Postado em
Em Pauta
Intolerância às diferenças
Divulgada em junho de 2009, a Pesquisa sobre Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), buscou mapear a discriminação entre crianças e jovens, abordando a intolerância, entre outros aspectos, referente a raça, gênero, identidade sexual e classe social. Com o objetivo de contribuir para o debate, a Revista E convidou o jurista Dalmo Dallari, professor catedrático da Unesco na cadeira de educação para a paz, direitos humanos, democracia e tolerância, e a psicanalista Fani Hisgail, professora do curso de pós-graduação em semiótica psicanalítica na Pontifícia Universidade Católica (PUC), para tratarem do assunto, ampliando a análise para outras parcelas da sociedade.
Preconceito: Fonte de injustiças e máscara do egocentrismo
por Dalmo de Abreu Dallari
Neste início do século 21, a humanidade apresenta características culturais e sociais que são, em grande parte, o produto de uma longa acumulação histórica, mas que, em certos aspectos, são o reflexo de mudanças recentes, ocorridas no final do século 20, tanto no plano das relações entre os povos quanto no dos avanços tecnológicos muito significativos que passaram a influir consideravelmente sobre as relações humanas. No plano dos fatores políticos, até a última década do século passado, dois sistemas políticos apareciam como opções únicas e inevitáveis – de um lado, o capitalismo individualista e economicista, constituindo um campo específico liderado pelos Estados Unidos; de outro lado, em frontal oposição, o socialismo soviético estatizante e dirigista, liderado pela União Soviética. Entretanto, esse dualismo foi completamente superado pelos acontecimentos, tendo ocorrido a eliminação das rigorosas barreiras que dividiam o mundo entre os dois sistemas. Desse modo, terminou a chamada “guerra fria”, que mantinha o mundo em tensão permanente, sem que tenha ocorrido a vitória de um dos dois líderes.
Com essa distensão, verificou-se, imediatamente, intenso movimento migratório de trabalhadores rumo aos centros mais ricos e industrializados. Isso ocorreu, e continua ocorrendo, em várias partes do mundo. Da África e de algumas partes de Ásia teve início uma intensa migração para países europeus, sobretudo para os antigos colonizadores, como França e Inglaterra, mas também para outros que têm um parque industrial desenvolvido, como a Itália. Na América Latina, isso vem ocorrendo com grande intensidade rumo ao Brasil, que vem sendo procurado por migrantes de países vizinhos e também oriundos de outras partes do mundo. Em grande número de casos, essas migrações ocorrem sem qualquer cuidado com a legalidade da movimentação e com a obtenção de condições legais para permanência e estabelecimento de relações de trabalho no país para o qual se deslocaram. A consequência disso foi a formação de enormes contingentes de migrantes e trabalhadores ilegais.
Uma das peculiaridades das reações contra esses migrantes tem sido o desenvolvimento de fortes preconceitos. A par da competição pelos postos de trabalho existe também o temor de violências desencadeadas pela fome e pelo desespero. E, assim, tanto nas camadas sociais mais modestas dos países procurados pelos migrantes quanto nas camadas mais ricas vem sendo frequente a ocorrência de repressão violenta aos migrantes. Assim, por exemplo, na Itália foi posta em vigor uma lei obrigando os médicos a denunciarem às autoridades um doente sob seus cuidados que esteja ilegalmente no país, para início imediato do processo de expulsão, não importando as condições de saúde do paciente, considerando-se crime a omissão do médico em fazer essa denúncia. Na França, recentemente, um jovem negro foi preso por vigilantes de um supermercado, acusado de ter furtado uma lata de cerveja. O jovem não tinha documentos, pois estava ilegalmente no país, e valendo-se da impossibilidade de defesa do jovem, que não poderia, sequer, recorrer às autoridades por causa de sua situação ilegal, quatro vigilantes o espancaram com tal violência que ele acabou morrendo no próprio local em que tinha sido preso. Tanto no caso da Itália quanto no da França ficou evidente a motivação preconceituosa, racista e discriminadora, que tem sido também evidenciada em fatos frequentes de natureza semelhante que vêm ocorrendo na Alemanha e na Inglaterra.
Paralelamente a isso, outro tipo de preconceito, também gerador de discriminações e outras formas de violência, tornou-se muito agudo ultimamente. No mesmo quadro de distensões que se estabeleceu com o fim da guerra fria, vem ocorrendo também uma liberação quanto a outros fatores tradicionais de discriminação, como as relações homossexuais, que evoluíram para o reconhecimento de relações homoafetivas. Também nesse caso existe agora uma situação nova, sendo bem significativo o fato de que em muitos países já se estabeleceu o reconhecimento legal de casamentos de pessoas do mesmo sexo, o que teve início na Dinamarca, que legalizou esse tipo de união em 1989. Acompanhando essa evolução e com o mesmo espírito de abertura, os meios de comunicação vêm dando ênfase a eventos centrados na particularidade do relacionamento homossexual, como congressos, desfiles e outras manifestações coletivas. Entretanto, o que se tem visto é que também nesse caso a liberação tem provocado uma contrapartida violenta, não das sociedades como um todo ou de entidades de grande prestígio social, mas de grupos absolutamente preconceituosos e intolerantes, que agem violentamente contra essa nova situação, chegando mesmo a matar homossexuais, tão só por essa condição. É o preconceito exacerbado, que não respeita o ser humano nem seus direitos fundamentais, inclusive o direito à desigualdade.
Do ponto de vista de sua origem, de sua etimologia, a palavra preconceito significa pré-julgamento, ou seja, ter ideia firmada sobre alguma coisa que ainda não se conhece, ter uma conclusão antes de qualquer análise imparcial e cuidadosa. Na prática, a palavra preconceito foi consagrada como um pré-julgamento negativo a respeito de uma pessoa ou de alguma coisa. Ter preconceito ou ser preconceituoso significa ter uma opinião negativa antes de conhecer o suficiente ou de obter os elementos necessários para um julgamento imparcial. Com base nesses elementos, pode-se estabelecer, para mais fácil e precisa compreensão da análise de aspectos particulares, o seguinte conceito: “Preconceito é a opinião, geralmente negativa, que se tem a respeito de uma pessoa, de uma etnia, de um grupo social, de uma cultura ou manifestação cultural, de uma ideia, de uma teoria ou de alguma coisa, antes de conhecer os elementos que seriam necessários para um julgamento imparcial”.
Um ponto que merece especial atenção é a verificação dos mecanismos do preconceito. É muito raro que alguém reconheça que tem posição preconceituosa em relação a alguma coisa. Muitas vezes, o preconceituoso não percebe que age dessa forma, pois, como adverte, em várias passagens de sua obra, o notável mestre Goffredo Telles Júnior, o preconceito geralmente atua de forma sutil, sinuosa, levando uma pessoa a tomar como premissa, como ponto de partida, aquilo que deseja que seja a conclusão. Mas existem casos em que o preconceito se afirma de modo direto e radical, não deixando qualquer dúvida quanto à sua presença, pois o preconceituoso expõe abertamente os seus preconceitos, às vezes até com orgulho e arrogância, como se estivesse afirmando uma superioridade que ninguém pode por em dúvida. Essa forma de atuação do preconceito, aberta e extremada, torna mais fácil a identificação da ação preconceituosa e, portanto, a resistência a ela. Aparentemente o indivíduo preconceituoso dessa espécie é mais nocivo, mas na realidade o maior risco está na atuação disfarçada, sinuosa, que se esconde atrás de uma fachada de neutralidade, objetividade e respeito igual por todos os seres humanos. O preconceituoso disfarçado tenta enganar e procura justificar seus atos com argumentos respeitáveis. Desse modo, cria-se uma base, aparentemente racional e eticamente aceitável, para a intolerância e as discriminações, pois o preconceituoso simula a necessidade de defender-se, e de defender a sociedade, dos “maus e inferiores”, que não devem ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades assegurados aos “bons e superiores”, para que a “boa sociedade”, as “pessoas direitas” fiquem protegidas.
Em conclusão, o preconceito, que frequentemente serve como pretexto para a prática de injustiças, não tem justificativa moral nem jurídica e é essencialmente mau e pernicioso. O preconceito estabelece a desigualdade entre as pessoas, sacrifica valores fundamentais, é usado para justificar agressões à dignidade humana e, por isso tudo, é expressão de uma perversão moral que deve ser, incansavelmente, denunciada e combatida. O preconceito agride valores e direitos essenciais das pessoas e por isso é necessário criar barreiras às suas investidas. Ele é expressão de desrespeito pela igualdade essencial de todos os seres humanos, igualdade que não se confunde com a exigência de padronização de comportamentos e não conflita com o reconhecimento e o respeito da diversidade que decorre das circunstâncias de cada um.
Em defesa da dignidade humana, é necessário um esforço constante e determinado, que é responsabilidade de todos, para barrar a formação e as ações do preconceito e para que a tolerância seja a constante na convivência humana, em todas as circunstâncias. Em termos concretos e práticos, é necessário que a Constituição e as leis contenham normas que impeçam a presença e a interferência maléfica do preconceito e da intolerância. Mas, a par disso, é necessário ter consciência de que a existência de disposições legais, por si só, não é suficiente para que se atinja esse objetivo. Não há dúvida de que é de grande valia colocar nas leis a proibição das ações preconceituosas e criar penalidades para quem agride a dignidade humana levado por preconceito, mas, acima de tudo, é preciso que no interior das consciências se estabeleça um firme compromisso com a defesa da dignidade humana e da igualdade essencial de todos os seres humanos.
“O preconceito estabelece a desigualdade entre as pessoas, sacrifica valores fundamentais, é usado para justificar agressões à dignidade humana e, por isso tudo, é expressão de uma perversão moral que deve ser, incansavelmente, denunciada e combatida”
O intolerante olha, mas não vê
por Fani Hisgail
Nas grandes capitais do mundo, a população já aceitou a ideia de ser parte integrante de uma massa que é constantemente observada por meio dos sinalizadores automáticos de infrações em rodovias e centros urbanos. Sofisticadas câmeras e radares digitais auxiliam no controle de tráfego e na fiscalização do trânsito. Esses aparelhos, onividentes, surgiram e proliferaram na última década, depois das sequências de atentados terroristas que alguns países viveram.
Através do olho eletrônico, alguém observa secretamente, e sem percebermos. As primeiras aparições ocorreram em aeroportos e centros históricos e turísticos; depois, se expandiram para os espaços não só públicos como também privados, sempre com o intuito de defender a vida humana. São vistos nas entradas de edifícios e residências, nos elevadores e nos clubes, sem falar nos shoppings, garagens e escadas rolantes do metrô. Há também situações em que a pessoa acredita estar diante de uma câmera explícita, quando na realidade trata-se de um gadget vazio, um simulacro que serve para afugentar os curiosos e passantes de rua.
O cidadão nada pode fazer, a não ser constatar o quão vulnerável ele fica diante do observador oculto. No trânsito, ele não se resigna perante a situação de estar na mira do outro, fazendo de conta que ninguém o está vendo; por exemplo, quando avança acelerando e contrariando o horário do rodízio. Após, a prova é categórica: a infração foi captada pela imagem exibida na multa enviada pelo Detran.
“Estar de olho nele”, “manter alguém de olho”, ou mesmo “ficar de olho” são formas que designam uma oscilação de conduta que pode representar um desvio da norma ou um transtorno qualquer, seja do humor ou do comportamento. Sugere também que a desconfiança sobrepuja, e, de longe, a confiança, até que se prove pela imagem detectada pela tela. A introdução do scanner corporal – que mostra os detalhes do traçado do corpo em busca de traços de explosivos no corpo e nas bagagens – primeiro nos aeroportos britânicos e americanos logo será globalizada.
Tanto as câmeras digitais como os scanners podem ser considerados signos da época pós-humana, numa reedição tecnológica do Panóptico, instrumento imaginário que permite a visão de todas as partes do conjunto social. O corpo emerge como o grande alvo de observação; entretanto, o que interessa ao grande olho é saber sobre a intenção obscura e mal-intencionada do cidadão.
Segundo matéria da Folha de S.Paulo de 14 de janeiro de 2010, a medida começou a gerar desconforto e constrangimento aos passageiros, por alegarem invasão de privacidade. Entretanto, a capacidade de suportar, resistir e assimilar as novas formas de controle e prevenção demonstra como a população, dependendo das circunstâncias, prefere defender a tolerância como uma ação política.
A tolerância civil consiste no assentamento das relações humanas como grupo quando o ideal comum é estimado. A unidade social ocorre frequentemente em situações de catástrofes naturais e humanas, além das guerras.
As imagens veiculadas pela TV sobre o terremoto no Haiti, no mês de janeiro, não têm poupado o observador, pois estampa o insuportável de ver. Para os sobreviventes, a capacidade de suportar uma situação penosa põe em cheque a tolerância pessoal. Quando a água e o alimento são escassos, a desumanidade mostra a sua cara, deixando os rastros da destruição nos escombros da cidade. Assim, como há solidariedade, também há egoísmo e brutalidade.
O que se pode esperar de uma conduta desejável? A tolerância abriga traços de um ideal impossível?
Segundo o professor de filosofia medieval da universidade do Chile, Humberto Giannini, na vida pública, a tolerância como ideologia do bem pode exaltar os pontos nevrálgicos de certas ideias que põem à prova os ânimos da população. A tensão subjetiva pela qual o cidadão está submetido, em virtude da presença dos artefatos de vigilância, há muito se traduz em mais um mal-estar que a civilização impôs. A situação corrobora com outro mal-estar, o da angústia pelo perigo e a ameaça que sofre o eu perante o desamparo. A intolerância surge como sintoma social, expondo nua e cruamente a fragilidade humana.
Sempre parceira, a agressividade sublinha, sobretudo, a barbárie em função da falta que o diálogo e a troca de ideias fazem.
Desse modo, o sentimento e o espírito da época atual parecem ser a paranoia. Para entender a ideia, nada melhor do que recorrer ao escritor Elias Canetti, quando disse, acerca da noção do sobrevivente: “O perigo está em toda parte, e não apenas na sua frente. Ele é até mesmo maior às suas costas, onde o poderoso não seria capaz de notá-lo com suficiente rapidez. Assim, mantém seus olhos por toda parte: nem mesmo o ruído mais inaudível pode escapar-lhe, já que este poderia conter em si um propósito hostil”.
Vestida de todos os terrores, a forma crônica do delírio de perseguição na psicose foi demonstrada por Freud. Acrescentou, dentre seus estudos, um mecanismo de projeção, segundo o qual o paranoico se defende de uma representação inconciliável com o eu, projetando seu conteúdo no mundo externo.
As representações da intolerância contemporânea à diferença étnica, racial, territorial, geracional, de gênero, entre muitas outras, exteriorizam um estranhamento em relação ao eu ideal e o ideal do eu. O julgamento que o sujeito faz de si e o que deve ser feito opera no sentido de um acerto de contas permanente. Seria ele capaz de receber a diferença, sem rejeitá-la nem obstruí-la?
O preconceito e a vontade de dominar o outro, por ser impossível mantê-lo fora, instalam enormes ressentimentos e revolta. A má-fé, a hipocrisia e o asco da intolerância política, religiosa e intelectual convocam forças desagregadoras quanto à reflexão e à escuta do novo.
As crenças que reúnem a coesão de certas ideias são garantidas por uma cumplicidade coletiva que avalia o mundo, imprime a identidade e revela o ser. Quem é tolerante tenta compreender as razões dos outros e deste modo exercita a capacidade ativa de um poder, de uma potência intrínseca do sujeito. Contudo, esse estado de situação não garante a acolhida hospitaleira do estranho, tampouco a assimilação do que vem de fora, isto é, do estrangeiro que solicita um reconhecimento, sem perder a composição de sua unidade e de sua identidade.
Todavia, o processo de identificação reflete o ponto nodal em que o sujeito se aliena de si, onde mais esperava se integrar. Estar como objeto de olhar do outro, entre o visível e o invisível, situa a janela por trás da qual se supõe que alguém nos espreita. O olho eletrônico existe como invenção pós-humana e como metáfora. Ali onde falta a visão advém o olhar, que nada mais é do que o se dar-a-ver através das extremidades das câmeras e radares da Polis.