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Ciência e mudança social
Uma experiência revolucionária no nordeste
MIGUEL NICOLELIS
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Miguel Nicolelis cursou medicina na Universidade de São Paulo (USP), onde fez
doutorado. Em 1989 iniciou curso de pós-doutorado na Hahnemann University, na
Filadélfia, e a partir de 1994 tornou-se professor de neurobiologia da Duke
University, na Carolina do Norte, onde chefia um grupo de 30 pesquisadores em
laboratórios que estudam os mecanismos neurofisiológicos da doença de Parkinson
e novas terapias para esse mal.
É também professor do Instituto do Cérebro da École Polytechnique Fédérale de
Lausanne, na Suíça, e coordenador do Instituto Internacional de Neurociências de
Natal Edmond e Lily Safra, no Brasil.
Nicolelis escreveu cinco livros e publicou 138 artigos, dos quais oito nas
revistas “Science” e “Nature”. Foi apontado pela revista “Scientific American”
como um dos 20 maiores cientistas da atualidade.
Entre os 34 prêmios internacionais que recebeu destacam-se o Anne W. Deane de
Neurociência, da Duke University, o Santiago Ramón y Cajal, da Universidade
Nacional do México, o Santiago Grisolía, da Universidade de Valência, e o Blaise
Pascal, da Escola Normal Superior de Paris. Foi quatro vezes agraciado com o
Prêmio Grass Lecture, da Sociedade Americana de Neurociência.
Esta palestra de Miguel Nicolelis, com o tema “A ciência como agente de
transformação social”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e
Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 13 de
agosto de 2009.
Entre as gerações mais antigas, da minha para trás, a ciência sempre foi considerada algo que deveria ser mantido restrito em algum lugar chamado universidade, que é a herdeira dos grandes mosteiros medievais. Era o único lugar onde se poderia adquirir certo tipo de conhecimento e receber uma chancela, um quase certificado de que podemos exercer determinada atividade. O que temos tentado trazer para o Brasil é a ideia de que o tempo mudou, o conhecimento está aberto e a equação deve ser revertida, isto é, o mosteiro tem de ir à sociedade. Ele precisa abrir as portas e se imiscuir com o dia a dia da comunidade, particularmente num país como o nosso, porque nossa grande chance de alcançar o desenvolvimento econômico definitivo não é fabricando papel, é produzindo conhecimento. Temos não só competência humana como os recursos naturais necessários para transformar o Brasil no país da ciência do século 21. É uma opção nossa.
A ciência está em tudo o que fazemos e o método científico é algo muito intuitivo, que aplicamos continuamente na vida. Na realidade, isso não é uma descoberta nova. Se analisarmos dados que são públicos, veremos que as sociedades que investiram decisivamente na capacidade humana de inovação tecnológica e científica geraram consideráveis níveis de riqueza, não só para o país como para sua população. Evidentemente, há exemplos de nações sem recursos naturais ou com recursos humanos limitados, como Suíça, Finlândia, Bélgica, Noruega, Islândia e Cingapura, que souberam galgar a reta da inovação. Como é hábito entre nós, nunca tivemos um projeto de nação, mas projetos de poder, e nossa posição nessa reta é comparável à de países como Lituânia, Ucrânia, Estônia, Eslováquia e outros.
Quando se analisa nossa situação científica, constatam-se, como sempre, más e boas notícias. A má notícia é a posição brasileira atual, a boa é que o processo de galgar a reta de inovação é conhecido, porque várias nações do mundo o realizaram. E a grande novidade é que o Brasil começa a se mover e a ser mais rápido, como jamais foi. Temos exemplos muito recentes no mundo, como o da Coreia do Sul, que começou há menos de cem anos, junto com Guatemala, Vietnã, Nicarágua e Honduras, e atingiu posição de grande destaque. Na realidade, por incrível que pareça, o Brasil tem exemplos de como alcançar o caminho da inovação. O maior deles, emblemático em diferentes dimensões, é o de Santos Dumont, que jamais cursou uma escola formal, nunca recebeu diploma ou título de doutor, nunca disputou uma banca, e foi evidentemente educado. Jamais teve de ir ao mosteiro, na realidade o mosteiro foi até ele. Ele foi o maior expoente que a ciência brasileira conseguiu atingir, e inovou em múltiplas dimensões. A controvérsia em relação aos irmãos Wright, dos Estados Unidos, sobre quem inventou o avião, é absolutamente secundária, porque Santos Dumont criou algo muito mais relevante, a tecnologia necessária para controlar um dirigível. Essa foi a descoberta fundamental, e o avião resultou da ciência aplicada a partir disso. Ele criou por conta própria, sem apoio de ninguém, utilizando sua fortuna para ganhar o Prêmio Deutsch, o primeiro da aeronáutica no mundo, em 1901, e esse continua sendo o maior prêmio da ciência brasileira.
Graças a esse conhecimento, algumas gerações depois a Embraer se tornou a terceira maior empresa da aeronáutica mundial. Viajo frequentemente da Carolina do Norte para outros estados americanos em aviões da Embraer e meu hobby favorito é esperar que o americano a meu lado pergunte: “Mas quem fez este avião?” Aí tenho todo o voo para contar onde começou essa dinastia de competência tecnológica. Ela se iniciou com um sonhador, o indivíduo que matou a cobra e mostrou o instrumento para 1 milhão de franceses verificarem que a ciência básica tem aplicação real.
A cidade da ciência
A ideia é transformar esse exemplo emblemático da história da ciência brasileira em um modelo que possa ser levado a lugares do Brasil onde a ciência jamais foi considerada como a próxima grande coisa que vai modificar a economia ou a sociedade. Foi assim que surgiu a Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa. Com sede em São Paulo, ela foi criada por cientistas brasileiros que viviam fora do Brasil, que passaram anos viajando pelo mundo e aprendendo outras formas de fazer e pensar em ciência. Essas pessoas queriam retornar ao país para retribuir o que receberam, que foi a grande oportunidade de sair pelo mundo conhecendo o que ele tem a oferecer para nós aqui. Desse esforço, que transformou a entidade provavelmente numa das três maiores agências de fomento à pesquisa científica privadas do Brasil, surgiu a ideia do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, que anos depois, dada a generosidade da família de Edmond e Lily Safra, foi rebatizado como Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra. Esse instituto tem um business plan completamente diferente de qualquer coisa associada à produção científica que conhecemos no Brasil. Aliás, não existe nada igual a ele no mundo – prova disso é que estamos sendo convidados a levar o projeto para outros países da América Latina, Ásia e África. Daqui a alguns anos, espero um dia poder afirmar categoricamente que Natal se transformou na primeira cidade da ciência brasileira, porque esse é o objetivo: construir uma cidade dedicada à produção científica e tecnológica e mudar completamente o perfil social e econômico do estado do Rio Grande do Norte. Parece loucura, mas foi exatamente o que disseram a Santos Dumont – que voar era impossível.
Como se faz uma transformação dessa magnitude? Como tudo, ela começa com um voo solitário, que transforme a realidade de um lugar e que permita que as pessoas acreditem que é possível fazer isso.
Acabamos de acertar um acordo com o governo da Bahia e estamos a ponto de fechar outro com Santa Catarina. Em Natal criamos, no coração do projeto, um instituto de neurociências que hoje está trazendo de volta, com o apoio do MEC [Ministério da Educação] e com doações de todo o país, pesquisadores brasileiros dessa área que estavam espalhados pelo mundo todo. Temos uma série de projetos sociais em volta, que incluem, por exemplo, o primeiro e único projeto educacional que conheço em que o aluno entra na escola antes de nascer, na barriga da mãe, que é acompanhada no pré-natal para que a criança nasça com seu potencial cerebral intacto. Ela frequenta a Clínica da Mulher e ao longo da gestação é preparada para cuidar da criança para que possa posteriormente expressar seu potencial no Campus do Cérebro, uma escola pública de tempo integral para 5 mil crianças, desde o nascimento, ou antes mesmo, até o final do ensino médio.
Riqueza da sobrevivência
Um problema no Brasil é que pensamos em fazer coisas, mas nunca em como pagar por elas – em outras palavras, de onde virá o dinheiro? É por isso que a terceira parte desse projeto envolve a construção de uma verdadeira cidade da ciência, um dos maiores parques de biotecnologia e neurotecnologia, a ser instalado na periferia de Natal, em torno do futuro Aeroporto Internacional de São Gonçalo do Amarante. Será feita a junção entre conhecimento de ponta, ciência aplicada e a comercialização dessas tecnologias para que haja recursos, seja gerada a riqueza necessária para alimentar todo o circuito.
Começamos em Macaíba, cidade a 14 quilômetros de Natal, com os piores índices de desenvolvimento humano do estado do Rio Grande do Norte, na divisa entre a mata atlântica e o semiárido, que é rico. Para quem vive no sul do país, o semiárido ou a caatinga é um deserto. Na realidade, a caatinga é o único ecossistema verdadeiramente brasileiro, existe somente aqui e tem a riqueza da sobrevivência. Os maiores exemplos de sobrevivência biológica vivem naquele ambiente, que é uma mina de ouro para a biotecnologia deste século, quando se fala em combustíveis renováveis, novos compostos orgânicos, novas moléculas e provavelmente novas terapias. Lá se encontram plantas que não se infectam com nada, resistem a sete meses de completa falta de água e geram compostos que ainda não estudamos. Nunca observamos em detalhes como ocorre essa sobrevivência.
Começamos a implantar lentamente o projeto em um terreno de 100 hectares, doado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O primeiro prédio foi o laboratório do Instituto de Neurociências de Natal, e agora estamos erguendo uma construção de 10 mil metros quadrados. Devo dizer que não é um projeto financiado pelo poder público. Saímos pelo mundo afora, e hoje 72% da receita da associação vem de doações privadas, de projetos de pesquisa internacional, de fundações e indivíduos. Somos uma Oscip [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público] sem fins lucrativos e apenas 28% de nossa receita vem de parcerias com os governos municipal, estadual ou federal.
Isso prova que é possível fazer ciência como um negócio social, gerar um empreendimento científico que tenha como objetivo a transformação social e econômica sem depender necessária e exclusivamente do poder público. Um de nossos laboratórios é o único do Brasil capaz de manipular espécies transgênicas de camundongos que sofrem de problemas neurológicos como os dos humanos – Parkinson, Alzheimer, uma série de doenças. Não existe nada igual nem na USP [Universidade de São Paulo] ou na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], só em Natal. Criamos uma estrutura única de biotérios de animais, inclusive camundongos transgênicos, temos capacidade de estocar 10 mil deles. Temos centros cirúrgicos veterinários para pesquisa, laboratórios de eletrofisiologia, de comportamento e de microscopia, enfim, toda a infraestrutura necessária para criar um dos maiores núcleos de neurociências do mundo. Nossa ambição não é competir com outros laboratórios do país, mas criar um MIT brasileiro e competir com os maiores centros do mundo.
Neurociências
Criamos a primeira escola de altos estudos de neurociências da América Latina, financiada pelo Ministério da Educação. Trouxemos 35 dos maiores neurocientistas do mundo para passar dois meses em Macaíba, pagos pelo governo brasileiro e pelas doações. Eram 50 alunos presentes no Auditório Santos Dumont, e todos os alunos de pós-graduação em neurociências do país, por videoconferência. É possível, portanto, numa geração, colocar nossas crianças em contato com os maiores cientistas do mundo.
A ciência já começou a permear a vida das pessoas, principalmente crianças e mães da periferia de Natal. Temos três projetos em andamento, incluindo duas unidades da Escola Alfredo Monteverde, onde desenvolvemos para mil crianças um projeto de educação científica infanto-juvenil, e a primeira demonstração categórica de uma escola pública em tempo integral. Macaíba, pelos índices do MEC, até 2006 era o pior distrito escolar do país. Eram crianças consideradas irremediáveis, segundo o sistema de educação nacional, classificadas como os untouchables da Índia, sem nenhuma chance de se transformar em membros da sociedade. Construímos nas proximidades a Clínica Anita Garibaldi, para cuidar das mães dessas crianças. Ela foi levantada com recursos de um convênio com o Ministério da Saúde e nenhum procedimento é cobrado, graças à generosidade da Sociedade Benemérita do Hospital Sírio-Libanês. Oferecemos os melhores serviços de pré-natal que existem no país, os mais modernos equipamentos.
Estamos criando um centro de imagem, com aparelhos de ressonância nuclear magnética para o futuro Hospital do Cérebro, e neste momento arrecadamos fundos para construir uma maternidade. Queremos trazer as mulheres grávidas para dar à luz dentro do campus. A primeira fotografia do aluno de nossa escola será a do ultrassom. Será o primeiro registro dessa criança na escola.
Uma de nossas alunas que teve a oportunidade de se encontrar com o presidente da República para contar sua experiência disse que não é uma escola, é o maior parque de diversões que já encontrou na vida. É isso o que uma escola deveria ser, um grande parque de diversões onde as crianças sentissem o desejo de brincar e aprender. E isso fazemos de maneira absolutamente rigorosa. Usamos métodos científicos como fulcro para o projeto pedagógico. Não oferecemos aulas teóricas, é puramente experimental. A criança assiste às aulas da escola pública de manhã ou de tarde e no outro período vem para nossa escola, onde tem acesso aos melhores laboratórios de ensino de ciências para crianças já construídos no Brasil, com centros de informática, genética, robótica, física, química etc.
Feita a infraestrutura, recrutamos professores de ciências e os treinamos com um método desenvolvido por mestres de São Paulo que se mudaram para o nordeste, coordenados pela professora Dora Montenegro, que aos 68 anos deixou tudo para trás, mudou-se para Natal e criou um projeto em que o aluno é o agente de seu próprio ensino. Ele realiza um currículo de três anos de experimentos científicos que lhe permitem desenvolver um método de aprendizado e não simplesmente de assimilação de dados e fatos. Desenvolve o algoritmo para relacionar ou criar dependências causais, aprende relações físicas, adquire a noção de escala, métrica, de geometria, toda aquela matemática que sofremos para absorver com professores que usavam uma linguagem ininteligível. Aprende a geometria da vida olhando as formas geométricas, derivando delas a teoria de Pitágoras, as leis de Kepler. Aprende geometria e física estudando as órbitas das luas de Júpiter, graças aos dois maiores telescópios que existem no nordeste. Essas crianças, antes incorrigíveis, foram as primeiras do estado do Rio Grande do Norte a participar da Gincana Nacional de Robótica.
No laboratório de física decidiram criar uma rádio, que vai se transformar numa emissora comunitária, batizada Rádio Big Bang, “transmitindo em ondas curtas, médias e longas para todo o universo que está ouvindo por aí”, como dizem na abertura da programação. O mais emocionante nesse projeto é ver a transformação dessas crianças. Elas se tornaram os instrutores dos próprios pais, gente que nunca viu um telescópio, um microscópio, nunca soube o que é o DNA, Big Bang etc. Já são agentes de transformação social. Não permitimos que esqueçam de onde vêm, suas raízes, sua cultura. É importantíssimo que saibam que descendem dos potiguares, os únicos tupis-guaranis que resistiram verdadeiramente à colonização portuguesa.
Cidade tecnológica
Neste momento estamos desenvolvendo a fase 2 do projeto do Campus do Cérebro. Com o apoio do Ministério da Educação e novamente doações privadas, estamos construindo o grande prédio do Instituto do Cérebro, onde teremos 35 laboratórios e abrigaremos 25 professores em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Criamos o primeiro Departamento de Neurociências do nordeste e estamos trazendo de volta todos esses pesquisadores que estavam perdidos pela Europa, Estados Unidos e Japão. Estamos construindo também a Escola Lygia Maria e Vicente Laporta, o Hospital da Mulher, uma praça esportiva e vamos começar a primeira etapa da Cidade Tecnológica, nosso parque biotecnológico, em parceria com o governo do estado e com parceiros do mundo inteiro, inclusive do Research Triangle Park, da Carolina do Norte.
Extraoficialmente posso informar que vamos receber em Macaíba o maior supercomputador do hemisfério sul, é uma das 50 maiores máquinas de computação do planeta. Será capaz de fazer todos os cálculos do pré-sal brasileiro, todas as equações de Bernoille. Poderá operar a 450 teraflops, 50 milhões de vezes mais rápido que um notebook. Será o único computador do mundo capaz de fazer análise de ressonância nuclear magnética em tempo real. Vamos também construir, está pendente de aprovação, o primeiro observatório astronômico e planetário infanto-juvenil do país. E ao lado o Instituto de Estudos Avançados do Brasil, nos moldes do Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Além disso, estamos conversando com potenciais investidores para construir a primeira grande planta de energia renovável do semiárido brasileiro.
Somos uma nação cujos maiores voos foram realizados fora. Os grandes momentos da ciência brasileira tiveram de ser realizados no exterior, como aconteceu com Santos Dumont. Ele não tinha alternativa. O que queremos é que os futuros Santos Dumont trabalhem aqui, porque só assim poderemos dizer que temos uma verdadeira nação. É isso o que a ciência pode fazer pelo Brasil: oferecer o instrumento e o método para que cada um desses meninos realize seu próprio voo.
Debate
ARNALDO NISKIER – Como poderemos ser uma potência científica com uma educação de segunda classe? Todos sabemos que a qualidade de nossa educação é muito ruim. Gostaria de ouvir um pouco mais sobre essa compatibilização entre o sonho de fazer o MIT brasileiro e a triste qualidade educacional do país, com professores mal pagos, desestimulados e mal formados. E pergunto também se há alguma preocupação com relação aos pais, já que as mães recebem tratamento pré-natal etc. Como ficam os homens? Ficam sem nenhum compromisso?
MIGUEL NICOLELIS – Penso que a universidade vai mudar demais nos próximos
anos. Isso vem sendo discutido no mundo todo e talvez o Brasil tenha até a
chance de ser pioneiro nisso, já que temos um pouco mais de jogo de cintura para
fazer certas revoluções, como provamos com as urnas digitais e outras coisas. A
universidade como a conhecemos morreu, é uma instituição de 500 anos atrás, com
uma visão de mundo e de elitização que faleceu. Ela precisa ser reinventada.
Acredito que a informática é uma das últimas demonstrações de que há outras
formas de adquirir conhecimento, tanto é que os jovens americanos hoje, de
acordo com uma pesquisa, estão começando a desistir da universidade, querem
fazer outras coisas, desenvolver seu próprio negócio ou adquirir conhecimento
por outras formas.
A escola é um problema fundamental. Já assinamos um protocolo de intenções com o
governo brasileiro para levar o currículo de educação científica que
desenvolvemos a 1 milhão de crianças no país, a todos os institutos de
tecnologia recém-criados com o plano de desenvolvimento educacional. Esse
projeto se baseia no redimensionamento da formação dos professores. Eles não só
recebem o melhor salário do estado do Rio Grande do Norte e do nordeste, como
são reconhecidos, têm uma formação contínua e participam de treinamento em
laboratórios da universidade. Acredito que a escola brasileira tem de mudar, ser
reformulada. Nós fizemos isso numa pequena escala.
Em relação aos pais, temos um curso para as mães na clínica e para eles já
estamos gerando empregos, uma atividade econômica. Será inaugurado no ano que
vem um curso para adultos, incluindo desde educação básica e alfabetização até
cursos profissionalizantes, não só para os pais como para os primos, tios, para
toda a comunidade do entorno.
As crianças são alimentadas na escola, com a ajuda de um parceiro privado, o
Serviço Social da Indústria (Sesi), ligado à Federação das Indústrias do Estado
do Rio Grande do Norte, que fornece alimentação de qualidade. Nós vivemos de
doações, precisamos de parceiros privados para sobreviver. A ideia, portanto, é
escalonar o projeto para o país inteiro. Vai levar um tempinho, mas penso que em
uma geração, se existir um projeto de nação que vá além das ambições de poder no
Brasil, vamos conseguir.
JOSUÉ MUSSALÉM – Natal é uma cidade com pioneirismos interessantes. Durante a
2ª Guerra foi sede de uma gigantesca base americana, considerada a maior fora do
território americano, e foi lá que nasceu a Força Expedicionária Brasileira (FEB).
A base era tão grande que tinha, naquela época (1942), 600 decolagens por dia. O
Aeroporto Internacional do Recife, o quarto do Brasil, tem hoje 175. Mas o
pioneirismo do nordeste também se revela em Pernambuco, com o Porto Digital do
Recife, considerado pela consultoria A. T. Kearney o maior centro de geração de
software do Brasil, superando o de São José dos Campos.
Arnaldo Niskier levantou a questão da qualidade da educação. Temos uma educação
de quantidade, com muitos alunos na escola, mas a qualidade deixa a desejar.
Como chegar ao ponto científico mais avançado? O primeiro passo é criar centros
de excelência, como esse de Natal. Mas é preciso também mudar a mentalidade do
empresariado. Nos Estados Unidos, a iniciativa privada é pioneiríssima, é ela
que investe em pesquisa e desenvolvimento, ciência e tecnologia. Há 18 anos, a
IBM aplicou, em 12 meses, US$ 6 bilhões somente em pesquisa básica, aquela que
não se sabe onde vai dar, e US$ 5,4 bilhões em pesquisa aplicada, dirigida ao
produto.
NEY FIGUEIREDO – Quando o instituto foi pensado, fui procurado em Natal, onde era consultor político, por um jovem chamado Luís Baccarat, que pediu meu apoio para sensibilizar as autoridades do estado em favor do projeto. Não tive a mínima receptividade. Disse até a Baccarat que o negócio estava fadado ao insucesso.
NICOLELIS – A classe política ainda não percebeu que, apesar dos políticos, estamos construindo um país.
NEY FIGUEIREDO – Exato. Voltei a Natal há pouco tempo para uma palestra e
ninguém da elite potiguar me falou sobre o projeto. Fiquei sabendo dele por uma
entrevista que o senhor deu à “Folha de S. Paulo” e nesta palestra. Gostaria de
perguntar: por que Natal?
Outro ponto: ouvi muitas palestras sobre Santos Dumont, deve haver milhares de
livros a respeito dele, programas de rádio e TV, mas o senhor coloca nosso maior
inventor num patamar interessante, que não tinha percebido ainda. É que ele foi
importante não por ter voado, mas porque possibilitou que o avião voasse.
NICOLELIS – Natal foi escolhida para demonstrar a tese de que é possível
descentralizar a produção científica de ponta, concentrada no sudeste do Brasil,
que responde por 80% dessa atividade. Para provar que onde existe um ser humano
pensante há potencial para produzir ciência de alto nível. O Brasil desperdiça o
talento de dezenas de milhões de pessoas que poderiam fazer parte da produção de
conhecimento.
Quanto ao apoio político, no mundo inteiro está surgindo um movimento, vindo de
baixo, que demonstra que não há necessidade de intermediários. A democracia como
a conhecemos, representativa, também vai mudar com a ciência e a tecnologia,
porque existe um descontentamento mundial com quem está no meio do caminho,
tanto em relação à imprensa quanto aos dirigentes políticos. Existe a noção de
que, para seguir adiante, um projeto de nação tem de vir de baixo para cima, sem
intermediários. Isso está acontecendo aqui, pois nunca tivemos apoio político em
Natal. Tivemos pequenas demonstrações de apoio da governadora, mas coisas muito
tênues para um projeto dessa dimensão.
Já arrecadamos mais de R$ 100 milhões em investimento para infraestrutura, e
continuamos arrecadando, dependemos disso, sem nenhum apoio político.
MÁRIO CHAMIE – O que me interessou em sua exposição foi o arcabouço
conceitual. Isso me fez lembrar que não é a quantidade que determina a qualidade
de uma mensagem, às vezes um repertório mínimo tem um poder fecundo que o
canônico e consagrado das universidades pode não ter. Esse conceito é que nos
faz pensar que o Brasil pode ser possível a partir da carência, a partir de uma
aparente insuficiência.
Vou relatar uma pequena emoção. Em 1992, fui convidado a participar da Feira do
Livro em Frankfurt. Lá resolvi visitar uma sala reservada aos gênios da
humanidade em termos de literatura. Entrei cabisbaixo, certo de que não
encontraria nada que pudesse me remeter ao Brasil. A galeria apresentava Homero,
Dante, Shakespeare, Kafka, Proust e, de repente, me deparei com o retratinho de
Machado de Assis. Machado, autodidata, pobre, epilético, mestiço, enfim, com
todas as características para não ter sucesso. No entanto, é o escritor que mais
deu certo em língua portuguesa. Isso mostra que a utopia só é ruim quando não se
realiza.
JULIAN CHACEL – A exposição de seu projeto inevitavelmente faz pensar numa
das maiores figuras do século 20 no domínio do pensamento econômico, Joseph
Schumpeter, que considero maior que o próprio Keynes. Ciência pura obviamente
gera inovação. Imagino que haja dois modos de adquirir conhecimento. Um deles se
dá na universidade, pela sede de saber, sem que haja necessariamente um conteúdo
finalista. O outro ocorre quando um grupo de formação interdisciplinar com
conhecimento científico procura resolver um problema de ordem prática, daí
surgindo a inovação. Isso me faz pensar que existem nichos de conhecimento no
Brasil, dos quais evidentemente o apresentado aqui é provavelmente um protótipo.
O que está faltando no país, por força exatamente da cegueira dos políticos, é a
criação de um sistema nacional de inovação interligado, a partir da ciência
pura.
A única dúvida que tenho a respeito do projeto, por causa da escala, é sua
difusão pelo país. Qual seria o efeito multiplicador? Seria apenas uma
ilustração ou essa experiência, que é fascinante, tem possibilidade de se
espraiar pelo Brasil?
NICOLELIS – Existe uma experiência muito conhecida, que foi o estabelecimento na Alemanha do Instituto Max Planck, que leva o nome desse grande físico alemão que posteriormente ganhou o Prêmio Nobel, foi amigo de Einstein e trouxe esse cientista de volta para Berlim. O governante alemão da época deu a Max Planck uma quantia em ouro e pediu que transformasse a Alemanha numa nação de físicos, em vez de uma nação com alguns físicos. Max Planck começou a investir no talento e criou então o que hoje é a maior sociedade científica do mundo, tendo espalhado por todo o país institutos de pesquisa em diferentes áreas. Um pesquisador desse instituto é pago pelo resto da vida para fazer ciência de ponta. É o local com maior densidade per capita de prêmios Nobel da ciência do mundo, em um século. E o ouro investido não foi muito, correspondia a 1 milhão de marcos na época, antes de a moeda alemã se desvalorizar com a 1ª Guerra Mundial. Esse exemplo não teve a difusão que queremos alcançar aqui, com a geração de agentes de transformação social e econômica, pela educação de milhões de crianças, com a mentalidade de que o método científico pode ser usado na vida. Max Planck não fez isso, mas criou a maior estrutura pública de ciência, que foi batida posteriormente apenas pelos National Institutes of Health, dos Estados Unidos, e depois pelo MRC [Medical Research Council] inglês. Aqui criamos uma estrutura horizontal, não existem caciques, mas um monte de índios.
MARISA AMATO – Você está provando que o impossível é possível, e pergunto se já se pensou em difundir esse trabalho numa espécie de franquia.
NICOLELIS – Estamos abrindo uma escola no semiárido baiano, perto de Feira de Santana, e os professores serão treinados em Natal. Estamos também instalando duas escolas em Santa Catarina, provavelmente até 2010, e as pessoas serão igualmente treinadas em Natal, onde estamos criando um centro de formação de professores de ciência.
MARISA – E vocês treinam também as pessoas para que aprendam a levantar recursos?
NICOLELIS – Não. Nossa Oscip se transformou numa entidade extremamente profissional de fund-raising, vivemos disso.
SILVANO RAIA – Notei certa consistência, em alguns comentários, em relação à dúvida de que o Brasil possa comportar projetos desse tipo. Adib Jatene e eu vivemos a era dos transplantes, que, quando começaram, eram tão fantasmagóricos quanto esse projeto. Daquela experiência gostaria de lembrar duas vivências. Primeiro, é muito importante para um cirurgião participar de um ato totalmente novo, em que cada ideia se traduz em uma perspectiva inovadora e útil. Em segundo lugar, quando começamos havia muita dúvida e consultamos um professor de ética da Faculdade de Medicina de Roma, uma autoridade internacional nesse tema. Ele dizia que tinha dúvida se um país com orçamento limitado para assistência médica deveria dirigir recursos para medicina de ponta. Houve um grande debate e ele foi o primeiro a concluir que ela era indispensável para levantar a qualidade de toda a medicina do país. E isso aconteceu. Hoje, 30 anos depois, temos 260 equipes, com o maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo.
NEY PRADO – Todos sabemos que há várias formas de conhecimento, desde o vulgar até o científico. O projeto apresentado é de certa forma o aproveitamento da cultura vulgar e, através de uma metodologia científica, o aprimoramento desse potencial para que possamos inovar e produzir conhecimentos úteis. Já se fala que estamos vivendo a era do conhecimento, e os fatores de produção clássicos perderam substância diante do novo conceito. Mas, como estudioso da política, meu receio como jurista é que precisamos da ciência para que realmente o conhecimento seja útil, produtivo e gerador daquilo que necessitamos. Ocorre, porém, que estamos vivendo no plano do direito, e ele tem grande influência nas políticas voltadas para os projetos científicos. Hoje estamos voltando ao chamado mundo dos valores e sabemos que quando se trata disso caímos no subjetivismo. O subjetivismo é a antítese da ciência, e gostaria que o Brasil seguisse o rumo da objetividade.
NICOLELIS – Um projeto educacional como o nosso, multiplicado para milhões de pessoas, vai dar a chance de discutir exatamente esses valores.
NISKIER – Desenvolve-se no Rio de Janeiro uma experiência notável, a Escola Sesc de Ensino Médio. Ela tem propósito semelhante ao de seu projeto e já está no segundo ano de funcionamento. Contará com 500 alunos, hoje são 350, recrutados no Brasil todo. Portanto, é uma escola de alcance nacional. E tem grande preocupação com a iniciação científica.
JOSEF BARAT – As pessoas têm certa dificuldade de compreender que o conhecimento avança por núcleos de excelência. Tenho uma colocação que me parece ligada a esse projeto. Toda essa geração de conhecimento científico e técnico terá repercussões econômicas na região, ou seja, há uma cadeia de conhecimento que acabará desembocando no setor produtivo. Gostaria de saber se já existem sinais de repercussão do projeto na atividade econômica.
NICOLELIS – As crianças estão terminando o ensino médio e têm a opção de ir para a universidade. O que notei claramente foi que algumas estão preferindo criar suas próprias pequenas empresas para gerar produtos, como programação de videogames. Estamos formando um núcleo de inventores, futuros empreendedores. E as famílias poderão se beneficiar dos empregos gerados. Nossa intenção é levar uma grande escola de engenharia para o Campus do Cérebro. Estamos contatando o ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] para isso. A Embraer veio do ITA, graças à massa crítica de engenheiros que estava sendo produzida. Acredito, portanto, que as sementes que estão sendo plantadas transformarão a região em uma grande produtora de projetos. Temos uma vantagem logística muito estratégica, que será o maior aeroporto de carga da América Latina, com as menores distâncias do continente sul-americano em relação a Europa, Estados Unidos e África. E vamos ter uma zona de processamento de exportação em seu entorno.
BARAT – Pergunto se os políticos não atrapalham. Isso porque a estrutura política do nordeste se baseia numa realidade econômica que dominam e, se essa base se transforma, naturalmente as elites políticas começam a decair.
NICOLELIS – Nosso projeto é totalmente suprapartidário, não tem nenhuma conotação política.
BARAT – Eles não interferem?
NICOLELIS – Não. E nunca ajudaram, ao contrário do governo da Carolina do Norte. Quando houve a decisão de construir lá o parque tecnológico, hoje o segundo maior do mundo, o governo do estado criou todas as condições necessárias. Não houve nenhuma oposição. Mas concordo que a potencialização dessas crianças como cidadãos tende a quebrar o domínio das oligarquias.
JANICE THEODORO – Acredito na hipótese conceitual de que estamos partindo
para uma sociedade do conhecimento e que a crise educacional é uma expressão
dessa passagem de um modelo para outro. Temos já vários indicadores de que
haverá uma melhoria da qualidade de ensino. O projeto apresentado é condizente
com as transformações históricas e políticas que estão em pauta na atualidade. O
que acho inovador nele é a relação entre produção de conhecimento e educação. Já
existiram projetos no Brasil em que se educou para o conhecimento, mas não
tinham nexo. Tivemos grandes centros de pesquisa em universidades e projetos
educacionais que trabalharam com tecnologia, mas nunca unimos as duas pontas, o
que é feito em seu projeto.
Quando se junta produção de conhecimento com educação para o conhecimento, o
centro de pesquisa passa a produzir tecnologia de ponta, que por sua vez gera
riqueza, desde que se detenha a devida patente. Isso nos lembra que precisamos
discutir, de maneira bastante madura, a lei de patentes. Pergunto: o que fazer
para amadurecer essa discussão e definir a propriedade intelectual? Acredito que
somente após resolver essa questão vamos ter condições de fazer um projeto
vencedor.
NICOLELIS – A lei de patentes brasileira demonstra que a ciência e a tecnologia hoje são uma questão de soberania nacional. Na sociedade futura, deste século e dos próximos, vamos ter consumidores e produtores de conhecimento. Essa é a nova divisão, não entre amigos e inimigos, mas entre quem produz o que é vital para a sobrevivência da espécie e quem consome. O que produz vai cobrar muito caro pelo que oferece – energia, remédios, comida, tudo o que é necessário para que bilhões de seres humanos sobrevivam. O Brasil tem uma opção muito clara: ou decide ser um produtor ou prefere pagar o ônus de ser apenas um consumidor de conhecimento. Já temos a estrutura mínima necessária para dar esse salto e nos transformar em um definitivo produtor de conhecimento em múltiplas áreas. Se perdermos esse bonde, não há como voltar, ele é definitivo.
EDUARDO SILVA – Como engenheiro, tenho observado que alguns funcionários, alguns operários bem simples, têm domínio da tecnologia em sua área. Isso mostra que ela não é privilégio de quem tem diploma mas de quem faz as coisas. Por isso penso que os laboratórios deveriam deixar de ser locais reservados, mas abertos a nossa atividade diária.
VICENTE MAROTTA RANGEL – Sua exposição me lembrou a leitura de Thomas Morus,
com sua Utopia. Mas no caso há algo concreto, extremamente promissor, e
condições humanas propícias. Quanto ao aspecto individual, temos de levar em
conta que o ministro da Educação parece ser um fator importante na concretização
desse sonho.
Tenho notado que se preocupa com os problemas do país. Há um projeto do
ministério que talvez ajude a resolver crises na universidade brasileira e na
formação de nossos jovens. Ele se baseia no Enem [Exame Nacional do Ensino
Médio] e em outras formas de acesso dos jovens ao sonho de ingressar numa
universidade. A realidade, porém, é dramática, quem convive com esses jovens
candidatos sofre com eles. As barreiras são imensas, principalmente para os que
vêm de camadas menos categorizadas da sociedade. Via de regra, as boas
universidades recebem apenas os filhos de famílias abonadas. É preciso modificar
essa estrutura, que é ruinosa para o progresso científico.
ADIB JATENE – Na palestra foi citado o apoio do Hospital Sírio-Libanês e me
ocorreu contar o que estamos fazendo aqui em termos de hospitais de excelência.
Seis deles, que trabalham na fronteira do conhecimento, conseguiram convencer o
Ministério da Saúde de que, para ser considerados altruístas, não precisam
atender doentes gratuitamente, e que poderiam participar de iniciativas
importantes que interessassem ao Ministério da Saúde. É possivelmente graças a
esse processo que Natal está obtendo recursos do Sírio-Libanês, da mesma forma
que Silvano Raia recebe apoio financeiro desse hospital para o projeto de
iniciar transplantes em 16 estados. Recentemente firmamos um acordo com o
Instituto Dante Pazzanese e com o Hospital do Coração, oferecendo R$ 3,5 milhões
para um projeto de produção do ventrículo artificial eletromecânico implantável.
Acredito, portanto, que estamos caminhando para encontrar soluções. Diante de um
problema complexo e difícil, o segredo é descobrir o jeito. As instituições não
fazem as pessoas, são estas que fazem as instituições, e é isso o que você está
fazendo em Natal.
ZEVI GHIVELDER – Quando se fala em talento brasileiro, é quase sempre de forma ufanista e em assuntos ligados ao esporte. Em relação a Santos Dumont, existe um livrinho de desenhos e memórias de Jean Cocteau. Uma das ilustrações mostra a Torre Eiffel sendo contornada por Santos Dumont em seu dirigível. O inventor está naquela barquinha debaixo do balão com uma bandeirinha na mão. Só que é a bandeira dos Estados Unidos.
LUIZ GORNSTEIN – Você não acha que a pesquisa, no caso da doença de Alzheimer e da esclerose múltipla, se fosse feita no sudeste, que tem mais capacidade gerencial e material humano, evoluiria muito mais rapidamente?
NICOLELIS – Não. A pesquisa, feita na periferia de Macaíba, foi capa da maior revista de ciência. Penso que não preciso dizer mais nada.
JOÃO TOMAS DO AMARAL – Seu projeto é extremamente estimulante, até porque a ciência e a educação tecnológica abrangem vários níveis de escolarização, do ensino fundamental aos estudos avançados. Preocupo-me no que tange ao ensino fundamental e médio. Pergunto se seu projeto vai desenvolver um programa formal em que a criança sai com seu diploma, ou se será um projeto complementar.
NICOLELIS – Ambos. Vamos continuar com o projeto complementar e, ao término da construção da unidade para 5 mil crianças no Campus do Cérebro, instalar uma escola regular em tempo integral, desde o início da vida até o final do ensino médio. Isso graças ao apoio do ministro da Educação, que incluiu essa iniciativa no projeto de desenvolvimento da educação no Brasil. Penso que é um avanço importante, e o Brasil tem de caminhar para implantar ensino público de tempo integral em todo o país, desde o maternal até a universidade. Poderemos demonstrar o impacto nos indicadores educacionais e principalmente no mais importante, que é a felicidade dessas crianças. Em reuniões de pedagogos ninguém fala nisso. A educação tem de transmitir esse sentimento, um aluno feliz é aquele que vai crescer e transformar seu professor em alguém feliz. Amor e felicidade tinham de ser as duas primeiras palavras de qualquer documento educacional, em minha opinião de cientista.
JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – O novo altar virtual que surgiu com a informática é o grande elemento da transformação que fez com que toda a nossa realidade hoje seja caracterizada não pela mudança, mas pela aceleração da mudança. Um aspecto que me preocupa um pouco é que todos os setores sociais foram reduzidos a uma unidade monetária. Tudo é dinheiro e os valores ficaram muito confusos diante desse vendaval que a informática está provocando. As ideologias estão ruindo e a própria China hoje é uma barriga de aluguel para as multinacionais, que são incubadoras dos grandes prêmios Nobel. A universidade perdeu o monopólio que tinha dos grandes pensadores, que hoje estão nos laboratórios da IBM, lá de Palo Alto, por exemplo. Outra preocupação é que o Brasil gasta recursos no processo de educação de pessoas que depois vão para o exterior. Até que ponto seremos um cérebro de aluguel para a humanidade?
NICOLELIS – Minha sensação é que, se criarmos condições para esses jovens
retornarem, se o Brasil der uma perspectiva de futuro para esses meninos e
meninas, todos voltarão, porque é muito difícil esquecer de onde se veio. Você
sai do Brasil, mas o Brasil nunca sai de você. Uma das pilastras do projeto
apresentado foi a tentativa de repatriar cientistas, não pessoas de minha idade,
mas gente mais jovem, que ainda tem a possibilidade de realizar alguma coisa
pelo Brasil.
Temos 11 mil cientistas brasileiros no exterior, gente formada nas universidades
daqui. É uma das maiores diásporas científicas do mundo, duas ou três gerações
de cientistas que saíram do país. E há exemplos como o de Ruth e Victor
Nussenzweig, que foram alunos da Faculdade de Medicina, tiveram de sair do
Brasil e aos 83 anos de idade anunciaram a intenção de voltar para a USP para
desenvolver a vacina contra a malária.
JATENE – E Luiz Hildebrando.
MIGUEL NICOLELIS – Luiz Hildebrando Pereira da Silva é outro herói, que voltou para Rondônia. Esse homem merecia uma estátua em algum lugar do Brasil, porque, depois de se aposentar no Instituto Pasteur, aos 70 e tantos anos voltou para pesquisar a vacina contra a malária, na periferia de Porto Velho. A questão é saber quando o país vai abrir a porta para todos os que gostariam de voltar.