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Ficção Inédita

O Segundo Milagre

por Fernando Pessoa Ferreira

O barro avermelhado da trilha ainda estava escorregadio sob o sol forte da manhã, e padre Cristovão descia o morro com cuidado, usando o balde de madeira vazio para melhor equilibrar o corpo. Procurava os lugares menos lamacentos para apoiar as solas de suas sandálias e observava atentamente o matagal que ladeava a estreita picada até o riacho Anhangabaú, no fundo do vale. Mais do que uma queda, ele temia as cobras peçonhentas, embora nunca tivesse avistado alguma desde que ali havia chegado, uns dois anos antes, no grupo de jesuítas do padre Manuel da Nóbrega. Aliás, não foi por acaso que haviam escolhido aquela região chuvosa e úmida para fundar o Colégio, no alto de um morro castigado pelos ventos frios da serra e rodeado de charcos infestados de mosquitos. Nóbrega achava que esse desconforto seria compensado pela ausência de animais ferozes e índios hostis. Provavelmente tinha razão, pois nem mesmo as cobras pareciam arriscar-se a residir naquelas paragens ruins onde – séculos depois – haveria de crescer o asfalto e o concreto da cidade de São Paulo.

Padre Cristovão era uma alma simples e temente. Perigos escuros e desconhecidos insistiam em espioná-lo através das moitas da pirambeira que ele era obrigado a descer e escalar várias vezes por dia, para abastecer o Colégio com a água fresca do riacho. Mas não sentiu medo algum ao avistar a Pedra reluzindo ao sol, em meio a uma larga poça: em sua modéstia, ele sempre julgara que testemunhar milagres era um privilégio de almas mais sábias e virtuosas que a sua. Por isso, sua primeira reação diante da Pedra foi de puro deslumbramento.

“Deve ser uma jóia da coroa de Nossa Senhora” –, pensava, ao se aproximar reverentemente da maravilha que resplandecia, límpida como um diamante.

Tocou a Pedra com a ponta de um dedo e recuou assustado. A superfície era gelada, queimava como gelo. Era gelo. E tinha três palmos de diâmetro. Só então, padre Cristovão notou que a poça em torno da Pedra alargava-se pouco a pouco, enquanto o gelo se derretia sob o calor do sol.

“Já deve estar aí há muito tempo. E tinha pelo menos o dobro do tamanho, antes de começar a derreter”, ele pensou. Concluiu também que, não sendo uma jóia da coroa da Virgem e sim um fato desagradavelmente frio e absurdo, aquele gelo não deveria ser considerado um milagre e, portanto, só poderia ser obra do Maldito. Após os longos segundos gastos para chegar a essa conclusão, padre Cristovão disparou ladeira acima, desatento à ameaça dos espinhos, dos escorregões e das cobras.

Nenhum de seus companheiros acreditou na história que ele contou resfolegante. E nenhum se dispôs a acompanhá-lo até a Pedra, para ajudá-lo a “esconjurar aquela coisa de Satanás”. Padre Simão, um dos mais velhos, chegou até a repreendê-lo, lembrando-o de que, uma semana antes, fora punido com uma penitência de dois dias de jejum, por ter alarmado a todos ao anunciar aos berros que acabara de ver a sombra de um arcanjo na capela do Colégio. A sombra de fato estava lá, enorme, projetada contra uma das paredes da cabana que servia de capela. Mas não era produzida por um arcanjo, e sim por um morcego morto e ressecado, que ficara preso ao teto, junto a uma fresta na palha por onde escapava uma réstia de sol.

– Você quer repetir a penitência, meu filho? – ameaçou padre Simão e nem assim conseguiu fazer com que Cristovão desistisse de insistir em sua extravagante história da Pedra. Finalmente, quando toda a Missão se convenceu de que ele jamais teria coragem de retornar sozinho ao fundo do vale, dois jesuítas se ofereceram para acompanhá-lo. A Pedra já havia desaparecido e, em seu lugar, encontraram somente uma poça barrenta que ocupava toda a largura da trilha.

Padre Cristovão foi castigado com mais dois dias de jejum e a ciência perdeu a oportunidade de registrar, no ano de 1556, a existência de um fenômeno meteorológico relativamente raro, pois só ocorre na região ocupada pela cidade de São Paulo e apenas uma vez a cada cem ou cento e poucos anos.

Na verdade, a Pedra só é um acontecimento incomum se sua periódica precipitação for medida pelos parâmetros humanos, demasiado mesquinhos se comparados com os do universo. Acredita-se que a Terra tem uns quatro bilhões de anos e, mesmo assim, é um planeta ainda jovem. Se os diversos fatores que se conjugam para formar a Pedra – algumas vezes com mais de dois metros de diâmetro e quase uma tonelada de peso – só ocorressem de mil em mil anos (e não de cem em cem), ainda assim ela poderia ser considerada um fenômeno comum em nosso mundo, pois já teria acontecido quatro milhões de vezes. Noventa e nove anos, três meses e dezenove dias depois do susto que padre Cristovão teve de pagar com dois dias de jejum, a temperatura, os ventos e as nuvens que cobrem São Paulo voltaram a compor a fórmula necessária para que, em vez de uma chuva de granizo normal, as fúrias da natureza desabassem sob a forma de uma gigantesca pedra de gelo.

Dessa vez, ela caiu no matagal que mais tarde veio a ser o bairro de Perdizes. E se derreteu anônima e tranquilamente sob as folhagens.

Cento e dezesseis anos se passaram antes que outra Pedra caísse. Era noite e ela mergulhou nas águas do Tietê, afugentando alguns peixes e flutuando depois, rio abaixo, sem ser vista por pessoa alguma. Mas, numa manhã de novembro de 1904, um menino que caçava passarinhos com seu estilingue quase morreu de susto ao ver a Pedra cair, poucos metros à sua frente, rachando com o impacto o tronco de uma árvore, exatamente onde é hoje o bairro do Brooklin Paulista. O garoto correu apavorado para casa, onde levou uns cascudos para deixar de ser mentiroso.

Neste século, a Pedra só caiu em 2023. Era a tarde de um domingo de dezembro e, embora o céu estivesse coberto de pesadas nuvens, setenta mil torcedores lotavam o novo Estádio do Corinthians, no distante bairro de Itaquera. O Corinthians e o Flamengo disputavam a final do Campeonato Brasileiro e aos corintianos bastaria um empate para serem campeões. O jogo ainda estava zero a zero e faltava menos de um minuto para terminar. A torcida do Corinthians já começava a comemorar.

– O Flamengo vai inteiro ao ataque. Bola esticada na esquerda para Janjão. Fintou o primeiro, fintou o segundo, entrou na área! Pênaltiii!!!  

Sessenta mil bocas corintianas emudeceram. Um atacante do Flamengo toma distância para bater o pênalti. Nesse exato momento os céus trovejam. E a Pedra despenca como uma flecha luminosa, esmagando o árbitro sob uma branca massa de gelo.

– Foi castigo de Deus! – berrou um locutor de rádio que torcia pelo Corinthians. De imediato, sessenta mil vozes entoaram, num coro ensurdecedor:

– Milagre! Milagre! Milagre!

Nos quatro anos seguintes o Corinthians não perdeu um só campeonato. Juiz algum se arriscava a apitar pênaltis ou outra qualquer falta grave contra o Timão. E a Pedra, um fenômeno perfeitamente natural (como os cientistas logo se apressaram a explicar), passou a ser conhecida como “O Segundo Milagre do Futebol Brasileiro”. O primeiro depois de Pelé.



Fernando Pessoa Ferreira é autor, entre outros livros, de Os Demônios não Morrem Duas Vezes (Conex, 2005)