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Entrevista
Paulo Mendes da Rocha
A cidade é de todos. Nessa sentença está a síntese do pensamento do urbanista Paulo Mendes da Rocha. Para ele, a urbe tem um valor universal, lugar de encontro onde as pessoas comungam interesses comuns. Nesta entrevista exclusiva à Revista E, é possível extrair um olhar crítico sobre a realidade de São Paulo. O urbanista rechaça o movimento que leva as classes mais abastadas a procurar locais afastados. Para ele, a cidade vale pelas pessoas que a habitam. Muito melhor é ouvir o burburinho de um bar embaixo do seu escritório do que se isolar em um condomínio fechado. O urbanista identifica os hábitos de vida individualista, de quem procura se isolar em condomínios privados, afastados da cena urbana, com a construção do Maharishi São Paulo Tower, um prédio cujas facilidades substituem a própria metrópole. No pensamento de Paulo Mendes da Rocha mora a utopia da cidade ideal: um lugar que desautoriza o estilo de vida egoista
O que você acha da construção desse prédio imenso, no centro de São Paulo, que muda completamente a ação das proporções e dos eixos da cidade?
Você já respondeu. O prédio muda violentamente a cidade, portanto, é uma invasão, uma forma de violência. Há uma questão muito interessante quanto à virtude e ao desastre no que concerne à técnica e aos recursos humanos: você chega aos mistérios da constituição da matéria e os outros fazem uma bomba. É a degenerescência das intenções e do que move o homem na direção do conhecimento. Para nós, conhecer é fundamental. Portanto, o homem está sempre diante de uma questão ética e política. A questão desse prédio no centro é para ser discutida detalhadamente porque envolve princípios éticos fundamentais. Da essência do mundo moderno e da realização da cidade contemporânea, pode-se dizer que esse prédio estaria neste instrumento possível: o edifício vertical, montado na máquina, na mecânica do solo, dos fluidos para a água chegar nas torneiras, o próprio elevador e todas as máquinas necessárias para se construir esse edifício. Mas não se constrói isso manualmente, visa-se realizar uma idéia que não é o prédio em si, o prédio é apenas um instrumento para realizar uma cidade. Querem construir um prédio que seria todos os prédios de uma vez só. Lá você pode ter tudo: hospitais, academias, quadras esportivas, igrejas e apartamentos. Ou seja, feito o prédio, já não há mais a cidade. É engraçado que esse pessoal se trai porque faz uma propaganda em que aparece esse estafermo ao fundo, refiro-me ao prédio, há também umas fontes horríveis esguichando água, em primeiro plano há um casal com umas crianças brincando com florzinhas. Isso representa uma ruptura no andamento da inteligência humana, da formação da consciência e da linguagem. Você constrói como quem faz um discurso: "essa é a cidade que eu imagino que seja belíssima". Só que não é. Trata-se de uma negação completa de tudo. É grosseiro, totalitário, desumano e absolutamente uma corrupção da idéia de virtude do conhecimento. Não tem cabimento.
Há cerca de dois anos, o Sesc restaurou um filme chamado São Paulo - A Sinfonia da Metrópole, uma produção que retrata São Paulo em 1929: belíssima, harmoniosa. Nem se compara com a cidade de hoje. Essa degenerescência urbana pode ser creditada a quê? Como uma cidade fica feia?
Eu tenho a impressão de que antes da cidade ficar feia, são as pessoas que enfeiam, para usar essa palavra como designação de onde está o mal. A idéia de cidade é que deve ser discutida e alimentada antes de existir. A cidade existe na mente do homem como um desejo. Se você imaginá-la como um espaço de pura especulação e negócio, ela jamais poderá ser bela. No caso da comparação da São Paulo de 1930 com a atual, o que se vê é que se edita essa virtude do edifício. Eu considero sempre virtuosa a possibilidade de realizar prédios em altura para concentrar os trabalhos e a população. É uma possibilidade econômica realizar a cidade levando em consideração a dificuldade de instalação de redes de água, esgoto, telefonia, sistema elétrico, etc. É muito difícil construir essa rede em uma cidade que se espalhe por casinhas. Um milhão de habitantes já seria o suficiente para tornar inviável uma cidade feita com casas térreas. O que acontece? Para ilustrar, é só imaginar o andamento histórico dessa cidade. Ela começa como uma vila pequena, com casinhas. Depois é dividida em pedaços para que os terrenos sejam vendidos. Como você pode fazer negócio com pedaços do planeta? Vendem-se esses lotes, fazem-se as casinhas, depois revendem-se esses lotes para que onde havia uma casinha você construa um prédio. O conjunto disso só pode ser um desastre. Não há nenhum desenho de previsão da transformação. A própria questão da arquitetura fica fora da jogada. O ideal de arquitetura como forma de conhecimento é a edição da cidade contemporânea como a suprema forma de imaginação do homem quanto ao seu habitat. A idéia da disposição espacial de uma cidade na natureza, não só como paisagem, mas considerando-se as forças envolvidas para que o edifício se mantenha em pé (a gravidade, a resistência dos materiais utilizados, o vento, o estado das águas no subsolo, etc.), é feita com o conhecimento absoluto de um desejo posto no nível da imaginação. Que cidade você deseja? E esse desejo não pode ser tratado como mercadoria que vai se reproduzindo às quantidades para ser vendida. O modelo da cidade, se ele existisse, não como formal e definitivo, mas na imaginação, seria de prazer e visão erótica da vida. A visão de cidade que os arquitetos têm na mente, para resumir em uma frase, é a cidade para todos. Porque quem estabelece o padrão da casa, analisando a moradia, é a técnica. Não é a pobreza ou a riqueza. Esse é um caráter horrível da cidade contemporânea: a periferia e a pobreza. Por que é a técnica que define o padrão de uma casa? A cidade é de uma complexidade tal que ela é um projeto humano contemporâneo.
São Paulo tem, hoje, cerca de 10 milhões de habitantes e há cidades ainda maiores. No entanto, outras grandes cidades do mundo começaram a diminuir, como Nova York e Paris. Você arriscaria dizer que esse fenômeno de crescimento que ocorre sobretudo nas capitais do Terceiro Mundo está falido e que se começaria a pensar em alternativas como Alphaville, por exemplo?
Eu acho que não. Porque será constatado, na prática, um desastre muito grande no que se refere à idéia de grandes recintos fechados. O modelo que nós imaginamos possível, não só os arquitetos, é um modelo de cidade complexa e multifuncional, que oferece uma paisagem muito ampla de atividades e de trabalho. O caráter de multiplicidade de ações é o encanto fundamental da cidade. Pode-se dizer que isso não é uma conseqüência, mas sim, um objetivo da cidade: ser cosmopolita, mundial, um lugar de liberdade, onde você troca de cidade com uma certa facilidade. Portanto, a cidade é, antes de mais nada, um lugar possível de habitar, com transporte, eletricidade, telefonia, recursos, amparo à sua vida biológica, à possibilidade de travar amizades novas, explorar lugares propícios para a edição da própria cultura (teatro, cultura, música). A cidade é o recinto da edição do conhecimento. É uma visão literária e narrativa da nossa própria condição de existência atual no mundo. Para que isso se realize plenamente, é preciso que haja mais liberdade em relação ao espaço e ao território do que temos tido. Sobre a questão das grandes cidades absurdas, particularmente do Terceiro Mundo, percebe-se que, apesar de tudo, as pessoas se sentem amparadas vivendo nelas. Pode sobreviver do lixo produzido por uma cidade. O que não é bom, mas, enfim, isso atrai as populações miseráveis do campo.
Algumas cidades brasileiras estão experimentando um tipo desordenado de desenvolvimento e começam a se tornar pólos industriais naquela velha idéia dos anos de 1950 (sem preocupação com a poluição). Não chegou o momento de planejar esse desenvolvimento pensando no ser humano?
Há de vivermos em paz ou em guerra. Não existem alternativas. E a idéia de uma vida pacífica demanda organizar a produção. O mundo não pode ser feito se dirigindo para uma hipótese de competitividade de caráter mercadológico. Veja que a Península Ibérica, diante do Mercado Comum Europeu, parece estar enfrentando horrores em relação à tranqüilidade das populações de tradição camponesa que produzem vinhos excelentes, azeites, etc. Métodos e formas milenares de uma beleza extraordinária estão sendo alijados no momento em que se deslocam essas populações para outros centros. É impossível que não haja outras formas dessa produção padronizada industrial manter e expandir aquele excelente padrão do passado que uma pequena vinha conseguia. Porque o que está se vendo é uma produção em massa com padrão inferior. O queijo de cabra excepcional não pode ser extinto. Ao contrário, a idéia é fazer com que o camponês que faz o melhor queijo da região se torne o cientista chefe do laboratório de pesquisa do novo queijo embalado. Nós não somos gentilmente humanos porque não queremos. É uma questão de política e essas políticas não são adequadas.
E no estágio em que ela está, isso não acontece.
Exato. A cidade, na verdade, está sendo prezada pelos interesses econômicos exacerbados que querem fazer dela um instrumento de lucro e vender suas parcelas. É interessante que para alimentar essa política você passa a negar a cidade. É uma contradição. Você vende a cidade e ao mesmo tempo a nega dizendo que o bom é morar no campo. Por isso os condomínios fechados ou bairros residenciais serem absolutamente melancólicos. Uma rua de bairro exclusivamente residencial às cinco da tarde é uma coisa horrível. Só há latidos de cães atrás dos muros, portões fechados e uma rua deserta. Portanto, o que o enriquecimento produz nesse sujeito explorador da cidade é a necessidade de abandoná-la. Os donos do dinheiro vão para condomínios fechados, onde eles podem ter cacos de vidro nos muros, cachorros ferozes e um exército de funcionários armados para defendê-los. Defender do quê? Eles já abandonaram a cidade. Que ela seja, então, do povo. Eu tenho a impressão de que o futuro do mundo será feito pelos que vêm de baixo. Aqueles que compreendem as virtudes da cidade.
Qual é o motivo da transferência de uma indústria automotiva de São Paulo para a Bahia?
Os políticos que defendem coisas como essa não acreditam na idéia de desenvolvimento da região por meio da indústria. Eles estão sendo cínicos, porque a transferência de uma empresa não produz vagas de trabalho. A região da Bahia tem uma riqueza potencial enorme. Que diferença fariam dois mil empregos a mais numa fábrica perto do que o turismo pode oferecer? Não são políticos no sentido da palavra, eles querem se eleger e com isso fazem imagem na televisão. Hoje, o político que reivindicar a instalação de uma fábrica para a sua cidade está reivindicando o mal para ela.
O habitante da nossa São Paulo contemporânea tem medo de terra?
Quando se constrói um prédio na Haddock Lobo, é obrigatório por lei deixar um recuo de oito metros. Nesse espaço, constrói-se um tanque vagabundo. Uma vista aérea da rua mostra que cada prédio tem seu tanque. Portanto, se você imaginasse que todos aqueles trinta e cinco prédios de doze ou treze andares daquela quadra poderiam estar em dois ou três edifícios mais altos, sobraria muito mais espaço, construindo ao invés de 35 tanques, uma grande área de lazer em comum. A idéia é desenhar a cidade permanentemente. O planejamento impede as aberrações. Nos bairros de gente rica, levam-se as crianças até a escola de carro. A maior virtude da escola não está em um quadro negro ou na professora, está no fato de ir à escola a pé ou de metrô para que se estabeleça a iniciação desse jovem na vida pública. Ele saiu da casa particular para descobrir a sua pequena geografia e sua história. Esses meninos que vão para a escola de automóvel se tornarão, com certeza, imbecis. Chefetes de pequenos empreendimentos vagabundos que não lucram nada para ninguém, vestidos de terno preto com camisa azul-escuro e gravata roxa, pastinha e um telefone celular. Imbecis porque não experimentam a diversidade da cidade. Não descobriram que amigos se escolhem pela ternura.
Em São Paulo, não se ouve a frase "vou andar".
Ah, mas se faz isso. Eu e meus amigos mais queridos fazemos isso. Plínio Marcos só fazia isso. A São Paulo que eu conheço e freqüento só vive planando na rua. Isso felizmente ainda existe. Eu não tenho amigos que freqüentam clubes privados. Ademais, não vejo condição para os adolescentes conviverem em bairros residenciais, hoje já populosos, construídos junto às rodovias entupidas de automóveis rumo ao cinema, pois ninguém agüenta ficar nesses lugares. E essa rodovia que foi projetada para transportar mercadorias fica repleta de idiotas que dizem que moram num condomínio privado. Privado do quê? O pessoal não presta atenção nem nas palavras porque se o condomínio é privado, está se privando de alguma coisa. Não estou fazendo um jogo de palavras, é privado porque é privativo, pertence só a eles. Mas também os priva de muita coisa. Algo como o estudante de medicina poder se apaixonar pela bailarina. Isso não acontece em condomínio fechado.
Existe uma arquitetura genuinamente brasileira?
Essa arquitetura que se vê hoje é a arquitetura da mercadoria. Você faz um prédio como se fosse uma lata de Coca-Cola. Eu não posso defender esses prédios que são construídos hoje. O que temos é um simulacro de arquitetura. A arquitetura brasileira poderia existir nem que fosse na imaginação dos arquitetos. Ela existe como um doce desejo da realização dessa forma de aplicação do conhecimento na natureza para a realização dessa cidade para todos. É claro que para que isso tivesse a mínima consistência seria necessário que se cobrasse um exemplo. Que exemplo você pode ter? O Museu de Arte Moderna de Afonso Eduardo Reis, na reta da Avenida Rio Branco, de frente para o mar, no Rio de Janeiro. Ou o Copan, de Niemeyer, em São Paulo. Ou Brasília. A defesa de certos privilégios da classe dominante também é corrompida em sua argumentação. Por exemplo, a idéia de propriedade privada: ninguém tem nada contra. Quem mora em um apartamento possui uma cota do terreno, mas ele não o possui inteiro. Se ele ficar apertado de dinheiro, ele não pode conservar a casa e vender uma parte dos fundos do terreno. A cota parte do terreno é uma abstração jurídica. Portanto, é fácil imaginar que isso tudo seja possível na cidade toda. Não há a necessidade de você possuir terra, você possui a cidade. O ideal seria mesmo que o homem não possuísse nada. A cidade possui casas e eu moro em qualquer uma. Daí, amanhã eu recebo uma proposta atraente para fazer qualquer coisa em Londres, eu perguntaria entre outras coisas se há um apartamento de tal jeito em tal rua. As cidades precisam dispor de casas para o homem ter liberdade para trabalhar de acordo com sua capacidade, onde ele quiser.