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Entrevista

 

Sociólogo especializado em TV analisa o veículo mais popular e influente do país
Fotos: Adriana Vichi
 

Laurindo Lalo Leal é sociólogo, jornalista e professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). Também professor do Programa de Pós-graduação em Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, o entrevistado deste mês fundou e presidiu a ONG Tver, voltada para o acompanhamento da qualidade da televisão brasileira. Lalo Leal integra a Comissão de Acompanhamento da Programação de TV da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e é membro da ONG Midiativa. Também apresentador do Ver TV, primeiro programa de análise de televisão brasileira, transmitido pela TV Câmara e pela TV Nacional de Brasília, assinou por cinco anos a coluna de televisão da revista Educação. Entre os livros que publicou estão A Melhor TV do Mundo (1997), Atrás das Câmeras – Relações entre Cultura, Estado e Televisão (1998) e A TV sob Controle (2006), todos lançados pela Editora Summus. Na conversa exclusiva que teve com a Revista E, Lalo Leal analisou os modelos de gestão das TVs abertas no Brasil, a publicidade infantil na televisão e o atual papel do rádio na era da internet. A seguir, trechos.

O índice de audiência de alguns programas, sobretudo os jornalísticos, parece ter caído bastante nos últimos tempos. Haveria crises, por exemplo, no Fantástico, no Jornal Nacional, que são programas até então com índices extraordinários de audiência. Você acha essa tendência irreversível? Isso teria a ver com a internet? 

Eu acho que, em primeiro lugar, é pela diversificação de ofertas. Está havendo uma concorrência maior na própria televisão aberta. A presença da Record é significativa, acho que ela roubou alguns pontos, o SBT se mantém mais ou menos nos mesmos 20 [pontos]. A explicação para o rebaixamento de audiência deve ser vista a partir de uma conjugação de fatores. Esse é um deles, e claro que há também o acesso a outros meios. Não é só a internet, é o DVD, isso faz com que uma camada da população tenha opções além daquelas oferecidas pela TV aberta. Mas esse ainda é um movimento que não pode ser visto como de queda significativa da importância e da presença da televisão aberta no Brasil. Ela ainda é significativamente importante aqui.

Não seria também uma exaustão dos modelos? O modelo da novela que todas as pessoas dizem se repetir, o modelo do telejornalismo. A televisão teria chegado a uma exaustão?

Não. Claro que os problemas se repetem, mas a questão não é essa. O fato é que as pessoas, a grande maioria da população brasileira, têm a televisão comercial aberta como única alternativa de lazer e de informação. Tenho observado muito, em debates, por exemplo, platéias de classe média que, quando você fala isso, se mostram algo incrédulas, porque elas, pessoalmente, no mundo individual, tem um mundo diversificado, tem muito mais alternativas de consumo cultural: vão ao cinema, assinam TV a cabo, lêem jornal. Mas isso está restrito a 30 milhões de pessoas no Brasil. Em torno de 150 milhões de pessoas giram em torno da televisão aberta, como instrumento cultural. Ela ainda não perdeu essa força para o conjunto da sociedade. É curioso, tenho exemplos até pessoais sobre como isso ocorre, as classes médias não se dão conta disso. Elas ficam incrédulas quando se fala do assunto porque não convivem com essa dificuldade de acesso ao que vai além da televisão, que aparentemente chega gratuitamente à casa de todas as pessoas. Vou dar um exemplo concreto para deixar isso claro: faço um programa chamado Ver TV, que vai ao ar na TV Câmara, e aqui em São Paulo só passa na TV Brasil, um canal da TV a cabo NET. Algumas pessoas das minhas relações até vêem, mas não tenho nenhum retorno mais amplo. Na semana passada, fui ao programa do Ronnie Von, aqui na TV Gazeta. Eu já observei diversas pessoas, que vi que são de camadas sociais que não têm acesso à TV a cabo, que vieram falar comigo. Estou dando esse exemplo, estatisticamente talvez ele não seja relevante, mas é sintomático para mostrar como essa televisão aberta está presente nessas camadas, que é a maioria da sociedade. Caiu um pouco a audiência de um ou outro programa, mas o conjunto não caiu.

O Ministério da Justiça ainda está no embate com as televisões por causa de classificação etária indicativa da programação, e elas alegam que isso é censura. Qual a sua opinião?

“A palavra ‘serviço’ é fundamental, porque o rádio, depois da televisão, tem que prestar serviço a toda a população, e para isso tem que ter uma diversidade ampla em suas ofertas”

Qualquer movimento da sociedade para estabelecer alguma regra ao uso de uma concessão pública é taxado de censura. Eu costumo dizer que nós temos uma combinação perversa, e mais recentemente, de dois elementos: o fim da ditadura que marcou muito a sociedade brasileira, o espectro da censura, que ainda está presente no nosso imaginário, é uma referência recente, e de outro lado, quase concomitantemente, a ascensão do neoliberalismo no mundo. Estou falando do início dos anos de 1990. De um lado, você tem a memória da censura, do outro, você tem a elevação do mercado, a condição que municia o cliente com competência para orientar decisões da sociedade. Essa é uma combinação perversa, porque, quando você diz que a Constituição Federal vai determinar que o Ministério da Justiça, o governo, elabore uma classificação indicativa para orientar tanto os pais quanto os produtores a colocar determinados programas em determinadas faixas de horário, para evitar que programas não indicados para determinadas faixas etárias sejam transmitidos em horários inconvenientes, essa simples recomendação já é taxada como censura. É uma jogada política para evitar o procedimento do governo, tendo como referência a lembrança da censura, à qual a grande maioria da população tem repulsa. Ao mesmo tempo, a audiência é simplesmente uma sanção do mercado, é a audiência que determina o que deve ser colocado no ar ou não, nesse horário ou não. Há outros elementos mais remotos, mas que continuam presentes. Por exemplo, o fato de que, no Brasil, a televisão chegou em 1950, de uma iniciativa puramente empresarial e mercadológica do Assis Chateaubriand, conduzindo o processo de implantação da TV aqui no Brasil. Ele que era o proprietário de uma grande rede de rádios, jornais e revistas. Nesse momento se instala a televisão, sem nenhuma referência, nem a possibilidade de ela ser também um serviço de educação, de cultura, de transmissão de valores artísticos. É curioso você ler o discurso do Chateaubriand na inauguração da TV Tupi aqui em São Paulo, quando ele faz referência ao guaraná champagne, à prata, à cera não sei o quê. É o que um sociólogo chamou de uma jóia do imaginário latino-americano. É realmente uma peça histórica.

A legislação de outros países é muito mais rígida e muito mais vigilante no sentido até de proibir propagandas voltadas para as crianças no chamado horário infantil. No Brasil não é assim. O que você pensa disso?

Foi como eu disse, trata-se de uma empresa privada [o canal de televisão], mas que opera uma concessão pública. Logo, o Estado, em nome da sociedade, tem todo o direito de interferir. Não é um negócio – e mesmo outros negócios de compra e venda são regidos por lei. O Estado tem o direito de interferir. Essa é a primeira questão.

Mas parece que não é isso que acontece na prática. A publicidade, por exemplo, é considerada só uma coisa comercial, uma interferência dentro de um veículo comercial. E parece que ninguém vê a separação entre as coisas.

Primeiro, em relação à separação, acho que o que vale para criança vale para adulto. O Código de Defesa do Consumidor exige que se estabeleça claramente o que é publicidade e o que não é publicidade. Temos que trabalhar com exemplos de outros países. É um problema que não afeta somente o Brasil. Mesmo se deixarmos de lado os Estados Unidos, onde a TV nasceu comercial, nós observamos que na Europa, a partir dos anos de 1980, também se detectou esse problema – esse mesmo que nós estamos discutindo agora com mais profundidade. Mas houve [na Europa] uma ação da sociedade e do Estado para estabelecer regras. Nós temos duas situações básicas de ação para esse problema: uma dos países nórdicos, que simplesmente baniram a publicidade voltada para crianças. Suécia, Finlândia, Dinamarca não têm mais publicidade de produtos dirigidos à criança. Isso foi feito a partir de um longo debate com a sociedade, chegou a haver um plebiscito no qual a sociedade votou por essa decisão. Houve uma pesquisa promovida por um sociólogo sueco com crianças de 1 a 12 anos que mostrou que nem todas as crianças até 12 anos conseguem discernir entre o que é programação e o que é publicidade. A partir desses dados, o problema foi levado a plebiscito, e o plebiscito chegou a ter mais de 80% de votos pelo fim da publicidade. Maioria absoluta. Outros países da Europa, como Inglaterra, França, Alemanha, não baniram totalmente, mas estabeleceram normas rígidas de horários, muitos deles têm a programação de produtos infantis só a partir das 21 horas sob a idéia de que quem compra são os pais, não são as crianças, então eles têm que ofertar para os pais e não para as crianças. Depois há uma outra série de mecanismos restritivos. Por exemplo, você não pode mostrar um brinquedo dando a idéia de que ele é maior do que a realidade ou de que ele chega na sua casa voando quando ele não voa.

Quais as conseqüências de formar pequenos consumidores por meio da publicidade infantil?

“Outros países da Europa, como Inglaterra, França, Alemanha, não baniram totalmente [a publicidade infantil], mas muitos deles têm a programação de produtos infantis só a partir das 21 horas, sob a idéia de que quem compra são os pais, não são as crianças”

Você estabelece como grande valor social o consumo e a competição. O individualismo. O sucesso é medido pelo acesso a determinados tipos de bens, bens que são consumidos no mercado. Acho que isso é trágico para a sociedade brasileira. Isso não aparece apenas na propaganda, aparece nas novelas, aparece nos programas de auditório, nos concursos. O que move as pessoas é a vitória sobre o outro. No caso do consumo, isso fica já gravado desde o berço. Eu me lembro de uma propaganda – para exemplificar essa idéia de que os bem-sucedidos são aqueles que consomem – da criança que ia com a mãe para a escola em um carro velho e pedia que ela parasse longe porque tinha vergonha dos coleguinhas. Isso é trágico! Você embutir na criança desde a tenra idade que é só por aí que se resolvem os problemas sociais, você só vai ser bem-sucedido se tiver o carro do ano. Isso para não falar da outra parte das frustrações mais graves que podem ocorrer. Porque você anuncia para uma televisão aberta como a nossa, que chega a 150 milhões de pessoas, a grande maioria é de famílias sem condições de acesso àqueles bens que são anunciados. Isso gera frustrações, obviamente, mas pode, em determinados meios, levar a resolução dessa frustração por meio da violência.


O que você acha desse fenômeno da espetacularização da notícia?


Você não pode normatizar informação jornalística como você pode e deve normatizar a publicidade, porque o risco do impedimento da informação é maior e é um risco para a sociedade, que tem o direito de ser informada sobre o que acontece. Os cuidados deveriam ser tomados pelas próprias empresas em um diálogo maior com a sociedade. Se tivermos um órgão regulador, que essa sociedade dialogasse por meio desse órgão regulador. É muito fácil dizer “diálogo com a sociedade”, mas quando você escreve para a Rede Globo e diz que você se sentiu afrontado com determinado fato, ou não respondem ou a resposta é de uma arrogância brutal. Eu tenho exemplos disso. Quando a sociedade se sente incomodada com esse tipo de cobertura, o famoso info-entretenimento, você tem que ter meios para que a sociedade possa dialogar efetivamente com os meios de comunicação.

Você acha que essa maneira de tratar a notícia é uma coisa dos anos de 1990 para cá, de uma geração formada na televisão mesmo?

Pode ser isso. É curioso. O que é o telejornalismo? Você me fez lembrar como é a cronologia do jornalismo de televisão. Os primeiros jornalistas de televisão são do rádio, então eles vieram para a televisão com todos os cacoetes do rádio e também em uma situação em que os recursos tecnológicos eram precários. Então o repórter de televisão, no início, muitas vezes era mais importante que a notícia. Ele falava, falava, virava até estrela. Na década de 1970, começou a haver a ida dos jornalistas [para a TV], que também tinham muito temor da televisão. Preconceito e temor. O pessoal de jornal impresso tinha preconceito, achava um meio menor, porque tinha o pessoal de rádio. Foi difícil, mas gradativamente esse pessoal acabou indo, juntando com alguns documentaristas, pessoal que ia fazer Globo Repórter no final da década de 1970. Bons documentaristas, Eduardo Coutinho, que está aí até hoje, o João Batista de Andrade, e aquele pessoal que estava fazendo um bom jornalismo impresso foram gradativamente dando um outro perfil para o jornalismo de televisão, um jornalismo mais dedicado, menos personalizado. A partir do final dos anos de 1980 e começo dos anos de 1990, você tem jornalistas que saem da escola e vão direto para a televisão, são os jornalistas de televisão. Porque também a TV passou a ser mais glamourosa. Dou aula para jornalismo desde o início dos anos de 1980. Fui percebendo como, em uma época, os meninos queriam ir para a Folha Ilustrada [caderno de cultura da Folha de S.Paulo] e para a televisão – para essa televisão. Também porque são gerações criadas em frente a ela, então sabem exatamente como fazer daquela forma. Eu acho que [os novos profissionais] entram [para a televisão] sem uma crítica maior, mas também não dá para colocar essa forma nas costas deles, é uma forma empresarial. É uma forma de segurar o telespectador na frente da televisão.

Onde aparece a crítica nesses últimos dez anos de televisão?

“A partir do final dos anos de 1980 e começo dos anos de 1990, você tem jornalistas que saem da escola e vão direto para a televisão, são os jornalistas de televisão. Porque também a TV passou a ser mais glamourosa”

O espaço é muito limitado, disso tenho clareza. Porque a televisão é a única janela para o mundo para esses 150 milhões de brasileiros. Ela chega para essas pessoas, aparentemente, de forma gratuita. Elas nem percebem, na compra da cerveja ou do xampu, que essa é a forma de financiamento da televisão. É o único bem cultural que chega de forma gratuita ao cidadão. O jornal, a revista, o cinema são pagos. E, depois, por ser a única forma de contato com o mundo e com a informação – e pelo fato de a televisão não contar para esse público que ela é uma concessão pública –, fica muito difícil estabelecer qualquer mecanismo crítico mais organizado. A grande maioria da população tem uma relação de apatia à televisão – embora muitos manifestem, num contato pessoal, um para o outro, um incômodo com relação à programação. Mas não é uma relação de crítica, e isso pela falta de mecanismos para poder encaminhar essas demandas.

As pessoas que faziam crítica escreviam sobre televisão. Você vê isso acontecendo hoje?

O The Guardian, por exemplo, que é um jornal importante de Londres, tem uma editoria de mídia, algo que fale, na imprensa, desse objeto veiculado às relações com a sociedade, e não a fofoquinha, não o que vai acontecer na novela amanhã. Eles têm diariamente uma matéria semanalmente um caderno de mídia onde tratam essas questões estruturais da televisão, essas relações da televisão e a sociedade, a televisão e o mercado, esses grandes conglomerados que disputam esse bolo publicitário. Nós não temos essa crítica nem na mídia impressa. Talvez em um ou outro momento, a Folha de S.Paulo e o Estado de S.Paulo abram esse espaço para debate, mas serão os únicos, porque O Globo não pode fazer isso. A empresa que tem uma emissora de televisão no seu conglomerado não pode fazer isso.

A força política da televisão é muito forte, não?

É. Ela influi no processo democrático, eu não preciso ficar repetindo todos os exemplos que a gente tem historicamente. Ela tem uma influência direta e esse é um problema para a democracia. Costumo dizer que enquanto as emissoras de televisão aberta não colocarem lá, claramente, nos intervalos ou no meio da programação, que elas são uma concessão pública que começou no dia tal e termina no dia tal, a nossa democracia ainda não estará completa. Um outro aspecto é essa presença diária dos interesses da empresa sobre os interesses da sociedade. Em alguns momentos raros talvez eles se conjuguem, mas na maioria das vezes não. Há uma pesquisa recém-publicada feita por uma doutoranda da USP mostrando claramente como o Jornal Nacional interferiu nas eleições de 2002 e de 2006, com dados concretos. Porque ali não era apenas uma análise quantitativa de dar tantos minutos para um ou para outro, mas era uma análise qualitativa que estabeleceu valoração para as falas dos candidatos e dos apresentadores. Ela tem um material gravado muito extenso que se torna fidedigno. A amostra que ela pegou é uma amostra que dá fidedignidade à conclusão de que houve, e continua havendo, interferência.

 

E o rádio?

O rádio sobreviveu à televisão, está sobrevivendo à internet, porque está dentro da internet. Agora, ele está aberto ao mesmo mal da televisão: a forma como são outorgadas as concessões e a não-alteração dessas concessões. Então você tem hoje, você vê o número de emissoras nas mãos de instituições religiosas. O grande problema no rádio, e talvez fique até mais claro no rádio que na televisão, é que no Brasil nós nunca vimos um rádio como um serviço, a idéia da prestação de serviço. A palavra “serviço” é fundamental, porque o rádio, depois da televisão, tem que prestar serviço a toda a população, e para isso tem que ter uma diversidade ampla em suas ofertas. Deveria haver uma regulação das grades das emissoras que permitisse que o ouvinte, ao mudar de estação, tivesse pelo menos uma que atendesse a seus interesses, a seus gostos musicais, artísticos, e isso não existe porque você não tem um controle de como são usadas essas concessões. É um absurdo. No Brasil você imagina que um determinado grupo empresarial receba uma concessão do Estado e no meio da vigência dessa concessão, que é de dez anos para o rádio e 15 para a televisão, transfira para um outro grupo que vá fazer um outro uso daquela concessão. Qual seria o mecanismo correto da outorga de concessões? Na Europa, você apresenta um projeto e, se o órgão entender que esse projeto atende a uma parte da sociedade, você recebe a concessão.

 

“Você não pode normatizar informação jornalística como você pode e deve normatizar a publicidade, porque o risco do impedimento da informação é maior e é um risco para a sociedade, que tem o direito de ser informada sobre o que acontece”