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Banda larga: briga de gente grande
Governo quer ampliar acesso à internet, mas há muitos interesses em jogo
CARLOS JULIANO BARROS
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Não há quem ouse questionar o papel vital que a internet desempenha na época atual – a chamada “era da informação e do conhecimento”. A importância dessa ferramenta no cotidiano dos brasileiros é indiscutível: não só encabeçamos o ranking dos usuários de redes virtuais de relacionamento como aparecemos entre os que passam mais tempo navegando pela web. Em média, os 64 milhões de internautas espalhados pelo país ficam conectados à rede por 30 horas e 13 minutos mensais, seja em sua própria casa, em telecentros ou em lan houses. Entretanto, como nem poderia deixar de ser, a utilização da internet no Brasil ainda é limitada a classes e regiões privilegiadas. Quando se fala de banda larga, então, o quadro é ainda mais restrito. De acordo com dados levantados pelo Ministério das Comunicações, a cada cem habitantes, apenas 5,2 recorriam à internet de alta velocidade em dezembro de 2008. Só o estado de São Paulo, a mais rica unidade da federação, concentra 40% de todos os acessos de banda larga no país. Nesse quesito, apesar da economia muito mais pujante, o Brasil ainda fica atrás de Argentina, Chile, México e Turquia.
Para correr atrás do tempo perdido, o governo federal lançou em maio deste ano o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Trata-se de um amplo leque de metas que pretende levar internet de alta velocidade a pelo menos 40 milhões de domicílios até 2014 – o que multiplicará por mais de três a atual cobertura. Para cumprir essa ambiciosa missão, o programa compreende diversos tipos de ação, como o fomento à pesquisa e à indústria nacional. Com esse objetivo, estão previstas desonerações fiscais da ordem de R$ 785 milhões, destinadas a baratear equipamentos, como placas de modem, e atrair novos prestadores de serviços para esse mercado. “O plano é necessário. Acho até que tardiamente o governo resolveu pegar esse touro à unha. A banda larga tem hoje e terá cada vez mais uma importância similar ao programa rodoviário dos anos 1950, tanto do ponto de vista econômico como cultural”, compara Marcos Dantas, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ).
Obviamente, não há ninguém contrário à ideia de ampliar o acesso à banda larga – necessidade mais do que estratégica para o desenvolvimento do país. Porém, algumas diretrizes do PNBL vêm motivando verdadeiras batalhas ideológicas. Sem dúvida, a mais polêmica delas é a disposição do governo federal de utilizar por conta própria uma rede pública com cerca de 30 mil quilômetros de fibras ópticas – que percorrem o país associadas aos dutos de petróleo e às linhas de transmissão elétrica das empresas estatais. Intervindo diretamente no mercado, o intuito é fazer a inclusão digital de uma grande parcela da população que não tem condições de pagar os altos preços cobrados atualmente por esse serviço.
Para gerir essa nada desprezível infraestrutura de fibra óptica, o governo decidiu ressuscitar a Telebrás, esvaziada com a privatização do sistema nacional de telecomunicações, no final da década de 1990. Entre 2010 e 2014, a empresa deverá ser capitalizada com vultosos R$ 3,22 bilhões. A estatal, por sua vez, pretende vender internet no “atacado” a preços menores que os praticados atualmente pelas “teles” – as grandes concessionárias, como Oi, Telefônica e Embratel –, que passaram a controlar a espinha dorsal do sistema de telecomunicações após a privatização. “Ao oferecer um preço menor, levaremos os outros concorrentes a baixar o seu também, para não deixar de vender. Hoje eles não fazem isso porque estão sozinhos”, disse Rogério Santanna, pouco antes de assumir a presidência da Telebrás.
A ideia é aumentar a concorrência mediante o estímulo ao surgimento de pequenos e médios provedores que se encarregarão da “última milha”, a venda propriamente dita ao cliente final. As administrações estaduais e municipais também deverão integrar essa rede. Oferecendo internet no atacado a preços menores, o governo federal espera que esses novos provedores consigam disponibilizar no varejo a conexão mínima de 512 Kbps ao valor-teto mensal de R$ 35 – bem abaixo do praticado hoje no mercado. Além disso, não está totalmente descartada a hipótese de a própria Telebrás oferecer internet diretamente aos consumidores das localidades onde não haja empresas interessadas em fazer a última milha. Porém, apesar do preço mais em conta, essa velocidade ainda deixa muito a desejar: em alguns países, nem mesmo é considerada banda larga.
Os atuais moldes do PNBL e, principalmente, a ressurreição da Telebrás vêm dividindo opiniões. De um lado, estão os que defendem a ideia de que o Estado precisa mesmo intervir diretamente na oferta de internet, por entender que as empresas que atuam nesse mercado não teriam interesse comercial em investir nas localidades com pouca infraestrutura, onde vivem consumidores de baixa renda. “Basicamente, o que se percebe é que não dá para deixar na mão delas”, afirma Estela Guerrini, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
No outro canto do ringue, encontram-se aqueles que acreditam que a iniciativa privada deve assumir a tarefa de massificar a oferta de banda larga a partir de uma política agressiva de incentivos fiscais e de isenção de impostos, que tornaria mais atrativas as regiões menos desenvolvidas. Assim, o governo deveria ainda “alugar” para as empresas a rede de fibras ópticas que será administrada pela Telebrás. “Não existe no Brasil hoje quem tenha mais infraestrutura do que as próprias teles, em volume e em abrangência. A dificuldade é chegar ao cliente final”, argumenta Eduardo Levy, diretor executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil), entidade que reúne as maiores empresas do setor.
O debate foi tão intenso que chegou a provocar uma espécie de racha em Brasília: uma ala do governo, liderada pelo ex-ministro Hélio Costa, que deixou o Ministério das Comunicações para concorrer ao governo de Minas Gerais, entendia que o PNBL deveria ficar nas mãos da iniciativa privada. O governo federal chegou até mesmo a encomendar um orçamento à Oi, que pediu R$ 27 bilhões em incentivos para realizar a tarefa. Diante do valor astronômico da cifra e da perigosa possibilidade de se criar um monopólio, quem levou a melhor nos debates realizados no Planalto foi o grupo articulado pelo Ministério do Planejamento, que defendia maior presença do Estado na ampliação do acesso à banda larga.
Toda essa discussão já começa a gerar desconfiança quanto à viabilidade de as medidas saírem do papel ainda na gestão de Lula. Em 2010, o governo pretende fazer uma espécie de piloto em ao menos cem municípios brasileiros. “Sou muito cético em relação ao plano para este ano. Acho que a melhor coisa que o governo poderia fazer é anunciar um projeto com tudo resolvido para iniciar no ano que vem, qualquer que seja o vencedor das eleições”, pondera o professor Marcos Dantas.
Pouca concorrência
Em abril deste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um amplo estudo sobre o mercado de banda larga no país. De acordo com o órgão, os brasileiros que já acessam internet de alta velocidade comprometem em média 4,58% de sua renda mensal com o pagamento desse serviço. Para efeito de comparação, esse índice cai para 1,68% na Rússia. No Japão, a proporção despenca para 0,5% – sem falar na qualidade e na velocidade muito superiores. Na avaliação dos técnicos do Ipea, três fatores contribuem para elevar o preço e restringir o acesso à banda larga no Brasil: a baixa renda da população como um todo, a elevada carga tributária que incide sobre equipamentos e serviços e – principalmente – o reduzido número de empresas que oferecem internet rápida no país. Em outras palavras, não há concorrência suficiente para fazer os preços caírem.
Ainda de acordo com o estudo, mais da metade dos 5.565 municípios brasileiros não conta com a infraestrutura necessária. “Alguns estados estão em situação bastante crítica: no Amapá e em Roraima nem mesmo as capitais têm acesso em banda larga. O caso de Amazonas, Maranhão, Pará, Paraíba e Piauí também é preocupante, com penetração de banda larga em menos de 10% de seus municípios”, informa o texto da pesquisa. Para agravar a situação, na esmagadora maioria das cidades brasileiras há apenas uma fornecedora desse tipo de serviço. “Segundo um estudo da NET, só existe concorrência em 184 cidades. Em 2.135 municípios, a situação é de uma empresa monopolista. Nas outras localidades, ninguém tem interesse em fornecer nada. Está mais que claro que o mercado sozinho não vai resolver esse problema. O governo vai entrar para trazer a concorrência onde não há”, argumenta Santanna.
Não é difícil entender por que praticamente inexiste competição nesse segmento. Atualmente, os provedores que desejam oferecer internet ao consumidor precisam pagar às grandes concessionárias para ter acesso à espinha dorsal do sistema e, então, fazer a ponte com o cliente final – a última milha. “Porém, essas mesmas concessionárias também são operadoras – quer dizer, fornecem o serviço diretamente ao público – e competem com os provedores menores. A Telefônica não vai vender barato para o pequeno provedor do interior de São Paulo porque está disputando mercado com ele. Essa falta de competição no atacado encarece o preço da internet para o cidadão no final”, explica Jonas Valente, do conselho diretor da ONG Intervozes, especializada em políticas públicas de comunicação. Na Inglaterra, por exemplo, existe uma clara distinção entre as empresas que administram a rede física e as que fornecem a internet ao consumidor. “É como se a Oi estivesse separada em duas: uma de infraestrutura e outra que iria prestar o serviço diretamente”, exemplifica Valente.
Na verdade, a legislação brasileira já prevê instrumentos para reverter essa concentração. Para entender essa história, porém, é preciso recordar o processo de privatização levado a cabo em 1998. Naquela oportunidade, foi criada a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a quem caberia regular a atividade das concessionárias que herdaram a rede que pertencia ao Estado. Para organizar o novo sistema, foi aprovada a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), no corpo da qual já estava prevista a possibilidade de fazer a chamada “desagregação de rede”. Trata-se de um instrumento destinado a garantir o acesso de novos concorrentes à infraestrutura controlada pelas grandes concessionárias. “Isso quer dizer que elas não só abririam sua rede, mas fariam isso cobrando um preço justo, estabelecido pela Anatel. Só que a Anatel até hoje não fez isso, mesmo constando essa possibilidade na LGT”, critica Estela Guerrini, do Idec.
Por outro lado, o diretor executivo do Sinditelebrasil sustenta que o governo não deveria entrar no mercado para concorrer com as empresas privadas, mas concentrar-se principalmente na concessão de incentivos fiscais para reduzir o preço do serviço, incluindo assim mais clientes. “Se queremos fazer um plano, não podemos ter uma cadeia de impostos que é considerada a segunda maior do mundo e que onera em mais da metade o valor do custo para a população”, afirma Levy. Segundo a entidade que reúne as teles, as empresas já investiram cerca de R$ 180 bilhões em suas redes desde a privatização e vêm trabalhando para expandir sua área de atuação. “Não é possível, porém, ter preços iguais para todo o Brasil. Em lugares onde é mais caro [investir] e onde o povo é mais sofrido, talvez seja necessário um incentivo. E este vem das ações do governo”, completa Levy.
Serviço essencial
Outra discussão importantíssima referente ao PNBL, mas que não está no centro dos holofotes, diz respeito ao tipo de regime jurídico a que estará sujeita a oferta de banda larga no país. A Lei Geral de Telecomunicações prevê duas possibilidades: público ou privado. Quando um serviço é enquadrado no regime público, deve ser compreendido como algo essencial para o cotidiano dos cidadãos, como a água encanada ou a energia elétrica. Atualmente, na área de telecomunicações, apenas a telefonia fixa se encaixa nessa categoria.
Na prática, o regime público possibilita um controle maior do Estado e traz mais obrigações para as concessionárias responsáveis. Talvez a mais importante delas seja a exigência de universalização – e não apenas de massificação. Em outras palavras: proporcionar a todos os cidadãos o direito de acessar. Além disso, as empresas privadas que assumem a missão de prestar o serviço precisam garantir atendimento ininterrupto. E, por fim, existe um maior controle tarifário por parte do governo federal, que não deixa os preços serem regulados ao sabor do mercado. “É fundamental que se tenha esse serviço prestado em regime público. Até porque é uma questão de coerência. Se a telefonia fixa foi essencial no século 20, a banda larga vai ser – e já é – no século 21”, afirma Jonas Valente. “É preciso construir um conjunto de políticas para garantir a universalização e estabelecer metas de qualidade”, completa.
Entretanto, pelo menos a princípio, o Planalto descarta a ideia de colocar a banda larga no regime público. Em primeiro lugar, porque isso dependeria de uma mudança mais complexa na legislação, que não seria possível do dia para a noite – e o governo tem pressa. “Além disso, não é o regime que garante a universalização, mas o fato de haver regras de natureza regulatória que estimulem a competição”, afirma Rogério Santanna. A opinião é partilhada pelas grandes empresas do segmento. “Tudo o que é feito em regime privado traz uma liberdade de execução maior, além de liberdade tarifária”, declara Eduardo Levy, do Sinditelebrasil. Ambos coincidem na avaliação de que a rápida popularização dos celulares – cujo número em uma década já superou em mais de quatro vezes o de linhas de telefone fixo – seria um exemplo da maior agilidade do regime privado em atender à população.
Existem aí, no entanto, algumas importantes ressalvas a fazer. Na opinião de Estela Guerrini, do Idec, o regime público não conseguiu universalizar a telefonia fixa porque não foi aplicado corretamente. “Todas as operadoras cobram uma assinatura básica de R$ 40 por mês. Isso não é universalização. A estrutura até está disponível no Brasil inteiro, mas há muitas linhas ociosas porque as pessoas não têm condições de pagar”, afirma a advogada. Além disso, apesar de o número de celulares já ter chegado à casa dos 100 milhões, quase 90% deles são aparelhos pré-pagos. Isso sem mencionar que a tarifa praticada no Brasil é a segunda mais cara do mundo. “Já temos a experiência de que a telefonia fixa não chega à população. E, no caso do celular, quando ele chega, o povo não fala. É o típico celular pai de santo: só recebe”, confirma Jonas Valente.
Outro argumento a favor do regime público para a banda larga é a possibilidade de utilizar recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) para custear a ampliação da internet de alta velocidade no país. Esse fundo, composto por tributos recolhidos pelas empresas privadas que atuam no segmento, foi criado originalmente para pagar uma espécie de “bolsa-telefone” para aqueles que não tivessem condições de bancar a assinatura básica cobrada pelas operadoras. Por lei, o Fust só pode ser gasto em serviços enquadrados no regime público, garantindo que de fato sejam universalizados, chegando a todos os domicílios brasileiros. No entanto, o dinheiro arrecadado desde o final da década de 1990 até hoje jamais foi usado com essa finalidade.
Justiça
O iminente ingresso da Telebrás no mercado de banda larga desagradou e muito às teles, cujo poder de fogo não é nada desprezível. Tanto é que as empresas já ameaçam entrar na Justiça contra o PNBL. Os principais pontos de discussão giram em torno da possibilidade de a Telebrás gerir a rede estatal de banda larga e, principalmente, fornecer internet direto aos consumidores. Na avaliação das grandes concessionárias, isso representa uma quebra do compromisso firmado no momento da privatização do sistema, em 1998. E, para proceder dessa forma, o governo precisaria inclusive aprovar uma nova lei no Congresso Nacional.
Apesar de apoiar a intervenção estatal para a popularização da banda larga, o professor Marcos Dantas também reconhece que ainda existe um vácuo jurídico. “Não há lei que dê abrigo a isso. As empresas particulares vão se sentir prejudicadas e entrar na Justiça. Ocorrerá uma briga judicial de qualquer maneira: mesmo que os representantes da iniciativa privada não tenham razão, eles vão disputar”, analisa. Brigas à parte, o fato é que a execução do PNBL ficará a cargo da gestão daquele que levar a melhor nas próximas eleições presidenciais – o que não impede que a expansão da banda larga seja entendida, sem sombra de dúvida, como uma política de Estado necessária, de longo prazo, e que não pode ficar à mercê do humor dos políticos e dos empresários brasileiros.