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Em debate, os (d)efeitos da CPMF

Conselho Superior de Direito discute a contribuição mais polêmica do Brasil


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Na madrugada do dia 13 de dezembro de 2007, o Senado Federal derrubou as pretensões do Executivo brasileiro de prorrogar até 2011 a cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Diante da decisão, a publicação do debate realizado sobre o tema no âmbito do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), no dia 26 de outubro de 2007, deixou de oferecer contribuição imediata para uma análise mais profunda do assunto. Entretanto, com o objetivo de esclarecer uma questão que, acredita-se, foi apenas momentaneamente descartada, Problemas Brasileiros optou por publicar, da mesma forma, os principais pontos da discussão. O texto permite inclusive avaliar corretamente a decisão dos senadores.

Ao abrir o encontro, em que foi palestrante o ex-secretário da Receita Federal e membro do Conselho Superior de Direito Everardo Maciel, o presidente do órgão, Ives Gandra Martins, sugeriu analisar um pouco um projeto de reforma tributária que, se supunha, o governo apresentaria no contexto das negociações para aprovar a prorrogação da CPMF. Para Gandra Martins "o projeto parece extremamente importante por aquilo que tem de desestruturador do sistema, sem a contrapartida da possibilidade de se pensar o que se vai recompor, à luz dos princípios de simplificação. E, pior, com a absoluta certeza de que, se esse sistema for adotado nos termos em que o governo o apresenta, a chamada calibragem de conforto no PIS [Programa de Integração Social] e na Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social] poderá ficar seriamente avariada, provocando um salto considerável na pressão da carga tributária. Estima-se que haverá uma folga de R$ 60 bilhões. Se houvesse uma compactação nos gastos públicos e o governo não contratasse mais, mas informasse como dar eficiência à máquina administrativa, seria possível prescindir da CPMF do ponto de vista econômico. Entretanto, o governo não abre mão dela." Ives Gandra acredita que o presidente Lula "adotou um argumento decisivo para a prorrogação quando disse aos dois candidatos em potencial do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] à presidência da República: ‘Se um de vocês vier a se eleger, não poderá prescindir da CPMF’ ".

"É um argumento jurídico imbatível. Alguém, não sei quem, governador de estado, por exemplo, deveria entrar no Supremo Tribunal Federal [STF] com uma Adin [ação direta de inconstitucionalidade] qualquer para dizer que isso é imposto, e o Supremo deveria declarar que não é contribuição. É a mesma hipótese de incidência do antigo Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira, extinto e depois recriado para beneficiar a saúde. No fundo, é a constitucionalização de uma lei. Na prática, trata-se de uma lei que é constitucional. É a primeira vez que temos no direito uma lei que consta especificamente da emenda constitucional e se prorroga, e essa lei se transformou em norma constitucional. O fato é que o governo não pode prescindir dessa montanha de dinheiro e deverá haver um benefício real para a sociedade em matéria tributária, aliás essência da linha de pensamento do conselheiro Everardo Maciel, pois acredita em algumas compensações."

Da reunião também participaram os conselheiros Américo Lacombe, Marilene Talarico Martins Rodrigues, Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, Ruy Altenfelder da Silva, Talullah Carvalho Kobayashi, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, Ivete Senise Ferreira e Ney Prado.

Elogio à simplificação

O conselheiro Everardo Maciel começou sua palestra contando que o imposto de renda "foi criado em caráter provisório no final do século XVIII, por William Pitt, ou seja, era provisório há 200 anos. No Brasil foi decretado em caráter provisório, o Congresso legisla sobre medidas provisórias e nós criamos a figura da medida provisória permanente. No início, eu resistia à CPMF porque ignorava seus efeitos e devido à mitologia a seu respeito: a desintermediação financeira, as conseqüências perversas nunca esclarecidas, a cascata. Percebi que a CPMF é um imposto de baixíssimo custo e extremamente produtivo".

Maciel relatou aos conselheiros que estava realizando uma pesquisa direta para verificar, nas empresas, qual o custo da CPMF como uma alíquota efetiva: valor arrecadado versus receita bruta. Segundo ele, medindo essa alíquota efetiva em relação ao imposto de renda, a alíquota efetiva do imposto de renda sobre o lucro presumido dá 2,9% e sobre o lucro real dá 1,2%. O lucro presumido é opcional, mas sua alíquota efetiva é maior. As pessoas optam por uma alíquota maior em razão da simplicidade e da segurança. Mesmo não declaradamente, elas consideram os custos para pagamento de imposto. Não se discute se é uma despesa necessária. Apurada a receita bruta, aplica-se uma alíquota e fim. Simplicidade é, portanto, um conceito muito forte. Por isso, 93% dos contribuintes brasileiros optam por sistemas cumulativos, por tributos em cascata e pela simplicidade. Nas democracias parlamentares européias também é assim. Essa é a palavra em jogo.

Nas diferentes amostras que montou na pesquisa, a variação mínima representa 0,4% da receita. É uma alíquota quase fixa. O imposto de renda sobre o lucro presumido dá 2,8%. Nessa amostra, a relação imposto de renda contra receita bruta deu 3,2%. Portanto, a alíquota efetiva, entendida como essa relação o valor arrecadado sobre receita bruta do imposto de renda, dá oito vezes a CPMF. Deslocando para o conjunto na relação arrecadação nacional da CPMF versus o imposto de renda das pessoas jurídicas, dá a metade. É, portanto, um imposto de altíssima produtividade e de maior alcance do que o imposto de renda. Em termos agregados, o imposto de renda tem uma relação do dobro da CPMF, mas individualmente, por empresa, o custo do imposto de renda, a alíquota efetiva, é oito vezes maior. A explicação está no universo da base de cálculo, muito maior e muito mais ampla do que a do imposto de renda. Atinge a informalidade, que passa longe dos impostos convencionais. Há atividades e operações para as quais não se conhece outra maneira de tributar – e não há por que se pensar algo que não seja tributado, a não ser por uma razão extremamente relevante.

Por exemplo, em relação ao comércio eletrônico, diz e pergunta Maciel: "Como tributar um download no computador de algo que vem do exterior? Somente sobre o pagamento. Esse universo só é alcançado assim. E por que o comércio eletrônico não é tributado e o resto é? Não há razão relevante para excluir, pois sua natureza é igual à de qualquer outra atividade. Então por que excluir? Quando se fala da simplicidade e do alcance de certos universos, o custo de conformidade da CPMF também é nulo. Não há custo para recolher CPMF. É direto. Custo de conformidade é grave, porque isso é carga tributária indireta. Os custos de conformidade nos Estados Unidos em relação à arrecadação são de 15%. Um valor brutal. Na CPMF é zero".

O ex-secretário da Receita afirma que, comparando a CPMF a outros tributos, ela é indispensável. "É ingenuidade pensar o contrário, porque os gastos discricionários do governo na área federal representam entre 4% e 5% do total da receita. A CPMF representa 8%. Se os gastos discricionários vão até 4% a 5%, e a CPMF representa 8%, a única forma de eliminar a CPMF, hoje, é às custas do superávit primário, repercutindo sobre a taxa de juros, e/ou do atualmente quase simbólico gasto com investimento, que correspondia a 2,5% do PIB em 1987 e hoje é de 0,6%. Outro aspecto é a alta carga tributária. Todos esperam que ela diminua, mas poucos se dispõem a uma discussão efetiva a respeito de como tratar o gasto público brasileiro. É um assunto chato e ruim, porque é preciso decidir cortar de alguém. Cortar do Estado? O Estado é uma coisa abstrata. Tributo é norma de rejeição. Ninguém vota a favor de tributo em nenhum plebiscito. Tributo é a teoria do mal necessário."

Ele assinalou que, "se fosse para cortar, não cortaria a CPMF. Há tributos muito piores do que ela, como a contribuição patronal para a Previdência Social, razão de 60% da força de trabalho, ou 48 milhões de pessoas, na informalidade. É uma alíquota de 20%, com encargos previdenciários e trabalhistas que atingem a 102% do salário. É um confronto direto entre tributo e emprego. E se emprego é questão central da sociedade contemporânea, então é uma coisa mortal. Não se discute a redução da alíquota da contribuição patronal, mas a continuação da CPMF, que vai ser prorrogada, ou recriada. Qualquer um com um pouco de sensibilidade política percebe isso".

Na opinião de Maciel, portanto, "essa é a oportunidade para rediscutir a questão fiscal brasileira. Isto é, uma ‘dieta fiscal’ em troca ou em nome da prorrogação da CPMF? Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional que inclui no Ato das Disposições Transitórias uma regra muito simples, na verdade uma ‘dieta’ associada à CPMF. De todo modo, não gostei do malfeito cardápio do PSDB, como, por exemplo, falar em extinção gradual da CPMF, redução gradual da alíquota e sua eliminação no prazo de um ano".

Confusões com a carga tributária

Para Everardo Maciel, "a discussão é muito confusa, irritante até, a respeito de carga tributária, como quando se diz que ela cresceu ontem. Como é possível a carga crescer ontem? Carga tributária é inconsciente e aumenta por muitas razões, até por movimento estatístico, por exemplo. No Brasil, a agricultura é mais tributada que a indústria. Se a indústria crescer desproporcionalmente mais do que a agricultura, a carga tributária vai aumentar e não acontece nada. É um fenômeno estatístico. Outro exemplo: se ocorrer aumento da rentabilidade das empresas, cai a possibilidade de compensar o prejuízo e a carga tributária vai subir".

Existe uma proposta de emenda constitucional segundo a qual até 31 de dezembro de 2015 fica vedado o aumento de alíquota ou base de cálculo de tributo ou contribuição da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Se aprovada, detém a pressão fiscal, mas é insuficiente porque são necessárias outras normas que façam o mesmo do lado da despesa. O que faz a despesa no Brasil crescer? Um aumento espetacular dos gastos com pessoal, particularmente do Judiciário e do Legislativo. É crescimento de pessoal, previdência e assistência social. O Brasil está virando um Estado que paga seus funcionários, dá Bolsa Família e paga aposentados. É até meio cínico pedir para prorrogar a CPMF e anunciar que choque de gestão é contratar pessoas. Isso é insustentável.

Ao responder a uma pergunta da conselheira Marilene Talarico a respeito do desvio de sua função original, que era a de financiar a saúde, Everardo Maciel relatou que, ao ser instituída, a contribuição era de 0,2%, e chegou aos 0,38% com mais outros objetivos, como apoiar o Fundo de Combate à Pobreza e cobrir o déficit orçamentário. "A destinação, ressalvada a aberração do caso da DRU [Desvinculação de Recursos da União], é realmente para assistência, previdência e saúde. Em termos, a DRU envolve uma contradição, e esse tipo de destinação é inócuo, porque tira e devolve. Como todos são deficitários pode-se fazer o que se quiser e fica exatamente o que estava antes. Mas completamente sem nexo são as contribuições sociais vinculadas à seguridade. Isso é uma ficção. Seguridade social foi um erro de tradução. Previdência social faz sentido. É compreensível a contribuição previdenciária em um fundo específico da previdência. Mas contribuições sociais para financiar despesas que de fato são gerais, como saúde e assistência social, não têm sentido. E o que se faz? Com a DRU se tira 20% de cada um, mas se gasta mais. Há uma confusão mental na gestão do gasto público e na forma orçamentária."

O conselheiro Américo Lacombe lamentou ter sido sempre vencido quando se trata de contribuição. Ele acha um "absurdo não se levar em consideração o artigo 145 da Constituição, segundo o qual os tributos são impostos, taxas e contribuições de melhoria. Se adotarmos que a contribuição é outro gênero de tributo, esse artigo perde totalmente o sentido, cai no vazio. Então é só o STF dizer: todas as contribuições ou têm a natureza de imposto ou têm a natureza de taxa. Até quando se trata de empréstimo existe um fato gerador de imposto. O da CPMF é o mesmo fato gerador do antigo IPMF, sem diferença nenhuma. Mudou a destinação? Todo imposto tem uma destinação e uma finalidade que não é só a contribuição. Só Adib Jatene acha que apenas as contribuições têm finalidade. Ele criticou a posição de um ministro do Supremo, afirmando que contribuição é diferente de imposto. Eu não reconheço nele autoridade para discutir essa matéria. Acho que a CPMF vai voltar, é inevitável. Não se pode abrir mão dela no momento. Lula disse que ‘quem quer ser presidente é a favor da CPMF’. Realmente quem está lá vai querer defender a CPMF. Ela será prorrogada ou recriada por medida provisória, apesar do problema da noventena. No entanto, é evidente que Cofins e PIS são impostos mais nocivos que a CPMF".

Ruy Altenfelder foi empossado novo conselheiro e lamentou "o silêncio dos empresários" e a admissão tácita da inevitabilidade da prorrogação ou da recriação "dessa famigerada CPMF". Um dos assessores jurídicos da Fecomercio, Romeu Bueno de Camargo, informou, no entanto, que desde os tempos da IPMF a entidade foi contra qualquer taxação sobre movimentação financeira, os conselhos da casa têm se manifestado a respeito e um deles elaborou uma espécie de cartilha acerca do assunto. O próprio Conselho Superior de Direito, quando ainda se chamava Conselho de Estudos Jurídicos, debateu o assunto no início do ano, e as notas taquigráficas foram em seguida enviadas às duas casas do Congresso Nacional, a vários ministros, tribunais e à presidência da República.

Da mesma forma, a vice-presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, Ivete Senise Ferreira, relatou que a entidade, junto com a Ordem dos Advogados do Brasil [OAB] e a Associação Comercial de São Paulo, tem se manifestado contra a CPMF, "mas não sei se vai adiantar muito". Antonio Carlos Rodrigues do Amaral admitiu que "a eficácia das manifestações públicas é menor do que se desejava, embora a CPMF seja um tributo de natureza patrimonial que vai corroendo, e a vantagem de ser invisível é, ao mesmo tempo, o seu grande dano".

O conselheiro Ney Prado afirmou que "a CPMF é realmente uma contribuição perversa que deveria ser eliminada, apesar de que tudo isso passa por um processo político que leva ao possível. Porque, se realmente essa contribuição produz bons resultados com sua simplicidade e a possibilidade de alcançar eventuais sonegadores inseridos na economia informal, então o problema é menos da CPMF e mais dos outros impostos, que poderiam ser, em uma negociação política, trazidos a debate, e a partir dessa luta alcançar um resultado de forma racional e dentro das possibilidades". 

 

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