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A princesa prometida

Quem não conhecia o Malvino? Na Vila onde morava, quinta casa à direita, todo mundo conhecia o rapaz já entrando na meia idade, ponderado, honesto e trabalhador, que morava com a mãe. Não era exatamente um tipo popular, mas não despertava reações negativas. Nem de longe se parecia com o Roberval, morador da casa doze, ex-pugilista, que trabalhava como leão-de-chácara num inferninho no centro da cidade, e que morava com a mulher e três filhas adolescentes. O sujeito tinha um temperamento de cão, e um ciúme doentio da mulher, uma pobre coitada que nem podia olhar a rua por uma fresta da janela. Ainda assim, não era raro o ciumento chegar de maus bofes e começar a esbravejar com a mulher, a chamar a coitada de vagabunda e a dizer que ela tinha amante em tudo quanto era esquina.

– Sou um desgraçado – ele gritava. – Minha testa tá mais ornamentada que destaque de escola de samba.

– Pelo amor de Deus, Roberval! – gritava a mulher. – Olha os vizinhos...

– Que vizinho, que nada. Todo mundo sabe o que aqui se passa na minha ausência!

E tascava o sarrafo na coitada, que apanhava sempre e, embora não se defendesse, gritava e fazia um tremendo escarcéu. Algumas vezes, quando a coisa esquentava, entravam as filhas no samba. No dia seguinte, a ala feminina da família saía de casa com óculos escuros. Não, positivamente o Malvino não tinha a fama do Roberval.

Muito menos a da Ivonete, uma garota que dizia trabalhar como telefonista numa fábrica do Distrito Industrial, mas que todo mundo sabia que ela era mantida por um “coronel”. Quer dizer, um fazendeiro de Fonte Boa, que, quando estava em Manaus, passava o dia na casa nove da vila, de bermudas coloridas e cigarro de palha no canto da boca, recebendo os carinhos da Ivonete, que assim garantia o sustento e a moradia. Quando o coronel não estava em Manaus, e isto acontecia muito, Ivonete exercitava seus dotes de carinho com um monte de rapazes e, algumas vezes, com o Roberval, o leão-de-chácara, que ia afogar as desconfianças de Otelo nos braços da bela telefonista morena. Ivonete era realmente um encanto de pessoa, e merecia todos os olhares da vila, até mesmo aqueles mais preconceituosos, porque sabia ser insinuante. Quando estava livre, sem as pesadas responsabilidades de moça independente, Ivonete saía na maior pinta, minissaia tão generosa que o menor pé de vento provocava palpitações nos moradores dotados de testosterona. E se cruzava a perna, o campo de visão ia até as amídalas!

Malvino não podia mesmo concorrer com a popularidade da Ivonete, vizinha com quem mantinha uma relação cordial, mas que ninguém podia dizer que algum dia tivesse se aproveitado das ausências prolongadas do generoso fazendeiro de Fonte Boa.

E tudo isso porque ninguém sabia que o maior sonho do Malvino era encontrar a moça certa, direita, honesta e trabalhadora para casar. Um sonho que parecia cada vez mais distante. Embora já tivesse tentado uma vez.
Ainda jovem noivara com uma garota do São Raimundo, estudante do Instituto de Educação. A garota era de família tradicional, gente que gostava de fazer as coisas às antigas, como namoro na sala, sob a vigilância da mãe, e noivado com tempo para esfriar a cabeça... Malvino a tudo se submeteu, embora a garota tivesse a habilidade de se esfregar tanto nele sem que a mãe percebesse, que ele saía da casa dela mais doidão que corretor de bolsa de valores. Até que a coisa estava indo bem, se não fosse o imprevisto da noiva ter fugido de casa com um magarefe peruano, infausto acontecimento que cortou as pretensões matrimoniais de Malvino.

Depois de muitos anos de trauma, Malvino voltou a amar. Era uma moça já não exatamente na flor da idade, mas que parecia ser o que ele procurava. Chamava-se Suzete, vivia com a mãe viúva, como o próprio Malvino, e trabalhava como atendente no consultório de um médico.

Suzete era uma moça alta, bem feita de corpo, olhos verdes muito expressivos, cabelos ruivos e dentes tão brancos e perfeitos que até parecia um sonho. Quando alguém comentava a cor de seus cabelos, ela fazia questão de jurar autenticidade e invocava um avô irlandês de quem herdara tais melenas cor de fogo. Tanta beleza e perfeição não tardou em levar Malvino a uma decisão. E os dois se casaram em cerimônia simples, em que compareceram apenas os parentes. O noivado, como era de se esperar, tinha acontecido na base do namoro de sala, sempre sob o olhar da viúva, e, a cada manobra mais ousada do Malvino, a pretendida dizia:

– Casando, só casando.

E foi o que fizeram. Casaram e foram passar a lua de mel num hotel em Manacapuru, que era o que permitiam as economias do noivo.

O casamento não sobreviveu à lua de mel.

Quando a noiva começou a se despir, para evitar constrangimento, o noivo foi se trocar no banheiro. Quando voltou, encontrou outra mulher: de cabelos curtos, negros, pequena e o peito chato como uma tábua. Os olhos escuros como uma noite de desastres. E sobre a poltrona, bem arrumadas, as peças que somadas faziam dela uma beldade de cabelos ruivos. O golpe final foi o par de dentaduras alvas mergulhadas num copo-d’água.

Triste, derrotado, Malvino pegou uma sacola, meteu as próteses, enchimentos e tudo mais e foi para a casa da mãe da noiva.

– Aqui está a sua filha, – disse, entregando a sacola. – O resto vem depois... – E voltou para a vila, sempre a sonhar com um casamento.

Mas nunca desistiu de encontrar sua princesa prometida.



Márcio Souza é autor, entre outros livros, de O Brasileiro Voador (Record, 2009).