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Ficção
A queda de Nefertiti na sessão das almas

por Lourenço Diaféria

O lugar para medir o rabo das mentiras na cidade era a calçada do Ponto Chic, segundas e terças-feiras. Em tais dias reunia-se ali o povo dos circos, vindo das bibocas e dos cafundós. Cada um trazia suas lorotas, suas perlengas, suas bromas e suas fomes. Debaixo da calça de veludo, do vestido de seda prateado, dos sapatos de salto alto, da dissimulação de que se estava apenas de passagem pela esquina para rever colegas, havia urticárias de angústia.

Ali se ia para especular, fuçar, beliscar se e onde um espetáculo, caçar o cachê da semana. Sair em branco era certeza de passar sete dias pastando ar.

Boca Larga chegou, inventou estar faturando dez mil por três saraus e duas matinês em Jacutinga. Em Jacutinga nem circo havia. Tinha passado um, seis meses antes do qual fugira um macaco que invadiu uma quermesse. Ninguém desmentiu Boca Larga, ai de quem. Boca Larga tinha pavio curto, não agüentava desrespeito. E havia resquícios de consideração. Antes de viver esmerilhado pelo conhaque, Boca Larga raro ficava sem trabalho. Quantas vezes, quantas, arrumara aplausos para quem estava ao desabrigo da sorte. Palhaço benemérito da categoria. Não se fizera líder sindical porque na época não havia sindicatos. Havia apenas corações solidários.

Áureos tempos: Boca Larga pagava rodadas de bauru, chope gelado, tira-gostos e aperitivos. Mandava abrir cidra. Nas temporadas longas, fazia faceirices com vizinhas do circo. Fosse o caso de algum sentimento maior que mera gabolice, enviava flores. Nos espetáculos, citava nomes de moradores. Sabia fazer a coisa. Isso antes dos escolhos e das ressacas da vida. Depois foi decaindo, decaindo. Ao cabo, Boca Larga perdeu o fio da verdade sobre o qual se equilibrava. Passou a mentir por necessidade. Quanto mais mentia, mais sua aparência revelava a verdade: estava no apogeu da lona.

A história dos dez mil de cachê não era toda falsa. Boca Larga lhe acrescentara um fato que confirmava os boatos que zumbiam como mosca na esquina do Ponto Chic: Verinha Galardão tinha perdido a vergonha na cara.

Não era o primeiro caso na vida, coisas assim acontecem, mas a maneira como aconteceu é que estava incomodando o pessoal. Pilão Deitado, atropelado por um caminhão basculante, estava no estaleiro, de muletas duplas, as pernas engessadas. O acidente o tornava provisoriamente dependente em quase tudo de Verinha Galardão, prima-dona do Farol dos Mares. Ela já não vinha se dando bem, havia rumores, desconfianças, e aproveitou o horóscopo para abandonar Pilão Deitado e mais a jardineira com luz elétrica, fogão, urinol, televisor e dois filhos pequenos. Partiu de madrugada, pinchando o afeto marital e um contrato seguro de seis meses, livre de despesa com alimentação, para bandear-se para os braços de um senhor pardo, 40 anos presumíveis, proprietário de uma cadeira de barracas de frutas e caldo de cana. Uma barbaridade. Não foi pior porque quis o destino que Pilão Deitado estivesse semi-invalidado, o que o obstou de sair no encalço da bandida com revólver carregado de chumbo e o coração carregado de ódio, matar a ambos, a ela e ao covarde, como premeditava, e se dar um tiro no ouvido esquerdo.

Esquerdo? Sim. Pilão Deitado era canhoto.

Verinha levou toda a roupa de baixo e a mala de papelão lotada com toda a roupa de cima, brincos, gargantilhas, pulseiras, cabides e a fotografia dela na moldura de madeira envernizada. Examinando as gavetas da cômoda, mais tarde Pilão Deitado descobriu que a mulher limpara também economias enroladas num maço com elástico. Não todas. Deixara meia dúzias de cédulas. Nisso foi honesta. Devia ser o peso na consciência.

A jardineira Chevrolet 52 vazia; as crianças aos berros; o bilhete na porta da privada comunitária, Pilão Deitado começou a vomitar bile verde nos fundos do terreno. Foi acudido com chá de losna.

– Cadela! Víbora! Hetaira! – esbravejava – Hás de pagar caro a afronta hedionda!

A frase encaixava-se na situação como um casquete. Era plágio do drama circense Turbilhão de Ira. Para as grandes dores, grandes pileques.

Pilão Deitado recusou os conselhos espirituais da companhia. Preferiu amargar o fel da humilhação na solidão da jardineira. Os filhos foram amparados pela troupe. Por fim, livrou-se do gesso na perna. Tempos depois, estava andando normal. Mas a cabeça entrara em parafuso. Bateu na filha, que não tinha culpa de nada, apenas a menina perguntara onde estava o retrato da mãe para beijá-lo. Tinha levado embora, não sabia? A amaldiçoada da tua mãe.

A filha correu assustada.

Dias depois, Pilão Deitado invadiu o aposento de Gilda, a pirófaga. Pediu querosene. Ordenou que lhe despejasse o litro garganta abaixo. E riscasse um fósforo marca Olho. Queria morrer calcinado como tocha de balão. Gilda berrou:

– Tirem esse louco daqui!

O circo estava se desmoralizando com o escândalo.

Quem interferiu na situação foi seu Bentes, o gerente. Procurou Verinha Galardão e propôs um arreglo humanitário. Narrou o trapo moral em que se encontrava o marido, as lágrimas das crianças, o desleixo em que agora se desfazia o lar e a péssima fama que passara a contaminar as glórias e o prestígio do Farol dos Mares.

– Se não quer voltar por amor, volte pela tua carreira de artista.

Verinha fez um muxoxo.

– Vou pensar – ela disse. – E fez outro muxoxo.

Na Quinta, vesperal das damas, uma surpresa: a pretexto de rever a prole, Verinha apareceu no circo. Linda mais que nunca, acomodou-se na última fila das cadeiras de pista.

Pilão Deitado a viu de relance. Foi lá dentro, pegou o revólver. Depois tomou um rabo-de-galo duplo. Na sessão iam levar uma comédia que não tinha erro. Mas Pilão Deitado rosnava. A maldita ainda tinha coragem de vir com ruge, batom e vestido acima dos joelhos. E com o calor que Pilão Deitado lhe dera quando a serpente não passava de tímida e ambiciosa ajudante do atirador de facas, e nem sonhava em ser Nefertiti, a equilibrista acrobata que acabou sendo, e que deixava a platéia com o coração nas mãos.

Tudo ia ser simples. Chegaria, a olharia nos olhos, puxaria a arma, e:

– Morre, serpente viperina!

(Outra frase pinçada da cena final do segundo ato do Turbilhão de Ira.)

Pum! Pum! Pum! Nefertiti cairia esvaída em sangue no chão de terra do Farol dos Mares. A mulherada sairia correndo em desespero. Ele iria preso. E daí? A vida é um circo mambembe. Chegou pé ante pé. Sem bulha. Como uma sombra. Nisso sentiu uma mão pousada sobre o ombro. Era seu Bentes, o gerente.

– Guarda essa arma, Pilão Deitado. Verinha veio te pedir perdão. Perdoar é divino. Só perdoa quem ama. (Último ato, cena antepenúltima do Turbilhão de Ira.) Vamos, larga a arma. O Farol dos Mares precisa dela, ela precisa de ti. Bastam os prejuízos que estamos tendo. Guarda o revólver, sua besta. A arma está carregada com pólvora seca.

– Fizeram as pazes – contou depois Boca Larga na esquina do Ponto Chic, encerrando a história. – Circo é assim mesmo. Circo é vida. Tudo é tragicomédia – completou. A seguir, engoliu o conhaque de gengibre que alguém lhe pagou em sinal de consideração pelo seu passado.

Lourenço Diaféria é cronista e escritor, autor de Um Gato na Terra do Tamborim, entre outros