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Em guerra contra o mosquito

Enquanto a vacina não vem, o único remédio contra a dengue é a prevenção

NILZA BELLINI


Arte PB

Têm razão as dengosas para ser amuadas, birrentas, manhosas. A palavra vem de dengue, doença infectocontagiosa que causa sintomas como moleza e mal-estar e afetou, no último verão, milhões de brasileiros. Segundo dados do Ministério da Saúde, de janeiro até o início de abril haviam sido notificados 447.769 casos, mais de 80% deles concentrados em sete estados: Acre, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e São Paulo. Estudos científicos mostram que, para cada notificação, cerca de dez deixam de ser contabilizadas. Assim, em 2010, aproximadamente 5 milhões de brasileiros devem ter sido vítimas do vírus transmitido pelo Aedes aegypti, mosquito que se desenvolve em áreas tropicais e subtropicais.

Atualmente a incidência vem caindo porque o frio impede a multiplicação das larvas do mosquito. A dengue quase nunca é transmitida em temperaturas abaixo de 16 °C, e o auge da epidemia ocorre sempre em ambientes com temperaturas em torno de 30°C.

A proliferação do Aedes aegypti é muito rápida: o embrião se desenvolve cerca de 48 horas depois de a fêmea do mosquito depositar seus ovos em recipientes com água. As larvas vivem uma semana e, depois desse período, viram mosquitos adultos, com vida média de 45 dias. Os ovos que carregam esses embriões, porém, suportam até um ano de seca e podem ser transportados por longas distâncias, grudados nas bordas de recipientes. Os mosquitos acasalam entre o primeiro e o segundo dia da vida adulta, e as fêmeas se alimentam de sangue humano para obter as proteínas indispensáveis à maturação dos ovos. 

Não é apenas o Aedes aegypti que transmite o vírus da dengue – o Aedes albopictus também é vetor da moléstia, embora com menor prevalência. Esses mosquitos picam durante o dia, ao contrário dos comuns, que atacam à noite. O vírus faz parte do gênero Flavivirus, um complexo que inclui, além dos causadores da dengue e da febre amarela, o vírus da febre do oeste do Nilo, sem manifestação no Brasil. Ele nunca invade o corpo humano por conta própria: precisa sempre de um agente perfurante, seja a picada de um mosquito, seja uma seringa contaminada.

“As primeiras descrições da doença são do início do século 19”, diz o médico Hélio Arthur Bacha, que tem mestrado e doutorado em doenças infecciosas e parasitárias pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). É possível que o termo dengue seja derivado da expressão “dengu pepo”, da língua suaíli, um dos idiomas oficiais do Quênia, de Uganda e da Tanzânia, usada desde o início do século 20 para descrever a possessão de doentes por maus espíritos, que os fazem ter febre e tremer.

No Brasil, a dengue não se manifestou durante 70 anos, no século 20. Sua ausência esteve relacionada ao combate à febre amarela por Oswaldo Cruz durante sua gestão como diretor geral da Saúde Pública até 1909. A febre amarela e seu transmissor, o Aedes aegypti, foram quase exterminados nesse período, com as políticas de combate ao mosquito. Com o desaparecimento do vetor, a dengue também sumiu. Voltou a aparecer no Brasil em 1976, e seu avanço foi rápido, em consequência das condições socioambientais do país. Programas focados no combate químico ao mosquito, sem a participação da comunidade, foram ineficazes para conter a proliferação desse inseto, que facilmente se adapta ao ambiente urbano.

Bacha explica que os sintomas da doença aparecem três dias depois da picada do mosquito – semelhante a um pernilongo rajado – e variam de acordo com a reação imunológica do indivíduo contaminado. Em sua forma clássica, a doença pode ser desde assintomática até causar febre alta e súbita, fortes dores de cabeça e atrás dos olhos, redução do paladar e do apetite, e provocar manchas e erupções na pele semelhantes às da rubéola, concentradas nos membros superiores e no tórax. A pessoa infectada também pode apresentar náusea, vômito, tontura, cansaço, moleza e dores nos ossos e articulações.

“Fiquei doente apenas dois dias, mas senti fortes calafrios”, diz Nilton Natal Libanori, arquiteto de 52 anos residente em Taquaritinga (SP), cidade de 55 mil habitantes, onde extraoficialmente 25% da população foi atingida. “Não é possível fazer nada, nem assistir televisão, tamanho o mal-estar”, diz o promotor público Leonardo Bellini de Castro, residente em Araçatuba, uma das cidades com maior índice de contaminação do interior paulista. Ali, até abril já haviam sido registrados mais de 6 mil casos da doença.

Formas de tratamento

“Não existe antiviral para o tratamento da dengue”, explica o professor Bacha. “O que há são ações de suporte, para alívio dos sintomas, incluindo repouso, hidratação e medicamentos para diminuir as dores e a febre”, diz. A recuperação da dengue clássica costuma ser total, embora seja comum a sensação de cansaço durante alguns dias, que depois desaparece completamente. Já a doença em sua forma mais grave, hemorrágica, exige cuidados extremos, como a internação da vítima em unidade de terapia intensiva (UTI).

Os sintomas da dengue hemorrágica são os mesmos da comum. A diferença acontece quando acaba a febre e começam a surgir dores abdominais fortes e contínuas, vômitos persistentes, sangramento pelo nariz, boca e gengivas. O quadro clínico se agrava rapidamente e aparecem sinais de insuficiência circulatória. O choque pode levar a pessoa à morte em até 24 horas.

De acordo com estatísticas do Ministério da Saúde, de 5% a 10% dos brasileiros que contraem a forma mais grave da doença morrem por complicações. “Estudos mostram que a dengue hemorrágica ocorre por diferentes causas, principalmente quando o paciente foi contaminado por sorotipos diferentes, num curto intervalo”, explica o professor Bacha. Porém, não necessariamente a forma hemorrágica acomete aqueles que adquirem a doença pela segunda vez, ainda que o risco seja maior que na primeira infecção.

Existem quatro sorotipos da dengue, e por essa razão as contaminações podem ser sucessivas. No Brasil, circulam os DEN-1, DEN-2 e DEN-3. O sorotipo DEN-4 não teve registro no país até agora. Embora os sintomas sejam iguais para os três tipos de vírus, quando alguém contrai a doença fica imunizado apenas contra um deles e pode ser novamente infectado por outro.

Segundo o Ministério da Saúde, até o início de abril haviam sido registrados 2.561 casos graves de dengue – uma redução de 30,6% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando foram computados 3.695 casos graves. Foram confirmados 117 óbitos, o que representa uma diminuição de 7,8% quando considerado o mesmo intervalo de 2009, em que ocorreram 127 mortes. O estado que apresentou o maior crescimento de casos de dengue clássica foi São Paulo, que saltou de 6,5 por 100 mil habitantes em 2009 para 152,6 por 100 mil habitantes nos quatro primeiros meses de 2010.

Classificação de risco

As políticas de prevenção à doença são definidas pelo Ministério da Saúde, que presta assessoria técnica aos estados para que se adequem aos planos estabelecidos nas Diretrizes Nacionais de Prevenção e Controle da Dengue. Lançadas em 2009 e elaboradas em conjunto com representantes dos conselhos nacionais de secretários estaduais e municipais de saúde (Conass e Conassems), as diretrizes criam uma classificação de risco que ajuda o sistema de saúde a oferecer diagnóstico rápido e tratamento adequado, conforme a gravidade de cada caso, explica o médico sanitarista Affonso Viviani Júnior, titular da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), órgão da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

Viviani ressalta que, embora a política seja nacional, são os municípios que precisam estar à frente do processo na luta contra a dengue. Segundo ele, o aumento de casos no primeiro trimestre de 2010 está relacionado ao forte calor e à chuva excessiva no verão que passou. No final de 2009, já existiam indícios de que a epidemia poderia se alastrar por diferentes regiões do estado, diz ele. “O controle está baseado principalmente no combate a focos do mosquito e por isso é importante a participação de toda a população, já que a grande maioria deles é encontrada em residências e imóveis comerciais”, explica. A Sucen calcula que os técnicos não conseguem entrar em 15% dos imóveis que precisam ser visitados. No litoral, onde há muitas casas de veraneio, a taxa salta para 25%. “Basta uma com criadouro de mosquito para a doença se alastrar”, diz ele.

A partir de cem casos de dengue para cada 100 mil habitantes, a situação é considerada epidêmica. No litoral paulista, a epidemia afetou quase todas as cidades. No interior do estado, Ribeirão Preto lidera o ranking dos municípios com maior número de casos de dengue registrados em 2010. Segundo Ana Alice de Castro e Silva, chefe da Divisão de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde daquela cidade, até o final de abril 16.088 casos haviam sido confirmados. Ela ressalva, porém, que esses altos números também estão relacionados à eficiência em notificar a doença. “Em outros locais, a subnotificação é grande”, observa.

A segunda cidade do estado com maior número de doentes é São José do Rio Preto, seguida de Araçatuba e Araraquara. No final de abril, Ribeirão Preto já tinha comunicado cinco mortes por dengue hemorrágica ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. Em Rio Preto, até aquele mês, oficialmente, 11.380 pessoas tinham contraído a doença em sua forma clássica, com o registro de dez óbitos.

Mesmo assim, é comum pessoas impedirem o trabalho de prevenção e erradicação de criadouros em seus imóveis pelas equipes de técnicos da Sucen ou contratadas pelas prefeituras para eliminar criadouros. Em Bauru, onde a epidemia ficou caracterizada em abril, os responsáveis por imóveis que impedissem o trabalho dos agentes de controle de endemias eram autuados e recebiam multa de R$ 250 a R$ 2,5 mil.

Em Taquaritinga, depois de uma morte por dengue hemorrágica, alunos de quatro escolas e de uma fundação educacional participaram de uma manifestação contra a dengue, no início de maio, para conscientizar os moradores dos riscos. Além de panfletos explicativos, as crianças receberam sementes da espécie Crotalaria juncea – planta que pode ajudar no controle biológico do Aedes aegypti, porque atrai insetos como a libélula, capazes de combater as larvas do mosquito. 

Wilson Rodrigues, secretário de Saúde de Taquaritinga, argumenta que o aumento do número de casos em relação a 2009, quando apenas 62 pessoas tiveram a doença, tem múltiplas razões, entre as quais o fato de a população não receber os agentes do Núcleo de Vetores. Ele também atribui à Sucen a principal parcela de culpa pela epidemia de dengue em Taquaritinga. “O órgão não forneceu a quantidade adequada de veneno para a nebulização, que acabou sendo suspensa na cidade”, diz ele.

Márcia Teixeira Nantes, viúva do pintor de paredes Reginaldo Aparecido Perotti, que morreu aos 37 anos em Taquaritinga, reclama, por sua vez, do descaso da prefeitura no combate à epidemia. Segundo ela, o teste que comprovou a dengue como causa da morte do marido só ficou pronto três dias depois do enterro, razão pela qual o atestado de óbito registrou não a doença, mas falência múltipla de órgãos.

“De fato, depois de caracterizada a epidemia, a recomendação do Estado é que o diagnóstico seja clínico, tornando-se desnecessário o exame laboratorial”, diz Affonso Viviani Júnior, da Sucen. Mas ele contesta Rodrigues, ressaltando que o controle da dengue deve incluir outras medidas, como a mobilização da sociedade, já que o uso continuado de inseticidas não resolve o problema.

“Existe a expectativa da população e dos gestores municipais de que a Sucen vá solucionar a proliferação da doença com a aplicação de veneno, o que não é possível”, diz Viviani. “O produto não tem ação residual e mata os mosquitos apenas no momento da aplicação. No dia seguinte, com a desova, as larvas voltam a se multiplicar.”

A solução definitiva

O índice de mortalidade relacionado à dengue hemorrágica no Brasil (5% a 10%) é um dos maiores do mundo. Internacionalmente, os níveis aceitáveis vão de 0,5% a 1%. Esses dados mostram que o sistema público de saúde brasileiro, mais uma vez, não está preparado para atender às necessidades da população no caso de epidemias. Até 2009, o Aedes aegypti estava presente em 85% dos municípios e todos os estados apresentavam casos da doença – o maior índice de crescimento foi registrado na região sudeste.

Especialistas recomendam insistentemente o combate à proliferação do mosquito, com a limpeza de casas e quintais, mas ressaltam que a solução definitiva só virá com a vacina, prometida para os próximos três anos. “Não vamos conseguir eliminar a dengue com a metodologia utilizada por Oswaldo Cruz no começo do século 20”, diz o professor Bacha. “A vacina promete ser a melhor solução”, ressalta.

As medidas que têm sido adotadas até agora podem apenas minimizar o problema. A redução do número de casos fatais depende de médicos mais bem treinados para fazer o diagnóstico clínico da doença e de uma adequada estrutura hospitalar para internação de pacientes em estado grave. Benedito Antonio Lopes da Fonseca, professor de clínica médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, tem supervisionado o treinamento dos profissionais de saúde da rede pública daquela cidade para diagnóstico precoce. “A Secretaria de Saúde do município está fazendo o melhor possível para controlar o vetor, mas a população brasileira tem o hábito de acumular resíduos e objetos ao ar livre, onde se formam criadouros”, diz.

Benedito da Fonseca, que atua também como supervisor do Centro de Pesquisa em Virologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, é um dos mais conceituados pesquisadores brasileiros empenhados na busca de uma vacina contra a dengue. No laboratório que supervisiona, os estudos sobre dois sorotipos, o DEN-3 e o DEN-4, estão em fase de testes com camundongos. “Não é fácil desenvolver uma vacina totalmente brasileira dentro de uma universidade. Nosso trabalho é mais lento, porque aqui trabalhamos com alunos, sem remuneração, ao contrário do que acontece nas empresas de tecnologia, que têm um staff grande e profissional”, observa. Os testes da GlaxoSmithKline Biologicals e da Sanofi Pasteur com humanos, por exemplo, já acontecem no sudeste asiático, onde a dengue é endêmica.

As vacinas pesquisadas por vários centros do mundo deverão estar prontas para uso em humanos por volta de 2014, acredita Fonseca. “A dificuldade é desenvolver uma modalidade tetravalente, que garanta imunidade para os quatro sorotipos”, afirma. A que está sendo desenvolvida pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês), os quais mantêm um convênio com o Instituto Butantan e vão fornecer tecnologia para produção em território nacional, já foi testada em macacos resos e em um grupo de americanos que não tiveram a doença, e apresenta boas chances de ser eficaz. Feita a partir do vírus atenuado, essa vacina é capaz de induzir uma resposta imunológica com efeitos colaterais suportáveis no organismo vacinado. Será eficiente para dois tipos de vírus, o DEN-2 e o DEN-3. “Não foi possível atenuar o DEN-1 nem o DEN-4”, diz Fonseca. Para contornar o problema, outros centros de pesquisa têm combinado partes do DEN-4 e do DEN-1 para produzir um “vírus quimérico”, que, embora não cause a doença, estimule o sistema imunológico. Os trabalhos são promissores.

Enquanto a vacina não chega, Fonseca diz que as campanhas de prevenção deveriam induzir a população a assumir sua parcela de responsabilidade. “Todos já sabem que o mosquito está dentro de suas casas, mas muitos ainda pensam que é o governo quem deve combater os focos”, afirma. Mesmo considerando que o poder público tem sua parcela de culpa por não garantir em muitos locais abastecimento regular de água, o que leva a população a usar reservatórios improvisados – potenciais criadouros do mosquito –, educação sanitária não faz mal a ninguém.


Uma hemorragia de recursos

O preço da dengue é alto. A internação de um paciente em hospital público custa, em média, R$ 300, no caso da forma clássica da doença, e R$ 500 no da variante hemorrágica. Isso sem mencionar os gastos, ainda mais altos, quando se trata de hospitais privados ou conveniados a planos de saúde.

Como o governo não dispõe sequer de dados relativos aos dias de trabalho perdidos por causa da epidemia, não é possível quantificar os danos reais para a economia do país provocados por ela. Para ter apenas uma ideia, uma pesquisa feita na Malásia pela Heller School for Social Policy and Management, da Brandeis University, mostra que o prejuízo anual com dengue no sudeste asiático, onde há uma pandemia, equivale a 940 mil dias de trabalho.

No Brasil, o governo somente informou ter determinado um aporte extra de R$ 128 milhões ao Teto Financeiro de Vigilância em Saúde, orçado em R$ 1,02 bilhão. Esse montante é destinado às campanhas de prevenção de todas as doenças epidêmicas. No caso específico da dengue, foram gastos R$ 55 milhões em campanhas na mídia, compra e distribuição de equipamentos, estoque estratégico de medicamentos, diagnóstico, treinamento e capacitação de profissionais da vigilância epidemiológica. É muito pouco – como termo de comparação, apenas a presidência da República tem quase R$ 200 milhões para gastar com publicidade neste ano.

No estado de São Paulo, nem a Secretaria de Saúde nem a Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) informam quanto foi investido no controle da doença. Os custos da dengue podem, aliás, se elevar ainda mais se as vítimas seguirem o exemplo de Jonathan de Albuquerque Reino, de 29 anos, residente em São José do Rio Preto, a segunda cidade com maior número de vítimas no estado de São Paulo. Ele está acionando a prefeitura local e quer receber R$ 15,3 mil de indenização por ter contraído dengue, pois acredita ter havido omissão nas ações para eliminar os criadouros do mosquito Aedes aegypti.

 

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