Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Não há vacina contra erro médico

Falhas em procedimentos mostram necessidade de aprimorar prevenção

LÚCIA NASCIMENTO


Sírio-Libanês: referência na busca de
segurança / Foto: Célia Thomé

Em dezembro de 1998, o operário Alcides Genari procurou o Hospital Montreal, na cidade de Osasco (SP), com dores na região torácica. Recebeu o diagnóstico de dor muscular – a médica prescreveu um remédio e o mandou de volta ao trabalho. Depois de uma hora, o operário morreu vítima de infarto fulminante. A história poderia acabar aqui e ser mais uma entre as que ocorrem todos os dias Brasil afora, mas a família de Alcides deu entrada em uma ação judicial contra os responsáveis.

Doze anos se passaram e em abril deste ano uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou o hospital a pagar R$ 70 mil por danos morais e uma pensão mensal até a data em que a vítima faria 65 anos. Demorou, mas a justiça foi feita – e da maneira que deve ser o padrão nos próximos anos: responsabilizando não apenas o médico, mas o hospital ou a organização que o tenha contratado.

Pode parecer pouco, mas a mudança de foco do médico para a relação entre ele e o hospital implica transformações valiosas. A partir do momento em que a responsabilidade é solidária, os estabelecimentos de saúde devem passar a incentivar práticas de segurança ao paciente que hoje acabam sendo deixadas de lado por questões econômicas. Até mesmo a nomenclatura tem mudado, progressivamente, de “erro médico” para “evento adverso”.

“Nas últimas duas décadas, passou-se a reconhecer que a prestação de serviços na área da saúde depende de interações entre pessoas, materiais, medicamentos, equipamentos e instalações”, esclarece o psiquiatra e especialista em avaliação de organizações e sistemas de saúde Antonio Quinto Neto, em seu artigo “A Responsabilidade Corporativa dos Gestores em Relação à Segurança do Paciente”, publicado no final do ano passado.

O autor afirma que, até pouco tempo atrás, “preponderava a concepção de que falhas e incidentes médico-assistenciais decorriam basicamente da ação de um ou mais profissionais (quase exclusivamente médicos), que, por princípio, deveriam ser identificados e punidos. A suposição era de que o castigo reduziria a incidência desses fenômenos. Essa mentalidade [...] tem se mostrado de efeito limitado à medida que aumenta a complexidade das ações médico-assistenciais”. Quando a responsabilidade é solidária, cresce a preocupação de todos os elos do atendimento para que o resultado seja positivo. Surge a necessidade de unir forças para prevenir erros.

Trabalho em conjunto

Prova disso é que a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou a Aliança Mundial para a Segurança do Paciente, em 2004, indicando práticas que devem ser seguidas pelos hospitais – públicos e privados – para evitar eventos adversos. Por meio desse programa, o organismo tem atuado com prestadores de serviços de saúde em todo o mundo e feito levantamentos para identificar problemas.

Em um relatório divulgado há dois anos, a OMS enumerou os casos de evento adverso mais frequentes na Austrália. Em terceiro lugar na lista ficou a falta de diagnóstico ou a investigação incorreta e tardia em casos de doenças isquêmicas do coração – algo muito semelhante à história do operário Alcides, do início desta reportagem. O levantamento deu destaque ainda a casos relacionados à falta de comunicação entre profissionais e pacientes e a cirurgias em locais errados do corpo.

Não sem motivo, estas são algumas das seis metas estabelecidas pela Aliança Mundial para a Segurança do Paciente: a identificação correta de quem será internado; a comunicação efetiva; a atenção a medicamentos de alta vigilância; a cirurgia ou procedimento certo, no local certo, no paciente certo; a redução do risco de infecções hospitalares e a redução do risco de lesão decorrente de queda.

Hospitais que trabalham com esses objetivos podem reduzir os casos de erro e, de quebra, receber certificação internacional. É o caso do Sírio-Libanês, em São Paulo. Para diminuir infecções, por exemplo, o hospital fez campanhas de incentivo à higienização das mãos entre colaboradores, médicos, familiares, visitantes e pacientes. Desde 1850 a ligação entre transmissão de infecções e higiene das mãos já está estabelecida, mas até hoje não se deu a devida importância à situação em muitos locais. Só os Estados Unidos gastam cerca de US$ 8 bilhões por ano para tratar infecções que deveriam ter sido evitadas. Na Europa, estima-se que entre 2 e 3 milhões de pessoas são afetadas anualmente por contaminação ocorrida no âmbito hospitalar.

Segundo Sandra Cristine da Silva, coordenadora de Qualidade, e Vera Borrasca, coordenadora da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar e Risco do Sírio-Libanês, mensalmente são realizados o monitoramento dos eventos relacionados ao processo e o planejamento das ações de melhoria. Outra medida adotada pela instituição foi padronizar o uso de pulseiras com código de barras e cores diferentes para pacientes internados e externos, facilitando a identificação.

Falhas evitáveis

Afinal, há problemas que dependem da atenção à identificação para não ocorrer. A história de Maria Gonçalves, hoje com 58 anos, é um exemplo. Após dar à luz num hospital público do centro do Rio de Janeiro pôde ouvir o primeiro choro da recém-nascida e, ao vê-la, notou que não tinha cabelos. Também foi informada de seu peso: 2,4 quilos. Horas depois, quando chegou para a amamentação, era outro bebê: tinha 3 quilos, cor de pele diferente, bastante cabelo.

“O quarto era coletivo e vi minha filha sendo entregue a outra mulher”, lembra. “Disse que não amamentaria uma criança que não a minha, e alertei a outra mãe, mas ninguém parecia perceber a troca.” A situação se repetiu até que o médico responsável pelos partos, feitos com poucas horas de diferença, foi chamado. “Naquela época não fizeram exames, só identificaram o erro pelo peso e cor de pele dos bebês. Imagine se as duas tivessem nascido do mesmo tamanho? Eu teria trazido a filha errada para casa”, afirma.

Segundo a coordenadora do programa da OMS, Itziar Larizgoitia, em entrevista concedida ao “Informe ENSP”, da Escola Nacional de Saúde Pública, órgão da Fiocruz, “falta identificar as causas latentes dos eventos adversos, porque muitas vezes são problemas que podemos modificar facilmente ou que têm solução simples”. Troca de bebês é um exemplo clássico de erro mais do que evitável, e qualquer ação com esse objetivo é bem-vinda.

Por essas e outras é vital implementar diretrizes de segurança. “É preciso entender a importância dessas diretrizes para criar o hábito de executá-las. Identificar os eventos adversos que acontecem, investigá-los, analisar as causas e propor ações que minimizem ou eliminem os riscos de recorrência é fundamental para a segurança nos hospitais”, afirma Anna Margherita Bork, diretora executiva de Prática Assistencial, Qualidade e Segurança do Paciente do Hospital Israelita Albert Einstein, que, como o Sírio-Libanês, possui acreditação internacional.

Falta preparo

Por vezes, mesmo com todos os cuidados tomados, problemas acontecem. Essa é uma verdade inevitável e que precisa ser encarada por todos os pacientes: os médicos podem errar mesmo quando a estrutura hospitalar está completa e não falta comunicação. Entretanto, casos assim são mais raros. Porque bons profissionais, quando falham, fazem de tudo para amenizar ou reverter o quadro – e explicam ao paciente o que ocorreu. O que distingue os bons dos maus é a quantidade e a gravidade dos erros.

Os piores casos acontecem quando o profissional não tem preparo técnico ou emocional para o que está fazendo, porque nessa condição as falhas não aparecem em um momento isolado, mas repetidamente. “A questão é multifatorial e a má formação técnica é causa de eventos adversos”, esclarece Mauro Aranha, diretor primeiro-secretário do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).

Isso acontece, completa o diretor, “ou porque o aluno estudou em uma faculdade deficitária, ou porque ainda há carência de residências médicas no país. Então ele pode até ter feito uma boa escola, mas não teve treinamento adequado em nenhuma especialidade. O ruim é que essa situação interessa a donos de faculdades e a alguns planos de saúde, porque com médicos mal formados as companhias têm argumento para remunerá-los mal”.

Basta conferir o valor das mensalidades das escolas de medicina, que chega a mais de R$ 3 mil, para entender quem lucra com a situação. Para se ter ideia, na década de 1990 eram 80 as faculdades em funcionamento. Em 2008, chegamos a 175, mais que o dobro, segundo informações do Ministério da Educação (MEC). No outro lado da cadeia, há um total descompasso com os pagamentos efetuados pelos planos de saúde. “Em Minas Gerais, a maioria dos convênios remunera em R$ 30 os profissionais que atendem em consultório. Se o retorno do paciente ocorrer antes de 30 dias, esse valor passa a ser de R$ 15 ou R$ 7,50. Isso afeta principalmente os pediatras, já que nesse caso o retorno é frequente. A consequência? Não há pediatras suficientes”, esclarece João Batista Gomes Soares, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais (CRMMG).

De qualquer modo, de acordo com o que estabelece o Código de Defesa do Consumidor, não só os médicos e hospitais, mas também os planos de saúde, podem ser alvo de processos, como explica a advogada Célia Destri, fundadora da Associação das Vítimas de Erros Médicos (Avermes), com sede no Rio de Janeiro. Apesar disso, dados do Cremesp de 2006 mostram que as operadoras de planos de saúde representavam apenas 8% dos réus em processos de erro médico no estado de São Paulo.

Busca de justiça

Quando falham médicos, gestores e a comunicação entre os elos, o erro aparece e a única compensação que os pacientes podem ter é material. Para isso, precisam dar entrada em um processo na Justiça. Embora a decisão seja demorada, o número de ações não para de crescer. Entre 2002 e 2008, a quantidade que chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) – última instância de julgamento – aumentou 200%. Foram 120 processos em 2002, contra 360 em 2008.

“As pessoas estão mais conscientes de seus direitos, principalmente após a promulgação do Código de Defesa do Consumidor”, diz Célia Destri. Ela mesma foi vítima de um erro médico quando sua ginecologista, em uma cirurgia nos ovários, cortou por engano o ureter. Por causa disso, Célia precisou de nova intervenção: o resultado foram 2,5 litros de urina retirados de seu abdome e um rim perdido. A ginecologista foi processada e perdeu.

Os processos levam tempo para ser concluídos – podendo demandar de dois a mais de dez anos. Para os especialistas, o ideal é entrar com uma ação contra todos os envolvidos. “Na esfera cível, em que as vítimas buscam indenização, é possível processar as pessoas físicas e jurídicas envolvidas no atendimento. Fica a critério do autor da ação definir se ingressará judicialmente contra todos ou não”, explica a advogada Rosmari Elias Camargo, mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Isso só pode ser feito, entretanto, quando o médico possuir vínculo com a organização. Nos casos em que o profissional apenas usa o espaço físico do hospital, sem ser contratado pela instituição, geralmente arca com a culpa sozinho. Em setembro de 2007, por exemplo, um hospital de Santa Catarina contestou uma condenação por responsabilidade solidária e ganhou. Isso porque o cirurgião condenado não prestou qualquer serviço à instituição ou sob suas ordens. Na decisão, esclareceu-se que o fato de receber remuneração pela locação de espaço físico não torna o hospital responsável por danos causados pela imperícia de médicos.

Conversa previne

Mesmo que o paciente receba indenização ao final de um processo, ninguém discorda que o ideal é prevenir erros, mais do que lutar por dinheiro como reparação. Por isso, sistemas como o dos Estados Unidos, em que os valores recebidos por erro médico são milionários, não parecem ser a solução. Para muitos, a conversa franca entre profissionais e pacientes seria uma providência mais adequada, na luta pela redução dos eventos adversos.

“A pessoa vai a um médico e, se sente que foi mal atendida, vai a outro. Só que quem tem vários médicos não tem nenhum. Por isso há a necessidade de vincular profissionais a um grupo de população. Na Inglaterra, existe um projeto-piloto com esse objetivo”, explica João Batista, do CRMMG. As vantagens desse modelo, segundo o profissional, são múltiplas: para o médico, há a confiança dos pacientes – evitando denúncias por casos simples e corrigíveis de erro. Para a população, há a certeza de ser atendido por alguém que conhece seu histórico de saúde e que, por isso, conseguirá avaliar melhor os problemas.

Outra experiência interessante, essa de Portugal, é a tentativa de elaborar um seguro nacional para pagar indenizações em caso de erro médico. A proposta é criar comissões que avaliariam as queixas dos pacientes ou de suas famílias e que teriam o poder de decidir se o doente tem direito ao pagamento de indenização, definindo inclusive seu valor, sem procurar responsabilizar culpados. O governo se encarregaria do pagamento, mesmo antes que médicos e hospitais fossem julgados pela Justiça comum. Assim, não seria preciso esperar muito tempo para receber ajuda após a ocorrência de um evento adverso.

Esses são exemplos de mudança de paradigma que poderiam trazer vantagens na assistência à saúde e mesmo na concessão de indenização às vítimas. Em vez de culpar profissionais pelo erro e esperar que a Justiça assegure algum conforto às vítimas, assumir responsabilidades conjuntamente e providenciar tratamentos e indenizações. Ganham os médicos, a sociedade e os pacientes.


Por que os erros ocorrem

Um médico pode errar de três modos: por negligência (não fez o que deveria), por imprudência (fez o que não deveria) e por imperícia (fez errado). No caso do operário de Osasco citado no início da matéria, de acordo com a conclusão do relator do processo, a médica que o atendeu agiu com negligência (ao não interná-lo, deixando de pesquisar seu histórico clínico e não fazendo os exames necessários), imprudência (ao dispensar o paciente para voltar ao trabalho) e imperícia (ao diagnosticar dor muscular em vez de infarto).

Estudos feitos na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, divulgados em 2004, mostraram que 4% dos pacientes que dão entrada em hospitais sofrem algum tipo de dano. Um levantamento feito pelo cirurgião português José Fragata, autor de livros sobre o tema, estimou que morram cerca de 3 mil pacientes vítimas de erro médico por ano em seu país – um percentual próximo ao verificado pela OMS, segundo a qual 10% dos internados, em todo o mundo, acabam sofrendo por falhas evitáveis.

No Brasil, são escassos os estudos sobre o assunto. Alguns dos principais estão sendo feitos pelo pesquisador Walter Mendes, da Fiocruz. Médico, ele foi subsecretário estadual de Saúde do Rio de Janeiro e diretor do Departamento de Assistência do Ministério da Saúde. Recentemente, divulgou um trabalho em que avaliou três hospitais universitários cariocas. O índice de pacientes vítimas de erro, no período investigado, foi de 7,6%, e dentre esses casos 66,7% poderiam ter sido prevenidos com melhor gestão e estrutura.

Na opinião de Mendes, a própria expressão “erro médico” é equivocada. “O psicólogo inglês James Reason, sempre que teoriza sobre o erro em saúde, enfatiza o papel da organização. Quando leio sobre um ‘erro médico’ não penso em punição, como faz o senso comum, mas em como evitar que se repita”, afirma. Segundo ele, nossos hospitais são geridos de forma amadora, e uma mudança no quadro de eventos adversos depende de alterações no modelo de gestão. “Para se ter ideia, os diretores são indicados por um partido político ou eleitos pelos profissionais do hospital”, explica. Essa é uma das razões, em seu entender, por que faltam instituições de saúde bem estruturadas, que possam implementar ações de segurança.

 

Comente

Assine