007 como ano-base, “65,4% de 26 instituições consideram aspectos socioambientais para a concessão de créditos, privilegiando projetos que promovam o desenvolvimento sustentável”.
Não resta a menor dúvida de que o aprimoramento das precauções tomadas pelos bancos brasileiros é um movimento positivo e cada vez mais sério. Tanto é que a maior parte já conta com departamentos e profissionais especializados para analisar os pedidos de financiamento a projetos que necessitem de um olhar mais atento. Porém, ainda há muito que avançar a fim de separar as instituições que estão realmente comprometidas com o desenvolvimento sustentável das que se valem do greenwashing, como é conhecida a utilização do discurso ambientalista apenas como mero apelo de marketing. “Em geral, falta transparência para podermos analisar o que elas fazem aplicando concretamente esses princípios socioambientais”, adverte Roland Widmer, coordenador do programa Ecofinanças da Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, uma das inúmeras organizações não governamentais (ONGs) que cobram maior envolvimento dos bancos com as consequências de seus negócios.
Marcos históricos
Essa reorientação administrativa não é fruto apenas do aguçamento da sensibilidade dos gestores das instituições financeiras às mazelas sociais ou às catástrofes ecológicas do planeta. Na realidade, ela foi motivada em boa medida pelas ações enérgicas que entidades de defesa dos direitos humanos e de proteção ao meio ambiente vêm realizando para pautar a agenda dos bancos. Algumas iniciativas podem até ser consideradas marcos históricos. É o caso da Declaração de Collevecchio, redigida a partir de um encontro em um vilarejo italiano, no apagar das luzes de 2002, promovido pela BankTrack – uma rede de ONGs do mundo inteiro que se dedica ao monitoramento das políticas socioambientais do setor financeiro. Poucos meses depois do evento, as propostas contidas nesse documento, endossado por duas centenas de entidades, foram apresentadas aos participantes do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Em linhas gerais, a Declaração de Collevecchio propõe que os bancos construam mecanismos que previnam o financiamento de projetos de grave impacto socioambiental e que se responsabilizem pelos eventuais danos causados pelos seus negócios. Além disso, coloca como outro princípio-chave a necessidade de conferir mais transparência à concessão de crédito, com a prestação de contas e disponibilização de informações sobre os empreendimentos financiados.
Colocado contra a parede, o setor financeiro respondeu ainda em 2003. Naquele ano, como culminância de um processo capitaneado pela Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês), braço do Banco Mundial que lida apenas com a iniciativa privada, foram lançados os famosos Princípios do Equador. Trata-se do mais importante compromisso internacional na área de sustentabilidade para o sistema financeiro, uma espécie de bíblia com recomendações e ensinamentos destinados a orientar a postura dos bancos. No início, as salvaguardas a seguir para a avaliação de pedidos de financiamento valiam para projetos acima de US$ 50 milhões. No entanto, em 2006, esse valor foi reduzido para US$ 10 milhões.
De acordo com as diretrizes dos Princípios do Equador, um empreendimento pode ser enquadrado em três níveis básicos (A, B e C), em ordem decrescente de potenciais riscos socioambientais. A análise do pedido de crédito, que deve ficar a cargo de cada instituição financeira específica, precisa levar em conta não apenas os possíveis problemas – como a devastação de biomas sensíveis, a desarticulação do modo de vida de populações tradicionais, a utilização de mão de obra infantil e de outras formas degradantes de trabalho, além do consumo excessivo de energia e de recursos hídricos –, mas também as alternativas capazes de mitigar os eventuais impactos negativos. Atualmente, quase 70 instituições financeiras do mundo inteiro são signatárias dos Princípios do Equador.
Transparência
A criação de pactos e de códigos de conduta, como o Protocolo Verde e os Princípios do Equador, faz parte de uma estratégia dos bancos batizada de “autorregulação”. Em outras palavras, são ações administrativas que complementam as normas contidas nas legislações ambiental, trabalhista e social de determinado país. Existe, porém, uma questão fundamental que ainda está longe de ser esclarecida de forma satisfatória: é possível assegurar que os compromissos firmados publicamente sejam realmente cumpridos? “Há um fosso entre o que os bancos dizem que devem fazer e aquilo que efetivamente fazem”, responde Guilherme Carvalho, coordenador nacional da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, entidade que se dedica ao acompanhamento das atividades de organismos como IFC, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Um caso bastante emblemático de financiamento desastroso ocorreu nos anos 1980, com o Programa Polonoroeste – um plano desenvolvimentista coordenado pelo governo federal na área de influência da BR-364, que liga Cuiabá (MT) a Porto Velho (RO). Os escândalos internacionais decorrentes do desmatamento, da invasão de terras indígenas e da migração desordenada provocada pela ocupação dos territórios no entorno da rodovia mancharam a imagem do Banco Mundial, que foi obrigado a suspender os repasses de recursos para o programa. Problemas desse mesmo calibre também fizeram com que, em junho de 2009, a IFC rescindisse um contrato de US$ 90 milhões firmado dois anos antes com um dos maiores frigoríficos do país para expansão de suas instalações industriais na Amazônia paraense. A medida foi tomada depois que denúncias de entidades ambientalistas e do Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) mostraram que o incremento do abate de bovinos estimulou a expansão descontrolada da pecuária, causando a devastação da floresta.
É preciso no entanto reconhecer que, no quesito transparência, os organismos multilaterais estão bem à frente das instituições financeiras públicas e privadas. Navegando pelo site da IFC, por exemplo, é possível acessar documentos com diversos dados sobre os empreendimentos financiados, e até mesmo estudos sobre os impactos socioambientais gerados por eles. Já no principal agente de fomento da economia brasileira, o BNDES, que só em 2008 desembolsou mais de R$ 90 bilhões, a divulgação de informações sobre os contratos ainda está engatinhando. Nesse caso, a prestação de contas à sociedade ganha ainda mais importância devido ao caráter público do banco. De acordo com a Constituição, 40% dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) – mantido com as contribuições do PIS/Pasep recolhidas por todos os brasileiros – são destinados a seus cofres a fim de oferecer crédito a empreendimentos agropecuários, industriais, comerciais e de infraestrutura. “Até o início do ano passado, entretanto, não havia informação alguma sobre os projetos privados financiados pelo banco, uma coisa completamente esdrúxula e anacrônica do ponto de vista da transparência”, afirma João Roberto Lopes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
Em resposta à solicitação de 25 entidades reunidas na Plataforma BNDES, uma rede criada em dezembro de 2007 para estreitar o diálogo entre o banco e a sociedade civil, a direção passou a disponibilizar em seu site as informações básicas – como nome do beneficiário e valor do crédito – sobre todas as suas operações diretas e indiretas. Esses dados são atualizados a cada três meses, mas não são armazenados. Ou seja, a cada trimestre, literalmente se perdem. “Além de a qualidade da informação ainda ser bastante insuficiente perante o que foi reivindicado, o banco não disponibiliza nada sobre a característica socioambiental dos projetos”, acrescenta Lopes. Na opinião de Mauro Almeida, um dos responsáveis pela área de sustentabilidade do BNDES, “essa abertura na internet é um processo, e não é uma coisa simples. Mesmo que quiséssemos, não teríamos condições de colocar todos os dados de todas as operações por questão de sigilo bancário”, argumenta.
Na avaliação de Roland Widmer, da Amigos da Terra, o que parece insuficiente no caso do BNDES já está à frente das medidas que os bancos privados adotam em termos de transparência. “Eles não fornecem nenhum dado sobre sua carteira de crédito, nem sobre os financiamentos de projetos aos quais os Princípios do Equador se aplicam. Sem uma prestação de contas, fica difícil para a sociedade civil acompanhar e dizer se realmente estão fazendo alguma coisa”, pondera. No entanto, segundo a diretora de Sustentabilidade da Febraban, a natureza dos negócios dos bancos comerciais impede que sejam divulgadas ao público informações sobre seus clientes. “Não dá para exigir os mesmos critérios de bancos comerciais e de organismos públicos e multilaterais. Os bancos privados, porém, publicam seus relatórios, que são auditados”, afirma Sonia Favaretto. Ela também não considera justa a pecha de falta de transparência, uma vez que as instituições financeiras cumprem integralmente as exigências dos órgãos reguladores. “Se o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional colocarem outras regras de disponibilidade de dados sobre os clientes, será possível, então, informar mais”, acrescenta.
Dinheiro público
Em 2009, os desembolsos do BNDES para oxigenar empreendimentos da iniciativa privada, além de obras das três esferas de governo, podem ultrapassar a imponente cifra de R$ 100 bilhões – valor três vezes maior que o registrado no primeiro ano da gestão Lula. Os dados não deixam dúvida quanto ao papel crucial que o BNDES desempenha hoje no fortalecimento da economia brasileira. “Ele é muito importante e estratégico no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Se pegarmos o total de que a instituição dispõe para financiamento neste ano, chega a ser dez vezes superior a todos os recursos disponibilizados pelo BID e pelo Banco Mundial juntos para o país. Por isso, precisamos ter um olhar muito crítico em relação ao BNDES”, analisa Carvalho, da Rede Brasil.
Recentemente, algumas operações contratadas pela instituição foram alvo da artilharia pesada de ONGs e do próprio poder público. Um dos exemplos mais conflituosos é o financiamento de mais de R$ 13 bilhões para a construção das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, localizadas no rio Madeira, em Rondônia. Desse total, o BNDES vai repassar quase 70% diretamente aos consórcios que venceram o edital para a realização das obras. O restante será transferido através de outros bancos – alguns deles signatários dos Princípios do Equador –, que funcionarão como mediadores para diluir os riscos do investimento. No entanto, o processo de licenciamento ambiental das obras vem sendo bastante questionado. Entre outros pontos, o MPF-RO não viu com bons olhos a mudança em mais de 9 quilômetros do local original previsto para a construção da barragem de Jirau, sem a realização de novos e amplos estudos de impacto sobre o bioma local. Além disso, até os próprios técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) redigiram relatórios internos condenando a viabilidade do complexo hidrelétrico do rio Madeira. Por outro lado, o representante do BNDES, Mauro Almeida, afirma que o empreendimento passou por cuidadosa avaliação prévia da área de sustentabilidade, que procurou o Ibama e participou de fóruns públicos para debater o projeto. “Não é apenas o BNDES que está decidindo se vai ou não ser bom para o país”, afirma.
Essa, no entanto, não foi a única vez em que ocorreram divergências entre o banco e outros órgãos do governo federal. Se, por um lado, a linha de frente do Ministério do Meio Ambiente elegeu a pecuária extensiva como principal vetor de devastação da Amazônia e apertou o cerco sobre os criadores de gado que derrubam árvores para formar pastagens, por outro, o BNDES decidiu injetar quase R$ 5 bilhões na expansão das atividades de três dos principais frigoríficos do Brasil que atuam na região norte, conquistando inclusive importante participação acionária nas corporações. “Quando o BNDES entrou no capital dessas empresas, já estabeleceu uma série de critérios. Acontece que não temos condições de abrir os contratos e mostrar o que foi colocado. Mas isso tende a tornar o setor mais profissional e mais estruturado do ponto de vista socioambiental”, argumenta Almeida. Porém, no primeiro semestre deste ano, depois da divulgação de uma pesquisa do Greenpeace que relacionou alguns desses frigoríficos a fazendas acusadas de desmatamento ilegal na Amazônia e após a ameaça do MPF-PA de acionar judicialmente os abatedouros de carne por corresponsabilidade em crimes ambientais, a política socioambiental do banco foi colocada na berlinda.
Em resposta, a direção do BNDES divulgou que, para a concessão de novos financiamentos, exigirá que até 2012 todos os bois adquiridos tenham rastreabilidade mínima de seis meses. Para 2016, será necessário que esse acompanhamento seja feito do nascimento até o abate do animal. Dessa forma, a instituição espera que apenas fazendeiros com propriedades regularizadas do ponto de vista ambiental se tornem fornecedores dos frigoríficos que obtiveram crédito. “É um processo que não dá para fazer para o ano que vem. Consideramos esse cronograma bastante rigoroso”, alega Almeida. Na avaliação de entidades ambientalistas, as novas medidas são um passo importante, porém lento demais. “Não servem nem para a floresta nem para os frigoríficos, que estão sendo pressionados a dar uma resposta agora, já que precisam tirar o desmatamento de sua cadeia produtiva o mais rápido possível, a fim de que seus clientes não cancelem os contratos. O BNDES está atrasadíssimo na discussão”, critica Marcio Astrini, do Greenpeace.
Contudo, as ligações perigosas não param por aí. Pelo menos quatro usinas de produção de açúcar e etanol, autuadas por fiscais do próprio governo federal por impor condições degradantes de trabalho a seus funcionários, receberam no total cerca de R$ 2,1 bilhões do banco para alavancar sua produção. Todas elas firmaram termos de ajustamento de conduta (TACs) com o Ministério Público do Trabalho, comprometendo-se a corrigir as irregularidades, mas nenhuma delas teve o crédito cortado. De acordo com o funcionário do BNDES, a violação de compromissos socioambientais assumidos nos contratos pode, sim, provocar o rompimento do financiamento – mas ele não se recorda de nenhum exemplo desse tipo. Fatos como esses evidenciam o principal desafio que o setor financeiro como um todo ainda precisa encarar: superar as desconfianças para que as políticas de sustentabilidade já em curso se distanciem de vez do plano do discurso.