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Limites da medicina

O objetivo é garantir a qualidade de vida

MARISA AMATO


Marisa Amato
Foto: Nicola Labate

Marisa Campos Moraes Amato é cardiologista, com mestrado e doutorado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde é professora livre-docente.
Foi presidente da Academia de Medicina de São Paulo no biênio 1997-98 e membro do Conselho de Cultura da Associação Paulista de Medicina entre 1999 e 2002.
Desde novembro de 2008, é presidente do Clube Humboldt do Brasil. Marisa Amato é autora de vários livros e artigos, além de diversos capítulos em obras médicas, e participou de mais de 50 congressos de medicina.
Esta palestra de Marisa Amato, com o tema “Limites e interfaces da medicina”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 11 de março de 2010.

O tema “Limites e interfaces da medicina” é extremamente abrangente. A medicina é tida não como ciência, mas como a arte da cura. Na mitologia grega o pai da medicina era um semideus, Asclépio, também conhecido pelo nome romano de Esculápio, filho de um deus com uma mortal. Foi criado pelo centauro Quíron, que lhe ensinou a arte de curar. Só que Asclépio ficou tão hábil que chegou a ressuscitar os mortos e isso causou muita inveja entre os deuses, a tal ponto que Zeus o matou com um raio. O símbolo do cajado com a serpente vem da época greco-romana, quando se acreditava que a cobra representava as doenças.

A medicina sempre se ocupou em tratar, prevenir e aliviar o sofrimento humano, ou seja, manter a saúde. Mas o que é saúde? É muito mais que não ter doenças, é a sensação de um bem-estar completo. Essa é a definição dada pela Organização Mundial da Saúde. A medicina trabalha para que o indivíduo mantenha boa saúde e boa qualidade de vida.

Como é uma arte, não uma ciência, a medicina usa o conhecimento de todas as ciências, fazendo com elas uma interface, para poder executar suas tarefas. Na área da medicina, por sua amplitude, qualquer ciência tem alguma utilidade. Por ser uma arte, a medicina não tem limites.

A vida

Quando a vida se inicia? Será na hora da fecundação, ou quando começam a se dividir as células fecundadas, lá pelo quinto ou sexto dia, quando isso é feito in vitro? É uma questão para muita discussão, e aí entram a Igreja e a ciência. Não temos uma definição absoluta. E com a clonagem, então, como ficaríamos?

Em 1900, ao nascer o indivíduo tinha expectativa de vida em torno de 50 anos. Hoje o homem vive até por volta dos 80 e a mulher dos 90. Em 2040 ou 2050 vamos chegar a 100 e 110. Entre os países que mantêm hoje maior longevidade, em que a população de indivíduos acima de 65 anos é significativamente elevada, em primeiro lugar está a Grécia, seguida da Itália e do Japão. A longevidade é maior no Velho Mundo, nos países com tradições antigas. Ela muda o panorama socioeconômico da sociedade, exigindo uma atenção especial a essa faixa etária, com o uso maior dos benefícios de aposentadoria, seguro-saúde etc. Se em 1900 havia poucos indivíduos com mais de 65 anos, hoje já temos 50% da população acima dessa idade, com tendência a um aumento cada vez maior.

Outra situação a ser considerada é a velocidade com que a população está crescendo. No ano de 1800, a população da Terra atingiu seu primeiro bilhão de habitantes. Para chegar aos 2 bilhões levou 126 anos, período reduzido para 33 anos para atingir o terceiro bilhão. E alcançou os 4 bilhões em 13 anos, ou seja, em ritmo cada vez mais rápido. Será isso compatível com a sustentabilidade do planeta?

Termômetro da saúde

O que é qualidade de vida? René Leriche, famoso cirurgião francês, dizia que qualidade de vida é inconsciência do corpo. Ou seja, quando não nos lembramos de que temos um corpo, estamos com qualidade de vida perfeita. Mas o que ela é? Qualidade de vida é um conceito extremamente subjetivo, que varia de um lugar para outro, de um tempo para outro e de acordo com a fase que se está vivendo. Não deixa, porém, de ser o termômetro da saúde. Se a pessoa sente que tem boa qualidade de vida, isso é o que lhe interessa, o que a leva a ser feliz, a ter uma vida tranquila. Só que qualidade de vida envolve aspectos sociais e econômicos. Então é um assunto extremamente complexo, e a evolução da civilização obviamente muda esses valores. Antigamente, precisávamos de determinadas coisas que hoje não fazem sentido. As necessidades mudaram completamente e com elas os hábitos de vida e o panorama das doenças. Estamos na era da internet, da revolução digital. Está mais que provado que a internet bem usada só traz benefícios. Estudos mostram que indivíduos acima de 55 anos, que não são da época da informática, quando usam a internet ou o computador estimulam o cérebro, e isso retarda o envelhecimento mental. O problema é que a internet diminui as habilidades sociais, as pessoas ficam fechadas em seu próprio canto e se esquecem do relacionamento. Relacionar-se, para o ser humano, é muito importante.

Esse afluxo enorme de informações nos levou a viver uma ansiedade muito grande para dar conta de digerir tudo o que chega, de forma instantânea. Isso é difícil para o cérebro, precisamos de tempo para assimilar todos esses dados. E nesse anseio de dar conta de tudo aparece o stress. Esse stress contínuo agrava todas as doenças, não só as cardiovasculares, e é um fator desencadeante de muitas delas.

Conscientes do problema, resta-nos tomar uma atitude. É importante adquirir um hobby para garantir um futuro sadio, ampliar um pouco mais o leque de atividades, preocupar-nos com o tempo que teremos disponível quando não estivermos mais trabalhando e programar-nos para fazer coisas de que gostamos. Existem inúmeros estudos que mostram a importância dos hobbies e da sociabilidade. Eles diminuem o risco de doenças, além de nos dar maior satisfação. E há vários trabalhos que demonstram que pessoas sozinhas, mais introvertidas, não só adoecem mais como morrem mais cedo. A pessoa integrada socialmente compartilha suas emoções e tem menor risco de adoecer e, quando isso acontece, tem mais vontade de sarar.

É preciso destacar igualmente a importância do sono. Não me refiro à quantidade de horas dormidas, mas a sua qualidade. Também por estar submetidas a essa avalanche de informações, muitas vezes as pessoas não conseguem dormir. É extremamente importante dormir bem, o que não significa dormir muito, porque a duração do sono varia de uma pessoa para outra.

Memória

Outra coisa importante é a memória. Como acontece com qualquer outra função do organismo, se ela entrar em desuso, vai diminuir. A orientação que se dá hoje às pessoas é que conservem a memória ativa com jogos, para manter o cérebro funcionando até o final. Também já foi provado que o exercício físico aumenta a massa cerebral. E no futuro vamos ter algumas coisas interessantes. Há estudos que mostram que será possível apagar lembranças ruins, ter uma memória seletiva. Claro que há o perigo de isso ser controlado por alguém. São riscos que vamos viver no futuro.

E os limites da beleza? Na qualidade de vida, o conceito de beleza muda. É tudo extremamente relativo, mas sabemos que a obesidade é uma causa importante de doença e de morte, que pode ser prevenida. Em 1975, a incidência mundial de obesidade era de 15% a 30% e hoje já é de 40%. No Brasil tínhamos naquele ano uma grande quantidade de pessoas subnutridas, e hoje o problema é também a obesidade. Só que, associada a ela, há uma cadeia de problemas, que vão aparecendo e aumentam o risco de a pessoa sofrer um infarto.

No Brasil o tabagismo aumenta cinco vezes a probabilidade de infarto, a diabetes quase três, a obesidade também aproximadamente três. E assim vai. Só que esses fatores, quando associados, não somam o risco, mas o multiplicam.

Quanto às causas da mortalidade nos dias de hoje, as que mais se destacam – na verdade calamidades públicas, porque nem são doenças – são a violência e os acidentes. Entre as doenças, as principais são as cardiovasculares. Entre os que morrem por problemas cardíacos, 40% têm colesterol elevado, 30% fumam, 30% são obesos e 14% são hipertensos. Até os 44 anos de idade, a violência é responsável por 62% das mortes. No Brasil são 45 mil homicídios por ano, um a cada 12 minutos. Mortes em acidentes de trânsito são 136 por dia. São números mais significativos que os verificados em algumas guerras.

É importante tratar as moléstias em seus estágios iniciais. No caso dos diabéticos, antigamente só se começava o tratamento quando a glicemia estava acima de 140. Hoje já se fala em 100. Por que isso? Porque os estudos mostram que o tratamento precoce previne outros males que mais tarde se tornam irreversíveis. Lembremo-nos que 77% das complicações da diabetes se relacionam ao aparelho cardiovascular, levando às doenças que matam. A hipertensão tem uma história interessante também. Apesar do acesso à informação, as pessoas ficam perdidas. Hoje 50% dos hipertensos desconhecem a própria condição. Dentre os demais, 30% se tratam, mas não controlam o mal, ou seja, vão uma vez ao médico, começam a tomar um remédio e acreditam que ele servirá para o resto da vida, não fazem o controle. E 10% não querem se tratar – assim, apenas outros 10% fazem a coisa certa. Sabemos que quanto mais controlada a pressão arterial, maior a longevidade com qualidade de vida.

É importante ressaltar também que muitas vezes se vive muito porque não se consegue morrer, tantos são os recursos que existem na terapia intensiva. Estou falando de longevidade e qualidade de vida, ou seja, viver bem, e não simplesmente muito. No caso da hipertensão, sabe-se que um indivíduo de 35 anos com pressão acima de 15 por 10 tem expectativa de vida de 25 anos, enquanto no caso daquele que tem 12 por 8 é de 37, quase 40 anos. Essa é a razão para se tratar, e fazer isso direito.

E o tabagismo? Essa é a única causa de morte que pode ser totalmente prevenida. Hoje está mais que provado que fumar é um hábito extremamente maléfico. Morrem oito brasileiros por hora de doenças causadas pelo fumo. Em 1980 tínhamos na população mundial em torno de 35% a 40% de fumantes, índice que já foi reduzido para 18% a 25%, mas precisa ser zerado.

Exercício físico

Não se pode confundir conforto com qualidade de vida. Nosso organismo não foi feito para ficar parado, mas para exercer atividades. Nós não nos adaptamos facilmente a um tipo de vida cada vez mais sedentário e cada vez mais favorável à aquisição de doenças. Os benefícios do exercício físico são inúmeros. Uma vez que não precisamos sair no dia a dia em busca de alimento, como acontecia no passado, temos de fazer alguma coisa de maneira intencional.

A dieta é também muito importante. Existem países que têm alimentação baseada em peixes, em muitos vegetais, em azeite. Tudo isso, já se provou, é o ideal. Outra questão diz respeito ao volume de líquido ingerido. Nosso organismo é feito praticamente de água e as pessoas se esquecem de bebê-la. Há casos de pacientes internados apenas porque não se lembram de tomar água, desidratados, principalmente pessoas de mais idade.

O processo de envelhecimento começa no momento em que nascemos, mas podemos modificar essa evolução tomando algumas atitudes. O envelhecimento das artérias é um processo natural, sistêmico. Elas vão se tornando mais rígidas e às vezes apresentam manifestações específicas, muitas vezes devido a maus hábitos e às doenças da atualidade.

No panorama dos problemas de saúde, não podemos esquecer que a globalização também faz com que uma doença que está aqui apareça amanhã do outro lado do mundo. É um problema que vamos ter daqui para a frente e precisamos estar atentos.

Um levantamento do orçamento familiar mostra o gasto com medicamentos do brasileiro: 47% das despesas com saúde são feitas com remédios, 25% com convênio médico e 28% com outras coisas. Na classe A, que tem a possibilidade de fazer prevenção, o gasto com medicamentos é de 25% e na classe E é de 74% – ou seja, não existe planejamento, e as pessoas vão ao médico só depois que o problema já apareceu.

A biotecnologia com certeza já está influenciando e vai influenciar cada vez mais a qualidade de vida e a longevidade. Temos a engenharia genética, que vai permitir tratar as pessoas antes do nascimento, sem medicamentos, sem cirurgia. Vamos chegar lá, acredito, evitando muitas doenças, mas não sei quantas outras vão aparecer. A tecnologia das células-tronco também vai resolver muitos problemas. A clonagem já apresenta algumas soluções, mas reacende o dilema entre ciência e religião.

O enfoque atual da medicina é investir o máximo possível em saúde para garantir a qualidade de vida amanhã. É o que os americanos chamam de medicina anti-aging: o objetivo é não ficar doente, não ficar velho e não morrer, porque viver não dói, como dizia Carlos Drummond de Andrade.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – Tenho uma observação, mais uma curiosidade, sobre os países de maior longevidade. Entre eles, nota-se que seis participaram da 2ª Guerra Mundial, sofrendo muitos ataques: Japão, Alemanha, Itália, Grécia, Inglaterra e França. São nações que passaram por conflitos históricos e hoje apresentam maior longevidade.
Gostaria também de levantar a questão da interface entre medicina e ética, uma questão mais séria. Tenho dois exemplos recentes. Em outubro de 2009, um colega fez um exame de rotina e descobriu um aneurisma abdominal. Isso foi no Recife, que tem o segundo polo médico-científico do Brasil, com uma escola de medicina muito forte. Mesmo assim, ele preferiu procurar um cirurgião famoso em São Paulo. Na capital paulista o diagnóstico foi confirmado e o hospital sugerido foi o Albert Einstein. Como seu plano de saúde não cobria esse hospital, fez a cirurgia em outro, pagou R$ 350 mil à equipe médica, dos quais a seguradora devolveu R$ 15 mil. Ele morreu na semana passada. Antes de falecer, de volta a Recife, seus médicos constataram que a cirurgia não tinha sido executada corretamente.
O segundo exemplo diz respeito aos hospitais do SUS [Sistema Único de Saúde]. Recentemente, um jovem de 17 anos com tumor na cabeça passou por uma cirurgia, mas como o tratamento era caro, não o fez e também faleceu. E a então ministra Dilma Rousseff foi muito bem atendida no Sírio-Libanês. Finalmente uma pergunta sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos, que na realidade é uma ação insidiosa contra os direitos humanos – direito à liberdade de imprensa, à propriedade e à vida, com a questão do aborto que a Igreja Católica combate fortemente. O que você acha de deixar a mulher decidir sobre o aborto?

MARISA AMATO – Não toquei na parte dos direitos, porque é algo muito polêmico. Cada caso é um caso e não se pode generalizar. Nos Estados Unidos existem estados em que se pode fazer aborto e em outros não, é uma questão de definição local. Penso que se as pessoas não têm lucidez para definir sua própria vida, não podem decidir nada. Não sou contra nem a favor, cada caso tem de ser muito bem estudado. Quando a mãe corre risco de vida ou tem problemas sociais, isso precisa ser levado em consideração. A ignorância do povo ainda é muito grande e as pessoas precisam ser orientadas.

MUSSALÉM – E quanto à ética?

MARISA – Temos de separar a ética do direito do cidadão a ser atendido. Isso está no código, todos deveriam ter direitos iguais de tratamento. Só que essa não é nossa realidade. Não sei como responder, porque há um processo de deformação nos altos escalões e as pessoas fazem o que querem. E muitos ficam nas filas, esperando tratamento. É duro, mas é o que estamos vivendo.

SAMUEL PFROMM NETTO – Tenho notícia de numerosos programas, iniciativas, publicações etc. em países mais avançados que têm em vista a alfabetização popular em saúde, geralmente promovida por organizações médicas e entidades governamentais. Não lhe parece que no Brasil são limitadíssimos, para não dizer inexistentes, os esforços para alfabetizar, nesse sentido, a população? Há quem afirme que essa tarefa caberia aos professores, mas como fazê-lo se nosso professorado de modo geral é analfabeto em matéria de medicina e saúde?

MARISA – Esse é um problema de educação. Se não conseguimos sequer alfabetizar as pessoas, como ensinar noções de saúde? Sem noções básicas de higiene é difícil até sobreviver.

NEY FIGUEIREDO – O jornal espanhol El País publicou recentemente uma notícia que me surpreendeu, a de que o número de mortes por suicídio na Espanha, com a crise dos dois últimos anos, ultrapassou o daquelas decorrentes de acidentes de trânsito. O suicídio, que era a quarta ou quinta causa, foi para o primeiro lugar. Por aí se vê como é importante a questão do stress. Em relação aos gastos do orçamento familiar com saúde, pergunto se as pessoas menos favorecidas deixam de fazer prevenção por ignorância ou por total impossibilidade. As pesquisas de opinião de que participo revelam que o povo tem consciência das coisas e tem melhorado demais nessa conscientização. O problema, aliás, não é só nosso, pois nos Estados Unidos 45 milhões de cidadãos não têm nenhum plano de saúde.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – O índice do gasto em remédios está ligado a certa cultura da população, implantada principalmente pela televisão, que é a da automedicação. A TV anuncia medicamentos e as pessoas compram sem consultar um médico.

JANICE THEODORO – Hoje antes de nascer as crianças são medidas e os dados comparados com os de um banco internacional, o que permite revelar se o bebê é portador de alguma síndrome etc. De um lado, isso me deixa contente, pois as doenças podem ser prevenidas, mas por outro preocupa, pois o acesso a tais informações permite selecionar (estou usando a palavra de Darwin propositadamente) os descendentes. Na apresentação você evitou problemas de ordem ética, mas fico pensando se as conquistas da medicina não estariam criando cidadãos de primeira e de segunda categoria. Agora há a possibilidade concreta de formar espécies superiores, e isso é um desafio assustador. Como é que a medicina pode lidar com esse dilema do século XXI?

MARISA – Na realidade já estamos estratificados pelo poder financeiro e quem tem dinheiro compra tratamentos e tem maior possibilidade de se manter vivo. O maior problema que o médico recém-formado enfrenta não são as doenças, mas a situação socioeconômica dos pacientes. De que adianta passar uma receita se o indivíduo não tem dinheiro para comprar o remédio ou mesmo não tem como chegar ao posto de saúde para pedir o medicamento? A medicina, por si só, pouco pode fazer, e quis mostrar essa defasagem. Temos a medicina de ponta, com alta tecnologia, enquanto há pessoas que morrem de verminose.

NEY PRADO – Esse problema foi disciplinado por um projeto destinado a facilitar o acesso a remédios pelo SUS. Até recentemente, com base na Constituição de 1988, que diz que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado, quem necessitasse de remédios e não os obtivesse no SUS poderia invocar o Poder Judiciário. E o juiz, em obediência ao estabelecido na Constituição, determinava que o secretário da Saúde oferecesse aquele medicamento. Acontece que o Executivo não tem condições orçamentárias para atender a essa demanda, que cresceu porque os próprios laboratórios se utilizaram de advogados para promover essas ações, com o objetivo de vender mais seus produtos.

ADIB JATENE – A Secretaria da Saúde do estado de São Paulo gastou no ano passado R$ 1,2 bilhão para atender a ordens judiciais. Isso tem sido feito, mas ocorrem abusos de tal ordem que são inconcebíveis. O juiz manda dar fralda descartável de determinada marca e é preciso obedecer. E surgiram casos como o de Marília, cidade paulista que foi identificada como a capital nacional da psoríase, pelo número de casos indicados para receber o remédio para essa doença de pele, que é caríssimo. O negócio foi tão escandaloso que o secretário pediu a ajuda da polícia e se descobriu uma quadrilha formada por um advogado, um médico e um representante de laboratório.

LUIZ GORNSTEIN – Como se poderia mudar a medicina para formar mais clínicos em vez de tantos especialistas? Dessa forma a triagem não teria melhor resultado?

MARISA – Sim, sou fã dessa ideia. Tudo o que as pessoas precisam, em termos de saúde, deveria ser centralizado em um único profissional, que encaminharia o paciente, quando necessário, a outros médicos. Nesse aspecto também há falta de conhecimento e dificuldade de acesso. As pessoas têm mania de correr ao pronto-socorro em vez de ir ao ambulatório. Em muitos casos basta conversar com o paciente para saber da importância ou não da doença. A quantidade de exames que se pedem hoje, sem necessidade, encarece demais o sistema. Muita coisa poderia ser resolvida com bom senso.

EDUARDO SILVA – Não faz muito tempo falávamos do médico de família, que era uma pessoa que convivia conosco. Com certeza as orientações dele eram melhores que as informações que o computador hoje nos traz. O atendimento de saúde poderia melhorar muito se voltássemos à figura do médico de família, ou mesmo de um enfermeiro ou tecnólogo de medicina que pudesse conviver com as pessoas nos bairros. Seria melhor que ir direto a um pronto-socorro. No hospital as pessoas perdem o nome, são só um número, e até que descubram seu problema fazem uma dezena de exames caríssimos.

JULIO ABRAMCZYK – Adib Jatene introduziu um plano de visitas domiciliares. E já faz tempo, não é de agora.

MARISA – Existe um programa de médico de família, só que as coisas boas não evoluem tão rápido, cresce mais o número de exames. Em relação à informática e à internet, o médico muitas vezes apenas liga o computador e se esquece de olhar para o paciente.

ZEVI GHIVELDER – Quando Pedro Kassab fez uma palestra aqui, fiz uma pergunta e o doutor Adib Jatene interveio com muita propriedade dizendo: “Isso é o business da medicina”. Pergunto como você vê essa proliferação de business na área médica. Outra questão: tenho ouvido com certa frequência o conceito de que não existem doenças, existem doentes. O que você acha disso?

MARISA – Doenças são descritas nos livros para estudo. O que o médico vê são os doentes nos quais a doença se manifesta de várias maneiras. Então devemos tratar caso a caso. Por isso é necessário olhar nos olhos do paciente, falar e ouvir. Isso é o mais importante, é a humanização que está se perdendo. O business da medicina é a medicina como negócio. Isso acontece. Antigamente quem tratava os doentes eram os sacerdotes, os feiticeiros, os magos, pessoas especiais que tinham o poder de curar, de amenizar o sofrimento. A evolução tecnológica mudou isso. Existe a pressão dos laboratórios, das empresas de saúde. Por outro lado, há médicos trabalhando um número excessivo de horas, muitas vezes com uma remuneração inacreditável.

ERWIN THEODOR ROSENTHAL – Conheci o professor Irany Novah Moraes, pai da doutora Marisa. Ele foi um grande professor de medicina, principalmente porque encarava sua profissão como uma missão e dizia: “Antes de mais nada, sou médico clínico, o médico que visita o doente”. Penso que é exatamente isso que seria necessário fomentar, ou seja, o médico que vê um paciente como indivíduo, como cidadão. Ele pode ser cirurgião, especialista, pode consultar o computador, mas nunca deve esquecer o juramento que prestou.

JOSEF BARAT – A evolução tecnológica vem criando expectativas muito grandes na medicina. Gostaria de ouvir sua opinião sobre a frustração que isso gera, pois sabemos que no mundo real as coisas não acontecem assim.

FARIA LIMA – Todos os cidadãos vão ter uma carteirinha com os detalhes de sua saúde. Até que ponto isso não vai provocar um cerceamento na mobilidade social e uma marginalização dessas pessoas, diante do interesse dos grupos financeiros que tomaram conta da medicina?

NEY PRADO – Estamos levando o debate para a questão das intenções dos laboratórios e dos médicos, esquecendo os resultados benéficos. Não podemos apenas condenar os honorários de certos médicos, o preço dos medicamentos, os grupos que tomam conta da área. Vamos ver também os grandes benefícios que esses agentes têm trazido para que possamos ser mais longevos.

MARISA – A tecnologia realmente evolui com velocidade assustadora e a mídia, que também age rapidamente, muitas vezes anuncia coisas como fatos já definidos, quando ainda estão em pesquisa. Claro que os pacientes querem saber tudo sobre aquela novidade. Somos frequentemente abordados por pessoas que leram sobre determinado tratamento e o exigem, sem saber que ainda está longe de ser produzido.
É claro que há grandes benefícios, resultantes da evolução da medicina. Mas não adianta tratar de uma elite e deixar o restante da população no abandono. Qual o benefício de selecionar, dar carteirinha etc., se não voltarmos os olhos para a água que não é tratada e para o esgoto que passa dentro das casas?

ADIB JATENE – Não há nenhuma dúvida de que a medicina mudou, e não foi por causa dos médicos. Antigamente tínhamos médico e doente, mas à medida que a tecnologia foi se incorporando surgiram novos atores, a indústria de equipamentos, os laboratórios, o governo e os planos e seguros de saúde, que passaram a decidir o que deve ou não ser feito. E a medicina foi transformada num grande negócio, com sua ética contaminada pela do comércio e da indústria. No momento em que a medicina foi transformada em negócio surgiram todas essas distorções.
Mas há também problemas de outra ordem. Por exemplo, a formação do médico, diante dessa explosão tecnológica, ficou complicada. Até 1996 tínhamos 80 faculdades de medicina, hoje são 181. Isso seria um escândalo em qualquer parte do mundo. A maioria dessas escolas não tem hospital nem pronto-socorro, nem condições de formar médicos de maneira adequada. Quando se resolveu universalizar o atendimento, chegamos à conclusão de que isso não podia ser feito a partir do médico, por causa da desigualdade social, já que os médicos não moram onde está a grande massa da população. Na cidade de São Paulo temos 39 distritos com mais de 4 milhões de pessoas que não têm um leito sequer, enquanto outros 25 municípios com 1,8 milhão de pessoas têm em média 13 leitos por mil habitantes. Não há acesso, e por isso o atendimento demora. Mas isso ocorre no mundo inteiro. Na Inglaterra, que todo mundo pensa que tem um sistema de saúde fantástico, o paciente com diagnóstico de insuficiência coronária entra numa fila de dez meses para fazer uma coronariografia. Se depois disso precisar de uma cirurgia, passa a outra fila de oito meses.
O programa de saúde da família se baseia na figura do agente comunitário, que cuida de 100 a 200 famílias. Ele faz o cadastramento e visita essa população todo mês. Sabe quem é hipertenso, diabético, tuberculoso, se uma mulher grávida está fazendo o pré-natal etc. Para cada cinco agentes comunitários coloca-se um médico, uma enfermeira e uma auxiliar de enfermagem. Por que isso não resolveu em definitivo os problemas? Porque não está implantado em todos os locais. Onde está funciona muito bem. Temos 160 mil agentes comunitários, em 30 mil equipes de saúde da família, que cuidam de 90 milhões de pessoas. Mas somos 190 milhões. O programa não aparece, mas melhorou muito a situação da população. Só que há carência não só de ambulatórios especializados para dar cobertura a esses médicos como de leitos em todos os locais. Isso significa que faltam recursos.
Quando as pessoas falam que a carga tributária brasileira é de 36% do PIB, se esquecem de que um terço disso vai para a previdência social, não é dinheiro que o governo usa. A previdência social neste ano vai gastar R$ 300 bilhões, mais os juros da dívida, que são R$ 150 bilhões. É quase metade do orçamento. O que sobra para o governo é menos de 20%, e com esse dinheiro não consegue resolver todos os problemas, especialmente no âmbito da saúde. Nas outras áreas, quando termina uma obra, cessa a despesa ou começa a receita. Na saúde, quando termina uma obra, começa a despesa, que é duas vezes maior do que aquilo que se gastou para construir e equipar.
Estamos impressionados com o desenvolvimento da China, mas ela não tem previdência social, não tem salário-desemprego, não tem auxílio-maternidade. Isso é um grande valor que nós temos. E se faltam recursos para outras áreas, temos de trabalhar para consegui-los.

 

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