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Entre o lúdico e o engajado

Há cem anos falecia Angelo Agostini, artista da sátira política e social

CECILIA PRADA


Autorretrato de Agostini
Foto: Reprodução

Na pequena localidade italiana de Vercelli, situada na região do Piemonte, nascia no dia 8 de abril de 1843 Angelo Agostini, um menino a quem o destino reservava uma longa vida e carreira brilhante em um lugar muito distante, desconhecido certamente de seus familiares e considerado, pelos padrões europeus, semisselvagem: o Brasil. Em 2010 lembramos o centenário de seu falecimento, ocorrido no Rio de Janeiro em 23 de janeiro de 1910, uma semana após o de seu grande amigo e parceiro de causa abolicionista, Joaquim Nabuco.

O pai de Angelo morreu quando ele era ainda pequeno, e a mãe, a cantora lírica Raquel Agostini, resolveu mudar-se para Paris em 1848, levando o filho – buscava melhores condições para sua própria carreira e possibilitar que Angelo desenvolvesse seu pendor artístico, estudando artes plásticas com os melhores mestres. Naquela época, a França de Napoleão III firmava sua hegemonia intelectual e artística sobre outros países europeus e também em terras do ultramar. A capital francesa, remodelada pelo barão Haussmann, tornava-se protótipo da “cidade moderna”, com seus vícios e virtudes, na obra imortal de um poeta louco e vidente, Charles Baudelaire. No campo das artes plásticas, ela fora o fulcro do movimento romântico nas décadas anteriores e, enquanto o pintor Eugène Delacroix vivia seus últimos anos dedicado ainda a obras que exaltavam a natureza e a história pátria, outros artistas, como Gustave Courbet e Édouard Manet, adotavam padrões mais realistas, pintando ao ar livre e usando temas ligados à vida cotidiana – lançando, assim, as sementes de movimentos como o impressionismo, que de meados da década de 1860 em diante abriria o grande panorama mundial da “arte moderna”.

Aos 15 anos, tão bem iniciado fora nas artes visuais que não teria sido difícil ao jovem piemontês entrosar-se com seus companheiros de geração – Cézanne, Monet, Pissarro, Renoir, Degas – ou prosseguir uma carreira internacional como desenhista, seguindo talvez aquele que era considerado “o maior caricaturista de todos os tempos”, Honoré-Victorien Daumier. É o que certamente aconteceria se não fosse por um feliz (para nós) acaso. Vindo ao Brasil por volta de 1860 para visitar a mãe, que se casara novamente com um jornalista português que aqui morava, Antônio Pedro Marques de Almeida, o jovem Angelo escolhe a cidade de São Paulo para se estabelecer como fotógrafo e pintor retratista. Quatro anos mais tarde, porém, iniciaria uma longa carreira jornalística – marcada do começo ao fim por um intenso e constante engajamento em temas sociais e políticos.

Talento múltiplo

Em artigo publicado em “O Estado de S. Paulo” no dia 23 de janeiro deste ano, o historiador Gilberto Maringoni, que tem se dedicado à biografia de Agostini, dizia: “Chamá-lo genericamente de artista gráfico – designação que não existia na época – é uma tentativa de enquadrar sinteticamente um talento que se destacava em atividades tão diversas como as de caricaturista, pintor, fotógrafo, repórter, crítico de costumes, editor, empresário e agitador político. Introdutor das histórias em quadrinhos entre nós, o artista deixou como legado uma obra vasta, diferenciada e, sobretudo, irregular. Seus traços estão fixados em pelo menos 3,2 mil páginas de jornais e revistas”.

A mesma observação foi feita pelo jornalista João Antonio Buhrer de Almeida por ocasião de uma exposição em homenagem a Agostini realizada no Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas (SP), em março último – um evento que contou com a colaboração entusiasta de muitos artistas que veem esse ítalo-brasileiro como o Pai das Histórias em Quadrinhos entre nós. Disse Buhrer: “Saiu muita coisa sobre o Dia do Quadrinho Nacional. Mas pouca do centenário de morte de Agostini. Que não tem a ver só com quadrinhos, mas com história, já que sua Revista Illustrada, mantida durante 22 anos, é referência para qualquer historiador. Uma publicação que tinha tudo: quadrinho, charge, história, arquitetura, sociologia, um panorama para pesquisadores de qualquer área. Por exemplo, se alguém quisesse estudar a história da ópera no Brasil, bastaria seguir seus comentários e suas ilustrações dos espetáculos da época”.

Quatro anos depois de chegar a São Paulo, o jovem Agostini fundava sua primeira revista, “Diabo Coxo”, com Sizenando Nabuco de Araújo (irmão mais velho de Joaquim Nabuco) e o líder abolicionista Luís Gama. O título remete a um tema que a partir do século 17 tornou-se recorrente na literatura europeia: a figura do demônio que tem o poder de ver através das paredes para acompanhar o que as pessoas fazem. Como esse diabinho, a publicação retratava e satirizava a sociedade da provinciana São Paulo, com seus 20 mil habitantes e vida cultural opaca.

O semanário teve vida curta, pois circulou somente entre 1864 e 1865, mas desde o primeiro número o irreverente Agostini mostrou a que vinha, abordando temas políticos, a começar pelo recrutamento de “voluntários” para a Guerra do Paraguai – como é sabido, por trás de muito palavrório sobre patriotismo, os contingentes brasileiros eram majoritariamente formados por negros, mandados pelos senhores escravocratas em lugar de seus filhos. Mas a crítica política do jovem ousado foi além: em outra caricatura nos faz ver também homens brancos recrutados à força, ligados uns aos outros e arrastados com correntes no pescoço – também eles escravos do sistema monárquico e autoritário, que supostamente estaria levando a “civilização” aos bárbaros paraguaios.

O “Diabo Coxo” seria logo sucedido pelo semanário “Cabrião”, mais solidamente estruturado, graças ao apoio do Partido Liberal e à sociedade que Agostini estabeleceu com Américo de Campos, um dos maiores jornalistas do Império. O periódico circulou regularmente nos anos de 1866 e 1867 e chegou a ter 51 números. Obteve grande repercussão no país todo, pois mesmo após seu desaparecimento foram criadas, tanto em São Paulo como em outras províncias, publicações similares, até com o mesmo título – o nome (que em português ganhou o sentido de pessoa importuna) vinha de Cabrion, um personagem do romance folhetinesco Os Mistérios de Paris, do francês Eugène Sue, grande sucesso popular da época. Da mesma fonte vinha o personagem Pipelet, o burguês conservador que era o alvo predileto e ferrenho opositor do irreverente Cabrião. A linha do jornal era polêmica, destinada justamente a despertar a indignação burguesa. Aproveitando a relativa liberdade de imprensa do Segundo Reinado, investia o artista a torto e a direito contra políticos corruptos, empresários gananciosos e até contra os governantes relapsos. Sem contar a campanha anticlerical constante que movia, tendo como alvo predileto os jesuítas.

Já no seu sexto número, porém, o “Cabrião” foi alvo de um processo criminal. A Igreja e os zelosos da ordem pública indignaram-se com um desenho publicado no Dia de Finados, assim descrito: “Uma patuscada entre mortos e vivos alcoolizados, após um rega-bofe, dançando e bebendo em larga camaradagem”. O artista conseguiu safar-se e prosseguiu na sua linha. O cuidadoso estudo do historiador Délio Freire dos Santos sobre a publicação, que aparece no prefácio da edição fac-similar lançada em 1982 pela Imprensa Oficial, analisa minuciosamente seu conteúdo e conta episódios pitorescos por ela provocados na vida pacata de São Paulo.

Em 24 de setembro de 1867 Agostini lançou o último número do “Cabrião”, “por dificuldades de ordem material”, pois o semanário vivia de assinaturas, mas os pagamentos demoravam a entrar. Em 1868 ele resolveu deixar São Paulo para estabelecer-se no Rio de Janeiro, onde já colaborava em várias revistas, principalmente em “O Mosquito”, na qual durante vários anos satirizou com seus desenhos o clero nacional.

Data de 1869 o lançamento da primeira história em quadrinhos de Agostini, “As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora” – personagens que logo se tornaram populares e se mantiveram vivos no seu traço até 1898. Uma luxuosa edição que reúne todas as histórias da dupla mostrada nas revistas “Vida Fluminense”, “O Malho” e “Don Quixote” foi lançada em 2002 pelo Senado Federal, organizada pelo pesquisador Athos Eichler Cardoso. Segundo vários especialistas, Agostini pode ser agora incluído entre outros mestres estrangeiros que são oficialmente considerados os criadores do gênero – como o inglês Thomas Rowlandson (1756-1827), o suíço Rodolphe Töpffer (1799-1846), o alemão Wilhelm Busch (1832-1908) e o americano Richard F. Outcault (1863-1928).

Transparece em toda a obra de Agostini, porém, desde o início de sua carreira, um propósito social e político, expresso quase sempre pela sátira, mas algumas vezes por ilustrações descritivas – como a série “Cenas da Escravidão”, que realizaria mais tarde, em plena campanha abolicionista, sobre as torturas dos escravos, em sua “Revista Illustrada”. Uma coisa é certa: o gosto pela caricatura e pela sátira política foi certamente assimilado pelo garoto durante sua formação em Paris – se desde o Renascimento a caricatura se tornara, com Leonardo da Vinci, um recurso bem aceito e apreciado, e se grandes pintores como o espanhol Francisco de Goya, com seus Caprichos, e o inglês William Hogarth viram nela o mais eficiente meio de desmoralizar o poder autocrático e os privilégios de classe, desde o final do século 18 ela já se tornara uma verdadeira mania na Europa.

Na época de sua formação, ele com certeza sofreu influência do grande Daumier. É provável até que o tenha conhecido. Em seu trabalho, mais tarde, revelaria a mesma preocupação desse mestre: não deformar os personagens, dar-lhes características verdadeiras, embora deixando transparecer o que lhes ia no íntimo. Como diz Marcelo Balaban em sua tese de doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Poeta do Lápis – Sátira e Política na Trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial, lançada em livro no ano passado: “O que fazia com que seus desenhos fossem reconhecidos como caricatura era a intenção, esta bastante clara, de expor o ridículo, o grotesco das pessoas e situações que pretendia criticar. Mas suas estampas, humorísticas ou não, respeitavam um padrão estético de obediência às proporções das figuras humanas, um jogo de luz habilmente criado para dar verossimilhança às cenas que produzira”. Esse estilo, nitidamente europeu, não foi bem aceito, mais tarde, pelos nossos modernistas – mas a antipatia era recíproca, porque Agostini também não os suportava.

Crítica desabusada

No dia 1º de janeiro de 1876 surgiu no Rio de Janeiro a “Revista Illustrada”, criada e mantida por Angelo Agostini e Robin (Paul Théodore). Essa viria a ser a maior de todas as revistas brasileiras ilustradas do século 19, tornando o artista muito famoso – ele é considerado hoje o mais influente cartunista do Segundo Reinado. Joaquim Nabuco dizia que Agostini era o seu braço direito na campanha abolicionista e que a “Revista Illustrada” era “a bíblia da Abolição para os que não sabem ler”. Assim que a Lei Áurea foi assinada, Nabuco foi o primeiro a reclamar para o amigo a nacionalidade brasileira e a promover em sua homenagem um grande banquete no Rio de Janeiro.

Abordando todos os assuntos que interessavam de modo geral à população – da crônica falta de água às recorrentes epidemias de febre amarela, das revoltas populares, como a do Vintém, aos miúdos fatos da crônica policial –, a “Revista Illustrada” circulava em vários segmentos da sociedade, mas principalmente entre as classes mais instruídas e abastadas, pois seu forte era o comentário diário e muitas vezes desabusado do que se passava na esfera política. Segundo Marcelo Balaban, folhear a coleção da revista nos leva a compreender “como a política organizava a vida dos leitores”. Diz ele ainda: “São também [os números da publicação] uma brecha para estudar a atuação do nosso ‘poeta do lápis’ no período em que esteve à sua frente”. O pesquisador, porém, levanta uma dúvida que não consegue esclarecer: a relação da revista com a política devia-se ao interesse genuíno dos leitores pelos temas do gênero, ou teria o semanário sido criado expressamente com intenções políticas?

No primeiro número Agostini mostrava sua linha editorial nitidamente, dizendo: “O meu programa é dos mais simples e pode ser resumido nestas poucas palavras: ‘Falar a verdade, sempre a verdade, ainda que por isso me caia algum dente’. Quem se zangar comigo fique certo que perde seu latim. Estão prevenidos?” Na capa, uma pena ostensivamente apontada para um clérigo mostrava uma de suas obsessões: o anticlericalismo – um elemento que nos faz ver como em toda a sua carreira Agostini deu vazão plena a seus sentimentos pessoais, suas antipatias e simpatias. Tanto que, apesar do liberalismo geral de seu pensamento, não hesitava em expressar também certos preconceitos, em relação a raça ou sexo. Balaban consagra as últimas 120 páginas do livro citado a demonstrar que o empenho de Agostini na campanha abolicionista estava, de certa maneira, enraizado na ideia do “progresso”, que somente poderia chegar ao Brasil, em sua opinião, com um governo republicano e que promovesse a substituição do trabalho do escravo negro – atrasado e visto mais como uma carga para o país – pelo do colono europeu, branco, mais trabalhador e mais “civilizado”.

Da mesma forma a historiadora Rachel Soihet, da Universidade Federal Fluminense, chama a atenção para o tratamento caricato que o jornalista-artista dava à luta das mulheres por maior inserção social. Por exemplo, em um de seus editoriais, “Com as damas”, de 1886, ele dizia: “Não será da nossa parte que as legítimas aspirações do sexo gentil, da mais simpática e apreciável metade do gênero, encontrarão qualquer embaraço, por mais insignificante que seja, à sua justa expansão. Confiamos muito no bom senso e na inteligência servida pela educação para recear que as mães, as irmãs e as esposas, abandonando a serenidade dos lares, se atirem à política e aos meetings, obrigando-nos a velar pela cozinha e pelos recém-nascidos. Não! A mulher manter-se-á na órbita que lhe convém e, se alguma exceção houver, estamos certos que esse papel ficará reservado às sogras”.

O ano de 1888

Foi, porém, no ano em que os liberais festejavam a realização de um de seus mais importantes ideais – a abolição súbita e total da escravatura, com a Lei Áurea – que o grande combatente viu fechar-se sobre si e sua família o poder político dos círculos dominantes que desafiara sem trégua durante os 28 anos de sua permanência no Brasil. Em circunstâncias que o forçaram a fugir precipitadamente para a França, cinco dias apenas após ter dado entrada em seu pedido de nacionalização ao governo brasileiro.

Socialmente, o exuberante artista de 48 anos provocou escândalo por ter seduzido uma aluna menor de idade – a pintora Abigail de Andrade, que acabara de lhe dar uma filha, Angelina (1888-1973), que seria também pintora, como os pais. Como já era casado e tinha uma filha legítima, Laura, ele não podia formalizar a união com a jovem companheira, que fora deserdada e expulsa da família tradicional e escravocrata de que provinha.

Mas isso não era tudo: em fevereiro daquele histórico ano, um crime ocorrido em local distante da Corte (em Itapira, na província de São Paulo) repercutira nos círculos abolicionistas de todo o país. Um delegado de polícia fora assassinado por um grupo de fazendeiros locais, por ter ajudado na fuga de escravos. Agostini enviou gente da “Revista Illustrada” até o interior paulista, para esclarecer o mistério que os assassinos queriam abafar. Deu grande divulgação ao fato, inclusive usando seu lápis para retratar um por um os criminosos – como conta em seu livro Joaquim Firmino, o Mártir da Abolição o pesquisador Jácomo Mandatto.

O resultado foi que o artista, já marginalizado pela sociedade carioca, começou também a ser perseguido e ameaçado de morte e, pela primeira vez desde que se estabelecera no Brasil, viu-se confrontado com a necessidade de buscar refúgio, para si e para a nova família, em um país europeu. Infelizmente esse período de grande sofrimento moral teve prosseguimento também na Europa – onde, em curto espaço de tempo, ele perdeu um filho com poucos meses e logo depois também sua amada Abigail, ambos vitimados pela tuberculose.

Permaneceu na França até meados de 1894, quando regressou ao Rio trazendo a filha pequena. Retomou sua vida, vendeu sua parte na revista, que continuaria, porém, a publicar esporadicamente seus trabalhos até a edição final, em 1898. Agostini funda então a revista “Don Quixote”, que contou sempre com a colaboração dos melhores artistas, escritores e intelectuais do país. Trabalharia também em publicações de caráter mais popular, como “O Malho”, e em 1905 integraria a equipe fundadora de uma revista infantil que acabou fazendo história, “O Tico-Tico”.

 

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