Postado em 22/12/2008
O Segundo Milagre
por Fernando Pessoa Ferreira
O barro avermelhado da trilha ainda estava escorregadio sob o sol forte da manhã, e padre Cristovão descia o morro com cuidado, usando o balde de madeira vazio para melhor equilibrar o corpo. Procurava os lugares menos lamacentos para apoiar as solas de suas sandálias e observava atentamente o matagal que ladeava a estreita picada até o riacho Anhangabaú, no fundo do vale. Mais do que uma queda, ele temia as cobras peçonhentas, embora nunca tivesse avistado alguma desde que ali havia chegado, uns dois anos antes, no grupo de jesuítas do padre Manuel da Nóbrega. Aliás, não foi por acaso que haviam escolhido aquela região chuvosa e úmida para fundar o Colégio, no alto de um morro castigado pelos ventos frios da serra e rodeado de charcos infestados de mosquitos. Nóbrega achava que esse desconforto seria compensado pela ausência de animais ferozes e índios hostis. Provavelmente tinha razão, pois nem mesmo as cobras pareciam arriscar-se a residir naquelas paragens ruins onde – séculos depois – haveria de crescer o asfalto e o concreto da cidade de São Paulo.
Padre Cristovão era uma alma simples e temente. Perigos escuros e desconhecidos insistiam em espioná-lo através das moitas da pirambeira que ele era obrigado a descer e escalar várias vezes por dia, para abastecer o Colégio com a água fresca do riacho. Mas não sentiu medo algum ao avistar a Pedra reluzindo ao sol, em meio a uma larga poça: em sua modéstia, ele sempre julgara que testemunhar milagres era um privilégio de almas mais sábias e virtuosas que a sua. Por isso, sua primeira reação diante da Pedra foi de puro deslumbramento.
“Deve ser uma jóia da coroa de Nossa Senhora” –, pensava, ao se aproximar reverentemente da maravilha que resplandecia, límpida como um diamante.
Tocou a Pedra com a ponta de um dedo e recuou assustado. A superfície era gelada, queimava como gelo. Era gelo. E tinha três palmos de diâmetro. Só então, padre Cristovão notou que a poça em torno da Pedra alargava-se pouco a pouco, enquanto o gelo se derretia sob o calor do sol.
“Já deve estar aí há muito tempo. E tinha pelo menos o dobro do tamanho, antes de começar a derreter”, ele pensou. Concluiu também que, não sendo uma jóia da coroa da Virgem e sim um fato desagradavelmente frio e absurdo, aquele gelo não deveria ser considerado um milagre e, portanto, só poderia ser obra do Maldito. Após os longos segundos gastos para chegar a essa conclusão, padre Cristovão disparou ladeira acima, desatento à ameaça dos espinhos, dos escorregões e das cobras.
Nenhum de seus companheiros acreditou na história que ele contou resfolegante. E nenhum se dispôs a acompanhá-lo até a Pedra, para ajudá-lo a “esconjurar aquela coisa de Satanás”. Padre Simão, um dos mais velhos, chegou até a repreendê-lo, lembrando-o de que, uma semana antes, fora punido com uma penitência de dois dias de jejum, por ter alarmado a todos ao anunciar aos berros que acabara de ver a sombra de um arcanjo na capela do Colégio. A sombra de fato estava lá, enorme, projetada contra uma das paredes da cabana que servia de capela. Mas não era produzida por um arcanjo, e sim por um morcego morto e ressecado, que ficara preso ao teto, junto a uma fresta na palha por onde escapava uma réstia de sol.
– Você quer repetir a penitência, meu filho? – ameaçou padre Simão e nem assim conseguiu fazer com que Cristovão desistisse de insistir em sua extravagante história da Pedra. Finalmente, quando toda a Missão se convenceu de que ele jamais teria coragem de retornar sozinho ao fundo do vale, dois jesuítas se ofereceram para acompanhá-lo. A Pedra já havia desaparecido e, em seu lugar, encontraram somente uma poça barrenta que ocupava toda a largura da trilha.
Padre Cristovão foi castigado com mais dois dias de jejum e a ciência perdeu a oportunidade de registrar, no ano de 1556, a existência de um fenômeno meteorológico relativamente raro, pois só ocorre na região ocupada pela cidade de São Paulo e apenas uma vez a cada cem ou cento e poucos anos.
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