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Como sobreviver no parque?
Lei ambiental leva comunidade paranaense a buscar alternativas de trabalho e renda
JULIANA BORGES
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Depois de três horas roncando em ritmo lento e constante, o motor para e o barco atraca ao lado de um alto píer de madeira. A partir desse momento o silêncio reina na pequena baía de águas tranquilas. A noite que acaba de cair só deixa ver a silhueta da montanha de pouca altura que emoldura a paisagem. Outros dois pontos de luz – um bar que fica logo em frente do píer, feito de tijolos, com chão de terra batida, mesa de sinuca e enormes caixas de som, e uma construção nova de alvenaria com largas janelas e um terraço ao redor – permitem ver um pouco além: duas pequenas canoas coloridas atracadas, um gramado que chega até junto da água e um campinho de futebol.
Uma trilha que sai do píer passa em frente ao bar, margeia a construção iluminada, corta ao meio o campo de futebol e leva a um largo com algumas casas e uma igrejinha. Cada morada é iluminada por uma ou duas lâmpadas alimentadas por painéis solares individuais. O caminho entra pela mata escura, paralelo ao mar, levando até mais algumas casas. Em cerca de dez minutos de caminhada é possível percorrer de ponta a ponta toda a comunidade de Barbados, no município de Guaraqueçaba, no litoral do Paraná. No total, 15 famílias de pescadores vivem ali.
Na manhã seguinte, a luz do dia revela uma parte da bela paisagem que a noite escondeu: um pequeno riacho, um enorme manguezal em ambos os lados e, na parte de trás, mata atlântica fechada. Vez ou outra é possível observar golfinhos nadando próximo à margem. Foram essas mesmas belezas naturais que, no fim do século 19, atraíram para Barbados o pintor suíço William Michaud, que tem parte de suas obras expostas no Museu de Vevey, sua cidade natal, e no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. Ele construiu uma grande casa de pedras (hoje em ruínas), teve 11 filhos e permaneceu ali até sua morte, em 1902.
Os mesmos atrativos naturais que fizeram o ilustre morador estrangeiro se fixar por essas paragens e que enchem os moradores de Barbados de orgulho acabaram por dificultar a vida destes últimos: desde que a região se tornou parte do Parque Nacional do Superagui, criado em 1989, a legislação ambiental impôs uma série de restrições à pesca e à agricultura, prejudicando a rotina das famílias. Impedidos de sobreviver como seus antepassados – da terra e do mar –, os moradores de Barbados começam a vislumbrar uma alternativa de renda: o turismo comunitário. Com tantas belezas naturais, uma história rica e hábitos tradicionais caiçaras preservados, trata-se de uma iniciativa com bom potencial – mas que para se desenvolver precisa ainda percorrer um longo caminho.
Gestão coletiva
O turismo de base comunitária é uma modalidade desenvolvida pelos próprios moradores de um lugar, a partir de gestão coletiva, com transparência no uso e na destinação dos recursos e na qual a principal atração é o modo de vida da população local. “Nesse tipo de turismo, a comunidade é proprietária dos empreendimentos turísticos e há preocupação em minimizar o impacto ambiental e fortalecer ações de conservação da natureza”, diz Cecilia Zanotti, fundadora da organização social Projeto Bagagem, que trabalha para desenvolver essa atividade em diferentes localidades do Brasil. “É a única forma de turismo possível em uma área de preservação permanente, como Barbados.”
De acordo com a legislação ambiental do país, nenhuma área de proteção integral pode sofrer qualquer tipo de interferência humana. Além disso, deve ser gerida segundo orientação do plano de manejo, um documento técnico elaborado pelos órgãos ambientais que estabelece as normas para seu uso e a exploração dos recursos naturais. No entanto, assim como acontece na maioria das unidades de conservação brasileiras, passadas quase duas décadas, o plano de manejo do Parque Nacional do Superagui ainda não ficou pronto. Enquanto essa pendência não é resolvida, os poucos funcionários do Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que fiscalizam a área impõem, em nome da preservação ambiental, uma série de restrições aos moradores: é proibido pescar grandes quantidades de peixe ou camarão, fazer qualquer tipo de roça ou caçar. Para quem vive numa comunidade pequena, sem rede elétrica, sem comércio, com apenas uma escolinha de ensino básico e a algumas horas de barco motorizado de qualquer cidade, essas são praticamente as únicas atividades de subsistência possíveis. “Aqui vivemos bem, mas somos atrapalhados pelas autoridades”, diz Nilze Maia, de 54 anos. Desde criança, ela foi acostumada a roçar mandioca, colher, lavar, descascar, cozinhar e preparar a farinha. “É assim que vivo desde sempre”, diz ela. “Agora, só podemos ter a roça se for escondido dos fiscais. Se eles pegam, destroem tudo.”
Engajamento
Para o turismo comunitário funcionar, é essencial o engajamento de todos os moradores e o desenvolvimento de lideranças. “Esse é um dos principais desafios”, diz Cecilia, do Projeto Bagagem. A Associação de Moradores de Barbados existe há 15 anos, mas somente agora conseguiu se organizar para realizar as primeiras ações práticas. A grande casa de alvenaria que fica próximo ao píer foi uma delas. Com autorização do Ibama e verba do governo do estado, ela foi erguida no ano passado graças à mobilização da entidade e é usada para expor em banners as pinturas de William Michaud, vender artesanato e fazer reuniões.
Também é ali que funciona uma cozinha comunitária, em que parte das moradoras locais serve pastéis de camarão, ostras frescas colhidas nas imediações e bebidas geladas aos poucos turistas que chegam ao lugar para passar o dia durante a temporada. Ao contrário de localidades próximas, como a ilha do Mel e a comunidade de Superagui, não existem linhas regulares de barco de Paranaguá – a cidade grande mais próxima – até Barbados. As poucas pessoas que chegam vêm em barcos próprios ou fretados. “Movimento mesmo só acontece em feriados prolongados, como o carnaval”, diz a professora Rosália Michaud, que trabalha também na cozinha comunitária e, como o sobrenome já diz, é descendente do ilustre morador suíço. “Mas pelo menos já é uma renda a mais que temos.” Rosália é a professora da comunidade. Em uma única sala de aula, ela ensina alunos do primeiro ao quarto ano. Uma vez por semana vai até Guaraqueçaba, onde ainda cursa pedagogia.
Outra ação concretizada em caráter coletivo foi um mutirão, incentivado pelo Projeto Bagagem, para melhorar as condições da trilha que cruza a comunidade de ponta a ponta, de modo a facilitar o deslocamento dos próprios moradores e dos visitantes. “Construímos pequenas pontes e calçamos as partes que acumulavam lama”, diz Jonathan da Costa Silva. Mais conhecido como Jonas, ele ocupou a presidência da associação de moradores até fevereiro deste ano. “O trabalho parece simples, mas só foi possível porque fizemos em conjunto.”
Além do centro comunitário, não existe nenhuma outra infraestrutura destinada especialmente à recepção de turistas. E é aí que talvez esteja um dos maiores atrativos da comunidade: o estilo de vida tradicional de seus moradores. Os programas oferecidos em Barbados são os mais simples que se possam imaginar: andar de canoa pelo mangue junto com pescadores para colher ostras e caranguejos, acompanhar as mulheres no processo de fabricação de farinha de mandioca ou simplesmente apreciar a paisagem e tomar um banho de mar em frente ao píer. “É cada vez mais difícil conhecer lugares que ainda não foram ‘contaminados’ pela exploração turística e transformados pelo estilo da vida moderna”, diz o professor de biologia Carlos Godoy, que passou três dias em Barbados. Ele integrou o primeiro grupo levado pelo Projeto Bagagem àquela comunidade, no início do ano. O professor, que já teve uma agência de ecoturismo e conhece boa parte do Brasil, sempre fica hospedado em hotéis, pousadas ou alojamentos feitos exclusivamente para turistas. Em Barbados foi diferente. A única forma de pernoitar na vila é alojar-se em uma das casas de moradores. “Foi uma experiência muito intensa. Participar do dia a dia de uma família era algo que eu nunca havia feito, e acabei conhecendo um lado humano que costuma ficar de fora em viagens mais tradicionais”, diz.
Todos os visitantes pagam o mesmo valor pela hospedagem, e quem faz a distribuição dos turistas é a própria associação de moradores. As refeições também são feitas na casa que os acolhe. As famílias que não recebem hóspedes são convidadas a prestar outros tipos de serviço, como o aluguel de embarcações para passeios nas imediações. “Dessa forma, todos saem beneficiados de alguma forma”, diz Jonas. Dona Leontina, que vive na casa mais distante da comunidade – o acesso só é feito de canoa –, vende grandes garrafas do mel que é produzido em seu jardim.
Uma das moradoras a receber o primeiro grupo do Projeto Bagagem foi Celi Maia, de 34 anos. Ela vive com o marido, Leonésio, e dois de seus três filhos numa pequena casa de madeira, suspensa cerca de meio metro do chão por um emaranhado de vigas. O banheiro fica numa construção à parte, em frente à casa. No interior, um pôster de Leandro e Leonardo e muitas bonecas penduradas na parede dividem espaço na sala com uma cômoda sobre a qual ficam duas enormes caixas de som, alimentadas pelo painel solar instalado há cerca de cinco anos. Lençóis estampados fazem as vezes de cortina e de divisória entre a sala e os dois quartos. Na cozinha, a água da pia, que vem diretamente do riacho ao lado, corre ininterruptamente. Também chama a atenção o fato de não haver geladeira. “O painel solar só aguenta uma ou duas lâmpadas”, diz Celi. À noite, para amenizar o calor do verão, as janelas ficam totalmente abertas e, para espantar os mosquitos, “boa noite”, como as espirais são ali chamadas. A casa tem vista para o mar, que sobe e desce tanto todos os dias que as crianças não dizem tomar banho de mar, mas sim de maré, o que só é possível quando ela está alta. Com o mar baixo, a baía vira um grande pântano, devido ao fato de o terreno ser muito plano.
Celi foi também uma das mulheres que levou os visitantes até a casa comunitária onde a farinha de mandioca é preparada. No salão de terra batida, ficam uma prensa, um moedor manual em forma de roda e um grande tacho para secar e torrar os grãos. Em tempos idos, o forno era usado durante o ano todo, sempre coletivamente. Agora, que não é mais permitido plantar, ele raramente funciona. “Temos de comprar mandioca fora ou então usar a pouca que plantamos no mato”, diz ela. “Mas dá muito trabalho para fazer só um pouco.”
Mutirão e festa
Outra atividade que os moradores de Barbados preparam para os visitantes é um baile de fandango, dança tradicional relacionada à cultura caiçara da faixa entre Rio de Janeiro e Paraná. Segundo Mário de Andrade, o fandango teve origem na Espanha, de onde chegou ao Brasil através de Portugal. Aqui o folguedo ganhou variações, de acordo com a região: no Rio Grande do Sul, tem acompanhamento de sanfona e às vezes de castanholas; no nordeste, é uma dramatização da luta entre cristãos e mouros (também conhecida por “chegança” ou “nau catarineta”); em São Paulo e no Paraná representa as danças de salão e os sapateados marcados pela viola branca. Há também outras hipóteses sobre as origens dessa tradição, que sugerem inclusive um fluxo inverso, ou seja, com berço na América e posterior divulgação em solo espanhol.
Em Barbados, a festa acontece à noite, dentro de um bar com piso de cimento e paredes de madeira pintada de verde e azul. Munidos de uma rabeca e uma viola, os dois “fandangueiros” vêm de uma comunidade próxima e saúdam os convidados antes de a música começar: “Com licença minha gente, boa noite para todos. Sou Agostinho Rosa Pereira, presidente da associação dos moradores do Sigui”, apresenta-se o mais jovem, que está acompanhado do irmão Randolfo. Pereira explica que o fandango é uma tradição caiçara que já tem mais de 200 anos e está associada ao trabalho de mutirão. “Quando alguém precisava fazer uma roçada, convidava toda a comunidade para participar. Aquele que fazia o convite era o patrão. E o patrão pagava esse trabalho com comida e cachaça”, diz o músico. “Depois do trabalho, todos se juntavam para tocar. E foi assim, como o divertimento da época, que nasceu o fandango.”
Após a breve apresentação, o som da rabeca irrompe pelo salão. O instrumento foi construído pelo próprio Randolfo, que aprendeu a arte com o pai. Os dois fandangueiros e alguns moradores formam uma roda, e a festa entra noite adentro. Alguns dos mais velhos acompanham a letra e arriscam passos. Para os mais jovens, aquela apresentação de música caiçara é novidade tanto quanto para os visitantes que estão ali pela primeira vez. Os adolescentes estão mais acostumados a ouvir pagode, música sertaneja, brega e o que mais estiver na moda. Entre uma dança e outra, Jonas explica que os artistas vieram de fora porque em Barbados já não há mais ninguém que saiba conduzir o fandango e confeccionar os instrumentos. “A tradição foi se perdendo aos poucos”, conta ele.
Segundo Beatriz Cabral, responsável pelo Projeto Bagagem no Paraná, o desenvolvimento do turismo comunitário, além de ser uma alternativa de renda para os moradores de Barbados e de outras comunidades tradicionais da região, pode desempenhar um outro papel importante, ao fortalecer a cultura caiçara. “O fato de visitantes que vêm de fora valorizarem um aspecto da cultura tradicional acaba levando os próprios moradores a conhecer melhor algo que já lhes pertence há muito tempo e a apropriar-se disso.”
Paraíso protegido
Os primeiros habitantes de que se tem registro na região de Barbados são tribos indígenas de origem tupi-guarani. Foram eles que batizaram a área de “Superagui”, que significa “sereia” ou “rainha dos peixes”. Entretanto, ainda pairam dúvidas sobre a real etnia dos índios: enquanto alguns especialistas afirmam que a região foi povoada por carijós, outros creditam a ocupação aos tupiniquins.
O primeiro português a aportar na região foi Gonçalo Coelho, em 1501, quando, a mando do rei de Portugal, comandou uma expedição com o objetivo de explorar a costa do continente recém-descoberto. Em 1531, Martim Afonso de Sousa chegou também a Cananeia, Iguape, Paranaguá e Superagui, trazendo a primeira expedição colonizadora. O que aconteceu após a vinda dos portugueses não foi muito diferente do que se passou em boa parte do território brasileiro: as populações indígenas foram pouco a pouco sendo dizimadas pelos colonizadores europeus até desaparecerem quase completamente.
Alguns séculos mais tarde, em 1852, foi fundada na península de Superagui uma colônia agrícola suíça. Um empreendedor de nome Carlos Perret Gentil custeou a instalação de dez famílias suíças, cinco francesas e duas alemãs, num total de 85 pessoas – William Michaud pertencia a uma delas. A ilha do Superagui foi usada para a plantação de café, uva, arroz e banana.
A primeira iniciativa concreta para proteger o local nasceu na década de 1970, quando a ilha do Superagui foi inscrita como Patrimônio Natural e Histórico pela Divisão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná. Quinze anos depois, uma empresa do ramo agropecuário, a Companhia Agropastoril Litorânea do Paraná, tentou tomar posse da área para criar búfalos e construir um polo turístico. O empreendimento foi, porém, barrado pelo poder público e, em 1989, foi instituído o Parque Nacional do Superagui. Dez anos depois, novos territórios foram incorporados e a unidade de conservação chegou ao tamanho que tem hoje: 34 mil hectares. Várias espécies animais, algumas delas raras ou ameaçadas de extinção, como o chauá, o papagaio-de-cara-roxa, o mico-leão-de-cara-preta e o jacaré-de-papo-amarelo, vivem dentro de seus limites.