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Europeus descobrem um novo Brasil

Um contrapeso a americanos e chineses

MARCOS DE AZAMBUJA


Marcos de Azambuja
Foto: Alexandre Almeida

O embaixador Marcos de Azambuja esteve presente no dia 20 de setembro de 2007 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac, onde proferiu uma palestra com o tema "Europa e Brasil, Brasil e Europa".
Reproduzimos abaixo os principais pontos de sua exposição e o debate que se seguiu.

Agradeço pela possibilidade de falar sobre o relacionamento entre Europa e Brasil. Inicialmente vou tratar da Europa, uma entidade que mudou mais nos últimos 50 anos que o Brasil. Vamos para o dia 28 de junho de 1914, às dez e meia da manhã, em algum ponto na bacia do Mediterrâneo. O dia estava uma beleza, muito claro, céu azul. Quem conhece o Mediterrâneo sabe que em junho às vezes há dias em que o mundo parece ter sido lavado naquele instante. Havia um desfile, que vinha de uma estação de estrada de ferro e ia terminar na prefeitura. A cidade era Sarajevo. Na carruagem aberta estavam o herdeiro do Império Austro-Húngaro, o grão-duque Francisco Ferdinando, e sua mulher, a condessa Sofia Chotek. Num certo momento um nacionalista sérvio atirou uma granada no veículo. A granada bateu no carro e caiu no chão. O grão-duque se inclinou e conseguiu escapar, mas várias pessoas morreram. A carruagem seguiu até a prefeitura, onde Ferdinando decidiu sair de novo, desta vez em carro aberto. Nessa saída ele e a mulher levaram dois tiros, morrendo ambos. O assassino, Gavrilo Princip, hoje seria considerado um terrorista. Iniciou-se então um ciclo que vem terminar nos dias de hoje.

A partir daquele momento, há um encadeamento da história, quase inexorável, com um grande número de dados mecanicistas. Quando ocorria alguma coisa, automaticamente surgiam certas respostas, e um país aliado tinha obrigação de mobilizar seu exército em 24 horas. Foi assim que entre 28 de junho e meados de agosto começou a 1ª Guerra Mundial, resultado da mecânica de compromissos assumidos e da incapacidade, mesmo de pessoas sábias, de deter o que viam como o caminho da destruição.

Escolhi essa data porque até então, desde a Guerra Franco-Prussiana, a rigor a Europa vivia num paraíso. O período foi tão maravilhoso que o chamam de Belle Époque. Havia prosperidade, paz e uma imensa confiança em que o mundo iria cada vez melhor. O século 19 teve, nesse momento, uma concepção otimista da história. Havia, evidentemente, a percepção de desigualdades econômicas e sociais – Marx escreveu nessa época –, mas o período entre 1870 e 1914 foi de grande prosperidade. Como estamos hoje vivendo um momento de prosperidade, não é má idéia ter presente que houve outros ciclos muito bons e que o pensamento de que as conquistas são permanentes deve ser visto com cautela. A humanidade tem sempre a capacidade de derrapar e de se meter em grandes encrencas.

De 1914 até 1957, quando se assina o Tratado de Roma, a Europa perde o domínio do mundo. Havia o império francês, o domínio inglês, a Rússia. A guerra de 1914 a 1918, que se chamava a Grande Guerra, não teve um efeito devastador econômico sobre a Europa no sentido físico, porque ela ocorreu numa frente não muito extensa, 500 a 700 quilômetros. Não foi um conflito mundial, mas entre Estados europeus. Durou quatro anos, com perdas humanas antes inimagináveis, pois ainda havia a idéia de que as guerras duravam apenas um verão, porque paravam no inverno. As novas armas causaram um dano antes impossível de imaginar. E desde que surgiu a industrialização, os países se mobilizavam em sua totalidade para o conflito.

A Europa terminou a guerra enfraquecida, debilitada, com os impérios fragilizados. A Rússia imperial, que era uma aliada, passou a compor o sistema soviético. Os Estados Unidos cresceram no cenário internacional. A aplicação de sanções, a ocupação territorial e o desmantelamento industrial levaram a Alemanha a um ciclo de empobrecimento, instabilidade e inflação, o que fez surgir no país, ao longo dos anos, uma nova ideologia, o nacional-socialismo, com toda a sua carga de desgraças potenciais.

Quase se pode dizer que entre 1918 e 1939 houve uma trégua, mas a Liga das Nações não prosperou, nada funcionou bem e a Europa, a rigor, apenas se preparou para um novo ciclo: a 2ª Guerra Mundial, de 1939 a 1945, que, esta, sim, destruiu o continente. Foi devastadora, em primeiro lugar, para a civilização européia. A região, que se imaginava porta-estandarte do iluminismo e da civilização, terminou convencida de que era um lugar em que podem ocorrer genocídios e formas terríveis de comportamento violento. A Europa perdeu completamente a idéia de que era a condutora da humanidade, e concluiu que era um grande doente. Sofreu, em primeiro lugar, o efeito da desmoralização de uma civilização que se considerava a mais avançada. Em segundo, danos econômicos e materiais indescritíveis. A aviação passou a ser um elemento capaz de destruir a base física da civilização européia. Em terceiro, as migrações internas.

A Europa não era mais reconstruível como antes, e o que nasceu a partir daí foi outra Europa. Ela se recuperou um pouco depois de 1945, mas a esperança que os americanos tinham inicialmente de que o continente se reergueria sozinho não se concretizou, por duas razões. Primeiro porque a União Soviética passou a ser um foco alternativo de poder, instabilidade e subversão, e segundo porque a Europa, sozinha, não tinha mais fôlego para se recuperar. Seria necessário criar modelos para que ela renascesse, o que levou ao Tratado de Roma, em 1957, e à criação da Comunidade Econômica Européia (CEE), até chegarmos à União Européia de hoje.

Imperialismo americano

Terminada a 2ª Guerra Mundial, havia, como já disse, a esperança do soerguimento autônomo da Europa, o que não foi possível. Esperava-se também que os impérios conseguissem se preservar, mas pouco a pouco o francês se desfez, com sublevações na Argélia, Marrocos, Tunísia e Indochina. O britânico, por sua vez, com Índia e tudo mais, se desmontou, substituído por um único império, o soviético. E o imperialismo americano, sem sentido propagandístico, mas pela extensão do poder econômico e tecnológico, não é mais caracterizado por ocupações. Então a Europa ficou numa situação de fragilização e o símbolo maior dessa fraqueza política foi a operação que franceses, ingleses e israelenses fizeram contra Suez, quando o canal foi nacionalizado. Como os Estados Unidos e a União Soviética não gostaram da operação, os três tiveram que recuar, o que demonstra que não tinham mais autonomia para uma ação que não fosse concertada com os Estados Unidos.

Depois da guerra, a Europa teve o impulso de punir a Alemanha, por boas razões. A primeira idéia foi de uma retaliação e houve um plano de um secretário do Tesouro americano, Henry Morgenthau, Jr., de transformar a Alemanha numa fazenda, numa espécie de sede rural, condenando-a a voltar ao século 18. Não era possível, porque isso engendraria ressentimento, revanche e violência, e daria à União Soviética o domínio sobre a Europa central. O Plano Morgenthau, segundo o qual a responsabilidade não podia ser confinada a uma elite militar ou política, mas atribuída à totalidade da sociedade alemã, não foi adiante.

Surgiu então a idéia de que era preciso recuperar a Europa, e foi assim que se montou o Plano Marshall, essencialmente uma tentativa de impedir a sovietização da região e o seu colapso econômico. O Plano Marshall foi criado primeiro para a Grécia, onde havia uma desestabilização provocada pela União Soviética, mas a partir dele começou a restauração européia.

Uma coisa essencial foi a Comunidade Européia do Carvão e do Aço. Há duas figuras extraordinárias – Konrad Adenauer, que é o primeiro alemão com uma nova visão, e Charles de Gaulle, que apesar de vitorioso tinha sido derrotado também. Não há arrogância na Europa depois de 1945, mas uma grande humildade, devido à percepção de que quase tinham deixado destruir um patrimônio incomparável. A Comunidade do Carvão e do Aço avançou, assim como a assistência do Plano Marshall, mas funcionaram como band-aids, não resolveram estruturalmente a situação.

O caminho surge – e aqui começa nossa conversa de fato –, quando se assina, em 1957, o Tratado de Roma, que cria a chamada Europa dos Seis. O grupo é composto de França, Alemanha e Itália mais três, que eram tão pequenininhos naquele momento que se aglomeraram em uma coisa só chamada – como se fosse um eletrodoméstico – Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Foi a partir desse núcleo inicial que as coisas começaram a acontecer.

O mais interessante foi a expansão que ocorreu. A Europa dos Seis durou alguns anos, transformou-se em Europa dos Nove, ficou assim mais uns anos, virou Europa dos 12, depois dos 15, até chegar à dos 27 que existe hoje, com possíveis ampliações. A idéia, portanto, era que a Europa fosse criando uma união real, com um parlamento e cada vez mais uma submersão das nacionalidades e da autonomia de cada país dentro da moldura maior, embora isso tenha gerado outro tipo de problemas. Até agora houve uma internacionalidade, mas a rigor não há uma supranacionalidade. A Constituição européia esbarrou neste ponto: até onde se troca soberania por eficiência? França e Holanda votam contra. Então a Europa tem hoje dois desafios, um em profundidade e o outro em extensão.

Mais adiante há o caso da Turquia, um país islâmico. Como acomodá-lo? É complicado. E o antigo império soviético, como fica? Ucrânia e Geórgia, sim ou não? É uma administração muito difícil. Não houve um abandono de soberanias, legislatura e jurisdições ou uma superposição. Ela continua uma Europa municipal, local, regional, sub-regional, nacional e européia. Criaram-se pirâmides burocráticas extraordinariamente complexas e, além disso, grandes sistemas de acomodação de interesses numéricos e lingüísticos. A cada inclusão de novos países cresce o número de parlamentares. Estaria muito bem se o total passasse de 100 deputados para 110, mas hoje o parlamento europeu tem 760, falando não sei quantas línguas oficiais. O empilhamento de jurisdições leva a um pesadelo burocrático, pois ninguém abriu mão de nada, apenas foram colocando novas instâncias e níveis, o que em parte leva a concluir que o crescimento da comunidade seja hoje muito inferior àquele que seria necessário para mantê-la.

Pouco espaço para muito império

O que mais interessa é que, com 27 estados membros, a Europa hoje tem a dimensão territorial de 4,5 milhões de quilômetros quadrados. É a metade do tamanho do Brasil, o que dá idéia de um dos problemas dos europeus: excesso de ambições e exíguo território, grandes impérios em espaços confinados.

Os europeus enfrentam uma série de dificuldades extraordinárias. A primeira é que o continente não cresce vegetativamente e não gosta de imigração, apesar de necessitar de imigrantes. Isso é difícil de resolver, porque a cultura européia não foi e não é multirracial. Eles têm uma idéia muito clara de nacionalidades próximas, mas precisamente definidas. Administram mal o convívio inter-racial, como durante séculos administraram mal aquele entre religiões. Até o Tratado de Vestefália, as grandes guerras européias eram de origem religiosa, porque o continente tem vocação para o autoritarismo. A Europa não se sente confortável com as formas flexíveis de poder, ela gosta de coisas claras. Aliás, uma das virtudes da inteligência européia é a clareza cartesiana, todos os métodos filosóficos sempre foram muito disciplinados e organizadores. De modo que o mundo disperso e difuso de hoje não é natural ao espírito tradicional europeu.

A união vai num crescendo que leva ao aprofundamento das instituições. Agora é impossível imaginar o continente devolvido à fragmentação anterior. Não funcionaria. Hoje se pode pegar um automóvel e atravessar cinco, seis países numa manhã e almoçar em um sétimo. A idéia de parar em cada fronteira para trocar dinheiro era pitoresca mas é inconcebível agora. Em 1914, a Europa era a senhora do mundo. Não conseguiu voltar a isso, mas sobrevive, é próspera, estável e pacífica. São ganhos extraordinários e têm que ser comemorados. Mas ela não é mais o centro de gravidade do mundo.

O mundo de hoje é desconfortável, em alguma medida, para os europeus, mas as derrotas e as perdas foram compensadas por cultura, produtividade, turismo, excelência. Para administrar esse novo mundo, eles se uniram e reconstruíram uma Europa como nunca houve. Essa Europa, porém, mesmo reconstituída, é apenas um grande fator, e não o que decide o mundo. Ninguém ignora a Europa, mas ninguém lhe atribui um papel central na própria vida.

O problema europeu é que eles não têm mais elementos para voltar a uma posição dominante na vida internacional. Sobretudo com o fim da Guerra Fria, eles perderam uma dimensão de sua importância, que era a dimensão estratégica. Durante a Guerra Fria estavam entre a União Soviética e os Estados Unidos e ali ficava o teatro de operações, com tropas americanas e da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] na Alemanha e, do outro lado, os exércitos do Pacto de Varsóvia, a contrapartida soviética à Otan. E também o Comecon [Conselho de Ajuda Econômica Mútua], que, de uma maneira muito primitiva e embrionária, pretendia ser uma união de países europeus.

Hora do Brasil

A saída procurada pela União Européia agora é buscar parcerias estratégicas com os novos grandes atores que surgiram no mundo. Aí é que entra o Brasil. De 1945 a 1960, o Brasil apostou certo e se fez um dos condôminos da ordem internacional. Não conseguimos então o que pretendíamos desde o tempo da Liga das Nações, que era um assento permanente no Conselho de Segurança. Nisso o Brasil sempre se achou ligeiramente roubado. Como combatente e por ser quem é, tinha de ter um lugar no foro mais seletivo das nações. Não conseguiu. Até 1957, quando se assinou o Tratado de Roma, mantínhamos com os países europeus relações bilaterais. Em 1960, instalamos uma embaixada junto à Comunidade Econômica Européia e, de lá para cá, temos mantido um relacionamento Brasil-Europa, que não eliminou as relações individuais. Um dos paradoxos europeus é que continuamos operando com Estados soberanos e com uma entidade supranacional.

Depois do Tratado de Roma, o documento mais importante é o de Maastricht, que criou a União Européia e pelo qual os atores políticos deixam de ser funcionários internacionais para ser líderes políticos. Jacques Delors foi quem começou a dar a esses atores uma capacidade de interlocução política. Nessa história há três ou quatro coisas muito complicadas. A primeira é que os países europeus, para chegar a uma posição comum, negociaram entre si durante anos. O resultado obtido é um equilíbrio muito frágil entre os 27 membros. A Europa chega sempre exausta à negociação e é rígida, porque não quer reabrir toda aquela frente interminável de acordos. A segunda coisa é que ela não tem um cronograma político eleitoral uniforme. Quando eu ia a Genebra para alguma negociação e apresentava nossa pretensão, era ouvido muitas vezes com boa vontade, mas o argumento deles era: "Embaixador, não podemos ajudá-lo hoje, porque há uma eleição na Dinamarca na semana que vem e o partido que está disputando, se aceitarmos isso, perde. E daqui a seis meses haverá eleições na Suécia..." Existe um calendário eleitoral que os torna continuamente reféns de um processo deliberativo. Portanto, nesse sentido a Europa sofre de um excesso de democracia. E a terceira coisa é que o processo para chegar a uma solução interna leva a um enrijecimento da posição externa. Não é um Estado que fala de forma unívoca, mas são 27 países que encontram uma acomodação momentânea.

O Brasil tem, desde 1960, uma interlocução permanente, ativa e vigorosa com a Europa, cultural e politicamente muito fácil. Entre nós e os europeus há avenidas de afinidades históricas, culturais e lingüísticas, e não é complicado o processo de entendimento e aproximação. O que é complicadíssimo e talvez insuperável é que temos visões divergentes, sobretudo na agricultura. A Europa foi criada com base em um tratado, que não está expresso, mas existe. Quando França e Alemanha se entendem, o que está implícito é o seguinte: os alemães dizem aos franceses que estes dominarão a política agrícola comum, porque a França é, de fato, o país mais importante nessa área, e a França admite que os alemães tenham vantagens, com a eliminação de tarifas e barreiras, na criação de um mercado comum, já que são os mais competitivos e avançados industrialmente. Estou simplificando um pouco, mas não muito. O equilíbrio europeu se deu, então, entre uma primazia industrial germânica e uma agrícola francesa, e desde então nunca se alterou.

O Brasil tem problemas de caráter extraordinário, porque somos cada vez mais competitivos e a Europa tentou, enquanto pôde, conservar-se sempre mais protecionista. Não há crítica nisso, pois qualquer discussão comercial tem que partir dos interesses de cada um naquele momento. Devo dizer que, ao longo de uma extensa vida de negociação, fui protecionista, neoprotecionista, liberal, neoliberal, nacionalista, integracionista. Já fiz todos os papéis, dependendo das cartas que tinha nas mãos. Sem cair no cinismo, devo dizer que, em matéria de interesses comerciais, as posições são determinadas pelas circunstâncias, não há fundamentalismo. É claro que estamos de acordo em que abertura é melhor do que protecionismo, que livre comércio e multilateralismo são melhores que unilateralismo. Concordamos em linhas gerais, mas cada um joga as cartas do momento, das circunstâncias. Portanto, a Europa e nós temos a questão fundamental de o Brasil ser uma superpotência agropecuária e eles serem fechados para esse tipo de investimento. É claro que a Europa dos Seis era muito mais protecionista do que a dos Nove, a dos 12, a dos 15, a dos 16. E na dos 27 não dá mais, sai caríssimo manter o protecionismo. Ele começa a ruir, não por uma conversão de corações, mas por impossibilidade de bancar o jogo, como acontece agora com os Estados Unidos, que estão fazendo uma série de concessões em seus subsídios agrícolas. Sempre fui um grande otimista com relação a Doha, porque sei que essa rodada de negociações tem de funcionar, porque é impossível imaginar um mundo sem Doha. Há pessoas ingênuas que dizem que vamos cair num bilateralismo múltiplo. Não dá para fazer 200 acordos bilaterais com 200 países, seria um caos, a desordem. Então haverá uma redução das expectativas que, por sua vez, vão preparar uma nova rodada, porque nessas áreas não há um fim, são etapas obrigatórias em direção a um mundo cada vez mais integrado.

A Europa tem uma série de problemas que envolvem o Brasil, sobretudo agora que eles nos escolheram como parceiro estratégico. Isso é uma promoção de nosso país a um pequeno grupo de nações com as quais mantêm contatos abrangentes. Temos um diálogo cultural, político, comercial, econômico. A Europa tem ainda no Brasil um estoque de capital investido maior do que na China, na Índia e na Rússia. Para as indústrias européias, o Brasil, entre os BRICs [os quatro principais países emergentes do mundo – Brasil, Rússia, Índia e China], ainda é o destino mais importante, pelo processo de acumulação.

Posição privilegiada

Os europeus têm hoje a percepção de uma relevância, mas não mais de uma predominância. É preciso lembrar que durante três ou quatro séculos o mundo foi eurocêntrico. Os próprios Estados Unidos, embora já com poder, não tinham capacidade de formular. A Europa criou impérios que, como o romano, tinham grande capacidade de ordenar, arbitrar e legislar, mas que apresentaram uma dimensão que nem romanos nem gregos tiveram, que é a marítima. Ela foi acima de tudo um grande império naval. Os impérios da antiguidade clássica são mediterrâneos, param em Gibraltar. A própria China fez uma navegação ou duas, mas eram impérios introvertidos e a Europa foi o primeiro grande império extrovertido, naval. Como Roma tinha suas estradas, os mares são as vias dos impérios europeus, e depois a exportação da cultura, das línguas. Hoje falamos línguas quase todas de matriz européia. Há um Ocidente lingüístico, cultural e religioso que é o mundo que conhecemos.

O Brasil procura com a Europa entendimento desde 1960 e temos hoje uma posição privilegiada, que será melhor quando entrarmos para o G-8 ampliado. Não acredito numa extensão do Conselho de Segurança da ONU, porque é uma estrutura muito complexa, constituída por tratados e acordos tais que é impossível imaginar que alguém possa entrar sem que outros criem obstáculos a essa pretensão. Há países que não têm ambição de poder, mas têm poder suficiente para impedir, de modo que o Brasil pode pretender, mas nossos vizinhos talvez não queiram nos conceder tal privilégio.

O G-8 ampliado será um clube que, em breve, será G-13 ou G-14. A Rússia já está lá, mas entram China, Índia, Brasil, e também África do Sul e México. E surge então outro grande problema, pois será preciso encontrar uma nação islâmica e não há nenhuma que reúna as qualidades de estabilidade, democracia e espírito laico exigidas. Turquia, Egito, Indonésia e Paquistão, cada um é anulado por um fator.

As negociações entre Brasil e União Européia têm duas grandes avenidas. Os europeus num certo momento preferiram privilegiar a relação com o Mercosul, para criar uma contrapartida ao Nafta [Acordo de Livre Comércio da América do Norte]. Um projeto ficou refém do outro. Como não andava mais a relação América do Sul e Nafta, não avançava também o acordo União Européia e Mercosul. Creio que o caminho não é bem esse agora. O Brasil é visto hoje como um ator que não precisa mais de coadjuvantes para ser um interlocutor, porque nossos vizinhos são um pouco sambas de uma nota só. A Argentina, a rigor, tem interesses apenas agrícolas. O Uruguai, menos que isso, apenas pecuários. O Chile teria um pouco mais, mas são pequenos. O Brasil é o único que já tem uma diversificação de interesses no tabuleiro, em que é possível basear uma negociação. Portanto, primeiro penso que o Brasil será incluído no G-8 ampliado, depois G-12, G-13 ou G-14. Logo, o país terá de entrar para a OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico], o braço econômico da Europa. Estamos naquele grupo dos 77, temos de fazer a opção por entrar para um clube que no fundo é sobretudo europeu, mais a presença de Canadá, Estados Unidos, Coréia e Japão.

A Europa nos via com afeto e com condescendência, um Brasil inflacionado e lunático em termos macroeconômicos, que não seria um sócio confiável. É difícil explicar como convivemos com a inflação para quem não viveu com ela, como os europeus desta geração. Pensavam então que éramos pacientes psiquiátricos, sobrevivendo com índices de 30% a 40% ao mês. Para eles a inflação é metáfora permanente de desagregação de valores, como ocorreu na Alemanha dos anos 1930. A desordem, para um europeu, é o prenúncio de uma série de desastres.

Então éramos anárquicos em termos macroeconômicos, tínhamos um peso político e comercial pequeno e pouco a pouco emergimos, como Índia e China. Na verdade, temos sido autocríticos demais, pois estamos na frente desses dois países numa série de fatores. Selecionamos a dimensão em que ficamos muito mal, que é a dos níveis recentes de crescimento econômico, e aí não há dúvida de que o desenvolvimento chinês e indiano é maior. Mas o Brasil já cumpriu muitas das tarefas que a China e a Índia ainda vão fazer. Já nos urbanizamos, por exemplo, ao contrário deles. Somos uma democracia, a Índia também, mas a China não. Temos unidade lingüística e cultural que simplifica, somos mais parecidos com os países com os quais temos de nos aproximar.

A Europa vive um momento extraordinário de prosperidade, o euro é um prodígio de aceitação. O que ajudou a Europa foi o próprio passado. O que impede o avanço do Mercosul, entre outras coisas, é que não temos uma memória traumática para corrigir. Todo europeu teve um parente assassinado por uma tropa alemã ou uma prima-avó violada por soldados, teve a casa bombardeada. Para eles a tragédia da guerra e dos confrontos é memória viva. No Brasil ninguém se lembra de um soldado argentino em Caseros, 150 anos atrás.

Outra coisa: não tivemos a bênção americana que favoreceu a Europa quando temia a União Soviética. A Europa poderia ser, como foi, um grande projeto, e o Mercosul é uma primeira etapa. A não ser um louco, ninguém pode achar que o Mercosul é o fim de uma linha. Ele tem de ser o início de um jogo que vai nos levar cada vez mais adiante. Estive há poucos dias com Durão Barroso, que não só é presidente da Comissão Européia, como é tataraneto do almirante Barroso. O pai nasceu em Copacabana, portanto ele tem conosco as afinidades que normalmente existem entre nós e os portugueses. Ele disse que a Europa começa a acreditar num Brasil diferente, não o país com que sempre simpatizaram, animado, alegre, esportivo, sensual. Isso está lá ainda e não deve ser mexido, porque é uma coisa boa e agradável, mas eles começam a nos considerar um jogador significativo. O objetivo dos espanhóis e dos portugueses é muito claramente criar, num espírito de latinidade, um contrapeso ao poder americano e, futuramente, ao chinês. É a idéia de aproximação.

Portanto, creio que temos uma relação fácil, fluida e marcada, se Deus quiser, por conflitos crescentes com a Europa. No Itamaraty não há um só contencioso entre Brasil e Afeganistão, por exemplo. Com os Estados Unidos há um número crescente de painéis, com a Argentina infinitos problemas. O que quero dizer é que a problemática do contencioso é o sinal da relação viva. Então com a Europa começa a haver cada vez mais conflitos, porque há cada vez mais investimentos, presença, turismo e agora, de certa maneira, no nordeste brasileiro um dado novo, uma recolonização benévola. São pessoas aposentadas que vêm morar no Recife, em Porto de Galinhas ou em Trancoso. O Brasil passa a ser de novo sedutor, sob outra linguagem.

Debate

ROBERT APPY – Vivi a 2ª Guerra na França e acompanho o desenrolar do cenário atual. Um ponto que me parece importante, e que representou um drama para a União Européia, foi a recusa do texto da nova Constituição por parte da França e da Holanda. Devo dizer que também votei contra, porque era uma Carta que dava muito poder burocrático à União Européia – o que não significa que compartilho das idéias de Nicolas Sarkozy, que quer uma simplificação exagerada da comunidade. O que realmente me interessa como franco-brasileiro, no entanto, é a questão agrícola. Penso que se cometeu um erro tático. Os agricultores franceses têm um peso político que não justifica a preocupação de protegê-los e deveríamos ter feito propaganda e mostrado ao consumidor de lá quanto custa esse protecionismo. Porque o francês tem o coração à esquerda mas a carteira à direita, e teria sido muito mais sensível a esse argumento.
Quanto ao Mercosul, temos diversos problemas. Um é a Venezuela, que não será aceita pela França. Também precisamos reconhecer que o Mercosul não é um exemplo de êxito, não tem unidade, voltamos sempre a um protecionismo horroroso e receio que isso impeça uma solução que seria desejável.

AZAMBUJA – Em relação ao ponto central da construção da comunidade européia, sua hesitação é verdadeira. O burocratismo é da natureza de Bruxelas, que não é conseqüência de uma guerra, como foi a independência americana. Bruxelas é o resultado de um empilhamento burocrático. Estamos acostumados a ver Estados nascendo na ponta da espada, como fizeram Bolívar e dom Pedro I no Ipiranga. É um ato de uma certa simplicidade. Bruxelas, ao contrário, é um pesadelo de burocracias associadas a outras burocracias, agindo burocraticamente. A Constituição vai sair – não quero apoiar Sarkozy –, mas será uma Carta mais simples. A Europa andou um pouco além das pernas. Dizem que ela tem a lógica da bicicleta, e um pouco isso é verdade: ou ela cresce e se aprofunda ou cai. A lógica está no pedalar e no ampliar-se continuamente. Creio que vai surgir uma Constituição mais simples, menos ambiciosa, válida por uns tempos, para que haja digestão.
Sobre o protecionismo europeu, participei de inúmeras campanhas contra ele. Nosso argumento tem sido sempre o seguinte: o Brasil não é um país de bárbaros que queiram destruir o camembert, que desejem que os vinhos de Borgonha desapareçam ou que a cozinha francesa deixe de ser a excelência que é. O que somente queremos é que produtos altamente subsidiados pela Europa não disputem terceiros mercados conosco. É surpreendente verificar que o mais importante exportador de café no mundo seja a Alemanha.
Portanto, não estamos combatendo produtores de queijo dos Alpes, de Utrecht. O que estamos tentando evitar é que se use esse imenso muro de proteção para disputar conosco frangos na Arábia Saudita e café na Indonésia. Mas creio que isso está diminuindo. Cada vez mais a agricultura pesa no pensamento europeu e cada vez menos europeus vivem no campo. O problema são os que estão lá. A Europa gosta de sua conformação territorial, os franceses chamam de aménagement du territoire. Não querem que essa gente venha para as cidades, pois acreditam que isso mudaria politicamente o país. A questão é que as minorias, quando vão ficando menores, tornam-se mais influentes. Um exemplo: Israel é um país em grande parte de moderados, mas 4% ou 5% pertencem a partidos intensamente radicalizados. No entanto, como as decisões lá sempre são tomadas por 2% ou 3% do eleitorado, esses 5% são decisivos. Em outras palavras, em qualquer eleição francesa os 12% do interesse agrícola, a minoria ativa, é que decidem.
Quanto ao Mercosul, tenho horror a Hugo Chávez, que é muito pior que Fidel Castro, porque o cubano tinha legitimidade em sua trajetória, sua coragem, sua luta contra a opressão americana. Ele tinha uma causa. O venezuelano não tem nada disso. O problema nosso é que hoje a Venezuela é o segundo maior superávit comercial do Brasil. Como agir com um vizinho que é importante? Chávez é um problema muito maior do que Cuba, seu país não é insular e ele não precisa do dinheiro dos outros para agir, pois tem recursos. Com o petróleo ao preço que está, não há limites para o que pode fazer. Portanto, tenho grandes dúvidas se ele seria "convivível", num processo de integração.

JOSUÉ MUSSALÉM – A 1ª Guerra virou mundial quando os americanos entraram nela em 1917, e pouca gente sabe que o Brasil também declarou guerra à Alemanha. Wenceslau Braz, então presidente, assinou a declaração e uma unidade da marinha, a Divisão Naval de Operações de Guerra, fez um passeio até a costa da África para um patrulhamento com dois couraçados, Minas e São Paulo, mas não se disparou um só tiro.
No pós-guerra houve prosperidade, principalmente nos Estados Unidos, de 1920 a 1929. Esse desenvolvimento aconteceu em contraponto à desgraça alemã. O Brasil teve momentos importantes, no período de 1937 a 1942. O Estado Novo ampliou nossas relações com a Europa e também com os Estados Unidos, que foram gradativamente ficando mais fortes à medida que o conflito crescia. Os americanos trataram muito bem o Brasil nesse período, mas nos abandonaram depois de 1945, o que gerou grande mágoa nas forças armadas brasileiras.
Na visão dos alemães o Brasil também era importante. Há um trabalho do embaixador Sérgio Corrêa da Costa...

AZAMBUJA – Brasil – Segredo de Estado.

MUSSALÉM – ...exatamente, um trabalho magnífico, em que mostra que a Grosse Deutschland, ou seja, a Grande Alemanha, ultrapassava a fronteira da Europa, alcançava a América do Sul, entrando pela Argentina, e no Brasil atingia o Rio Grande do Sul, Paraná e São Paulo. A visão do escritório nazista de ampliação do espaço vital da Alemanha era maior do que Hitler tinha previsto em Mein Kampf.
Outra coisa interessante: o Brasil não faz parte do Conselho de Segurança da ONU também por conta da arrogância britânica. Foram três os momentos em que essa atitude, herança da 2ª Guerra Mundial, se manifestou. Primeiro, o apresamento do navio Siqueira Campos, em 1940. Depois uma tentativa de apreensão, no Recife, de um navio de bandeira norueguesa, no mesmo ano, na praia da Boa Viagem, uma invasão das águas territoriais brasileiras. E finalmente, junto com a União Soviética, o impedimento ao Brasil de fazer parte do Conselho de Segurança da ONU.

AZAMBUJA – O Brasil participou da 1ª Guerra Mundial de maneira honrosa. Havia dois hospitais de sangue brasileiros em Paris. Eles serviram pouco aos feridos de guerra, mas imensamente às vítimas da gripe espanhola. Assim, o país acabou ajudando pessoas que tinham sido atingidas por uma doença que matou quase tanta gente quanto a própria Grande Guerra.
O Brasil saiu da Liga das Nações porque se considerou ofendido por não ter sido incluído em seu Conselho, que então equivalia ao Conselho de Segurança. Nosso país sempre foi aspirante ao círculo diretor mais íntimo e sempre ficou fora. Até algum tempo atrás isso se devia um pouco à intervenção ou ao constrangimento dos argentinos. A idéia, até 1900 e poucos, era que a Argentina era uma potência equivalente ao Brasil. Hoje, pela primeira vez, este não tem na América do Sul nenhum país que lhe faça contraste como massa crítica econômica, comercial, tecnológica e demográfica. Em outras palavras, pela primeira vez pode-se colocar o Brasil no G-8 ampliado sem risco de uma retaliação qualquer, porque é evidente que nossa titularidade é maior.

NEY FIGUEIREDO – O senhor falou da insignificância da América do Sul e citou o Brasil, pouco antes da 2ª Guerra Mundial, lá por 1938. Mas não falou nada da Argentina. O ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, lançou recentemente um livro em que afirma que a Argentina em 1938 tinha uma importância econômica maior que a Alemanha, correspondia a três quartos dos Estados Unidos, e que já havia erradicado àquela época o analfabetismo. Greenspan atribui a derrocada argentina à política populista de Perón. Gostaria de ouvir a sua opinião sobre o que aconteceu com nossos vizinhos.

AZAMBUJA – Primeiro uma referência ao que foi dito antes. Os Estados Unidos, num certo momento, sentiram que a Argentina, mais do que nós, tinha propensões germanófilas e lançaram uma política de boa vizinhança, na tentativa de capturar hearts and minds. Foi a época de Carmen Miranda, Tres Caballeros, Zé Carioca, Orson Welles. Em suma, houve uma imensa ofensiva de sedução. Quanto a sua pergunta, a Argentina é um paradoxo e ninguém consegue explicar o que aconteceu. Ela é inexplicável. Teve os melhores auspícios possíveis, mas sofreu um processo de involução muito interessante. Há explicações teóricas que atribuem isso à alma do tango, um desejo do fracasso, uma degradação. Ou à ausência de rivalidades, a aposta errada no populismo e no nacionalismo e a busca de uma industrialização para a qual eles não tinham meios. Em outras palavras, um paradoxo. Não conheço nenhum país que começasse tão bem e tivesse acabado tão embaixo, sem nenhum fator de interferência. Não foi o resultado de uma invasão ou de uma guerra, apenas um processo de desagregação. Cada um tem uma teoria, a minha é que eles são incapazes de organizar uma síntese eficaz. Não conseguem conciliar o interior com Buenos Aires, Rosas com Mitre, Europa com Estados Unidos. Não se põem de acordo, e não é sobre o futuro, mas sobre o passado. É um país em que é difícil trazer alguém, morto há cem anos, para enterrar. Não conseguem trazer Rosas, não conseguiram sepultar Eva Perón. O país tem muita dificuldade para administrar seus ressentimentos.
Talvez o momento mais significativo da Argentina tenha ocorrido quando San Martín conquistou o Chile. Foi até o Peru, houve aquela famosa entrevista com Bolívar, voltou e embarcou para a Europa. Depois de muitas crises chamaram-no de volta, mas ele não desembarcou, ficou no porto de Buenos Aires, considerou aquilo uma tal encrenca que foi embora de novo. É o caso inédito de um prócer nacional que regressa ao país de origem consagrado como o pai da nacionalidade, recebe a bordo líderes de um lado e de outro e decide voltar para a Espanha.
Então, o problema central da Argentina é a dificuldade de fazer uma síntese. O Brasil faz sínteses, o Brasil vai administrando. Por exemplo, Canudos se incorporou à história do Brasil, como dom Pedro I, dom Pedro II. A Argentina, ao contrário, foi criando sempre divisões.

ZEVI GHIVELDER – O senhor pinçou com muita propriedade a questão da debilidade européia quando se referiu à crise do Canal de Suez, em 1956. A esse respeito lembro-me de uma frase preciosa do Raymond Aron: "Cada vez que a Europa se intromete em assuntos do Oriente Médio, tenho a impressão de ver alguém passando um cheque sem fundos". Mas o que quero ouvir é sobre um aspecto da União Européia que sempre me intrigou: como entender a relutância britânica com relação à comunidade?

AZAMBUJA – Eu devia ter falado disso. Os ingleses se referem à Europa como The Continent, eles se distanciam e a insularidade britânica é uma identidade. A Inglaterra criou um império de imensa proporção e fixação e é mãe de diversos países, como Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos, Austrália. Foi uma potência imperial só comparável a Roma como fundadora de comunidades, embora se dividam entre colônias de fixação e colônias de exploração. Ela se vê sempre com dualidade. É européia, sem dúvida, mas é atlântica, é líder da Commonwealth e se vê privilegiada por uma relação de anglofonia, sobretudo com os Estados Unidos. Portanto, quando começou o processo de integração, ela não acreditou que aquilo fosse andar, sempre houve certo desdém. E criou uma zona alternativa, que é a EFTA [Associação Européia de Livre Comércio], algo menos ambicioso que a União Européia, apenas para livre comércio. Depois se deu conta e, quando quis entrar, surgiu uma vingança dulcíssima de De Gaulle. Durante dez anos os ingleses bateram à porta inutilmente e não entraram, porque o líder francês resolveu se desforrar das humilhações de ter sido refugiado em Londres. Na Europa há muitos acertos de contas interpessoais, e o general tinha sido tratado lá como um chato. Churchill dizia: "De todas as cruzes que tive que carregar na vida, a mais pesada foi a cruz de Lorena". Esse era o símbolo de De Gaulle.
Em outras palavras, a Inglaterra quer preservar sua atlanticidade, a Commonwealth, sua aliança especial com os Estados Unidos. E a Europa deseja uma adesão mais completa, mas por sua vez tem medo de que os ingleses sejam um cavalo de Tróia americano. Portanto, creio que se assistiu a uma hesitação inglesa, depois a um desejo, e até hoje eles não aderiram ao euro. Aliás, dos 27 países só 12 utilizam a nova moeda. A Inglaterra é um sócio relutante, é e não é.

OLIVEIROS S. FERREIRA – Embaixador, gostaria que o senhor nos dissesse: a Europa tem idéia de ser Europa?

AZAMBUJA – Creio que há uma dualidade. Um jovem europeu se acha europeu não tanto por ser, mas por não ser outras coisas. Ele não é asiático, africano, latino-americano. A europeidade vem de uma história, é um samba-enredo que desfila há muito tempo. Há essa percepção. Uma coisa que me fascina é que há na Europa um grande sentimento integrador. Qualquer pessoa pode obter um passaporte francês em meia hora e se declarar francês. Mas ele não pode ser normando, bretão, provençal, catalão ou galego. No entanto, há na Europa de hoje uma valorização das identidades viscerais, não quero dizer étnicas, mas aquilo que se é por uma razão indiscutível de origem. São os europeus de origem, de matriz, para distinguir dos europeus de passaporte ou de documentação.
Então há um sentimento europeu nos pequenos países, como Bélgica e Holanda, mas na Alemanha e na França a identidade nacional preexistente é muito importante, na Inglaterra mais ainda. Nota-se uma grande europeidade nos países do antigo Leste Europeu, que querem ser incorporados e sabem que a Rússia é ainda muito grande e forte. Há uma identidade, mas o hino europeu não é cantável, é um lindo trecho da música de Beethoven, mas não é possível cantar aquilo num estádio.
Minha impressão é de uma Europa hoje muito regional. Quando chego em La Coruña, vejo pessoas que se sentem cada vez mais bascas. Então elas aceitam não a identidade, mas uma moldura européia como natural. Não é uma adesão que venha do âmago, das vísceras.

ISAAC JARDANOVSKI – Como vê o conflito entre flamengos e valões na Bélgica?

AZAMBUJA – Esses conflitos não têm solução, o que há são acomodações. Não penso que haja um desacordo aberto, mas são identidades diferentes. Ninguém cede identidade. Posso abrir mão de interesses, mas a identidade é minha própria matriz, sou eu. Acredito que, com a delegação de poderes crescentes e autonomias regionais, há na Europa uma visível redução dos conflitos locais. A Irlanda é um exemplo, o país basco outro, como a Galícia e a Catalunha. Os Estados estão ficando menos majestáticos na sua univocidade. Mas a identidade muda muito devagar. O que me parece é que o problema hoje na Europa não é esse, mas a imigração. Há uma rejeição ao imigrante, principalmente de origem islâmica, sobretudo na periferia das grandes cidades.

MARIO ERNESTO HUMBERG – Tenho uma pergunta de caráter empresarial. Parece-me que as empresas brasileiras, nesse processo atual de expansão internacional, não têm muito foco na Europa. Vemos isso na busca por novos negócios no exterior, como no caso da Vale do Rio Doce, que comprou a Inco no Canadá, da Gerdau e da Votorantim, que marcaram presença nos Estados Unidos, entre outras. O objetivo das empresas brasileiras, portanto, não é a Europa.

AZAMBUJA – Isso é verdade. A relação Brasil-Europa significa muito investimento europeu no Brasil e pouquíssimo brasileiro lá. Nós pensamos três coisas da Europa – digo isso mas não endosso. Primeiro, é muito caro se estabelecer. Segundo, é muito complicado. Temos impaciência com aquele imenso emaranhado de regras, muitas das quais têm razão legítima, outras são apenas camuflagem protecionista ou destinam-se a obrigar à contratação de pessoas ou meios locais. E, terceiro, há uma idéia brasileira que reflete nosso complexo de inferioridade: aquilo não é para o nosso bico, usando uma expressão vulgar. É a idéia de que a Europa tem patamares de excelência, qualidade, rigor técnico e exigências que não são para nós. Há certa aversão à idéia de investir lá, mesmo porque não houve até agora nenhuma success story. Minha convicção, depois de muitos anos de trabalho nessa área, é que é necessário um sucesso para atrair outros. A Embraer funciona bem na Europa, a Companhia Siderúrgica Nacional tem uma fábrica em Dunkerque, mas em momento nenhum houve um caso de empresa que se instalou lá e teve um lucro extraordinário.
A superposição das legislações nacionais com as européias – um paraíso para advogados e consultores – é literalmente um pesadelo. Nenhuma lei é aposentada, tudo é combinado com novas normas. E na Europa agora estão se criando comunidades subeuropéias, o Mediterrâneo é um mundo, o mar do Norte outro.

EDUARDO SILVA – Nestes últimos 20 anos o Brasil tem estado praticamente paralisado, nossa infra-estrutura não consegue crescer. Gostaria de ouvir sua opinião sobre como fazer o país acordar. Precisamos avançar primeiro com a infra-estrutura – meios de transporte, portos, aeroportos etc. Se não tomarmos rápidas providências, vamos levar talvez mais 20 anos para crescer. Aí não adianta falar em G-8, G-10 ou qualquer outro G.

AZAMBUJA – O diagnóstico, grosso modo, é verdadeiro. Noto hoje uma exportação de capitais brasileiros e implantação de empresas brasileiras como nunca houve antes. Pela primeira vez creio que somos um país com um saldo líquido entre saída e entrada de capitais. Antes havia um voluntarismo excessivo, desacompanhado de uma base real de poder econômico. Vou simplificar. Participei de grandes ofensivas comerciais na África, mais afetivas do que realistas. Era a idéia de que nossa africanidade seria suficiente para gerar benevolência, o que não existiu. O Brasil inventou então que iríamos produzir as chamadas tecnologias intermediárias, com a idéia de que o pobre prefere o mais ou menos ao bom. O pobre prefere o muito bom, e o que vendíamos não era de grande qualidade. Cometemos o pecado de acreditar nisso. Depois, nossas incursões no Oriente Médio não foram as mais afortunadas. No caso do Iraque fomos estimulados por uma série de fatores, inclusive pelos Estados Unidos, que naquele momento abençoavam qualquer investimento naquele país, que contrapunha um sistema laico sunita ao xiismo beligerante do Irã. Não funcionou também.
Não temos muitas success stories até agora para mostrar. Na América Latina, sim, começa a haver uma presença. Estamos comprando cada vez mais frigoríficos e abatedouros fora do Brasil, e começa a haver presença brasileira não só como principal exportador de carne do mundo, mas como operador muito importante em outros países. Enquanto havia aquela mixórdia macroeconômica brasileira, era difícil organizar projetos aqui dentro, imaginem lá fora. Agora começa a haver ordenamento. O que nos falta ainda é cosmopolitismo. A exemplo da China, que até pouco tempo atrás era muito introspectiva, o Brasil olhava para o próprio umbigo. Um país não se faz apenas autarquicamente, para dentro. O que noto é que, com a Embraer, Vale do Rio Doce e Companhia Siderúrgica Nacional, começam a surgir empresas brasileiras com fôlego para ocupar espaço internacional. Antes faltava gás.
Houve um tempo em que o Brasil acreditou ser capaz de produzir tudo aqui dentro. Havia um supermercado com cem gôndolas e uma lojinha com uma faixa: "Importados". Era como se fosse venda de material pornográfico, uma coisa assim discreta, à margem do negócio, porque havia vergonha de importar. A importação era uma admissão de fracasso. Não é uma crítica a tudo, mas quero dizer que havia ingenuidade nisso.
Uma digressão. Certa vez o Uruguai quis nos vender arroz, e toda a produção uruguaia desse grão correspondia a 12 dias do consumo brasileiro. E eles tinham apenas o que equivalia a sete dias de nosso consumo. Imediatamente os produtores de arroz do Rio Grande do Sul colocaram tratores e máquinas nas estradas para impedir a "invasão" do produto uruguaio. Criticamos muito o protecionismo dos outros, mas temos uma imensa proteção, a idéia de fechar o mercado.

OLIVEIROS – A projeção brasileira no exterior afetará nossa política interna?

AZAMBUJA – Desde o tempo de Pedro, o Grande, na Rússia, o exterior é uma escola fantástica. Ninguém vai para um lugar, seja um jovem médico, seja um empresário, sem aprender muito. O mundo é uma lição extraordinária, traz modelos e matrizes, certos padrões de qualidade. Pouco a pouco, a ida para fora gera uma educação, uma modelagem para dentro. Ninguém passa dois anos em Zurique e volta para cá sem tentar mudar alguma coisa, vem quase que epidermicamente. Não se mandam mil jogadores de futebol para fora sem que isso tenha, a médio prazo, uma conseqüência. Vão voltar como técnicos, como fabricantes, começa a haver massa crítica até em esportes. O Brasil se fez mais de fora para dentro até agora. Somos filhos de uma imigração. Algum tempo atrás estive na Índia e depois fui ao Sri Lanka, onde há grande produção de chá. Conversei muito tempo com um habitante local e a certa altura passamos por uma grande jaqueira. Quando vi a árvore, disse que era uma planta brasileira, me trazia recordações de infância etc. E ele me disse: "Jack tree". A árvore é na verdade indiana e veio para o Brasil, onde jack virou jaca. A primeira globalização foi botânica.

NEY PRADO – Sabemos que no estudo da política externa há na doutrina duas correntes que disputam a hegemonia: idealismo e realismo. A fonte do idealismo vem da Liga das Nações, com as pregações do presidente Thomas Woodrow Wilson, que sempre imaginou ser possível o mundo se compor em torno de princípios e de valores, e que isso pudesse no futuro redundar em um governo universal. Por outro lado, o realismo acredita que os países lutam por interesses, que os valores são nacionais e que a ética não pode ser considerada senão uma relação objetiva e interesseira. Alguém já disse que a grande diferença, em política externa, entre os Estados Unidos e a União Soviética, que de certa forma se aplica até hoje, é que os americanos foram sempre muito realistas no campo interno e idealistas externamente e a União Soviética sempre foi idealista internamente e realista no campo externo. Isso explica a cruzada americana de querer levar a democracia a culturas totalmente avessas a essa visão do mundo e da política. Como é que a Rússia de hoje se mantém dentro dessa dicotomia entre idealismo e realismo?

AZAMBUJA – Dizer liberdade, igualdade e fraternidade não garante que essas coisas existam por 100 ou 200 anos, mas é importante que se fale delas. Sou muito exortatório, penso que ordem e progresso não descrevem bem o Brasil, mas não é mau que sejam nosso lema. Em outras palavras, o lema não é apenas um rótulo que descreve o que é, mas uma aspiração do que pode vir a ser. Sou favorável ao idealismo como motor de ação. A civilização se faz com uma idéia de aperfeiçoamento sucessivo. Não se pode, porém, transformar isso numa noção de curto prazo. Portanto, acredito que numa potência média como o Brasil o componente é não estritamente realista. Entendo realismo como real politique, não o conceito bismarckiano. O Brasil não é cachorro tão grande que possa jogar em qualquer idéia de unilateralismo, não temos massa crítica para isso. Gosto do mundo ordenado por certas molduras de comportamento consensuais, mas sou multilateralista sem ilusões. Penso que vamos a caminho de organizar cada vez mais sistemas em que a operação seja previsível, racional. Sem realismo a coisa fica ingênua, impossível de administrar. E sem idealismo caímos num cinismo perigoso, sobretudo para quem não é poderoso o bastante para ser um ator unilateral.

NEY – E a Rússia, à luz da União Européia?

AZAMBUJA – Depois de tudo o que foi o marxismo e a União Soviética, a Rússia voltou a ser essencialmente ela mesma. Continua um imenso império ainda com a coligação de Estados dentro dela. Como dizem os ingleses, é difícil a um tigre mudar de manchas, e não se ensinam truques novos a um cachorro velho. Tenho muito poucas ilusões. A Europa no fundo não é mais do que uma península asiática. Acredito, portanto, que a Rússia voltou a privilegiar agora sua dimensão europeizante, porque se separou daqueles elementos mais claramente asiáticos. O que aconteceu na Rússia ninguém previu. Há milhares de teses de doutorado e nenhuma acertou. Quem chegou mais perto foi a francesa Hélène Carrère d’Encausse, que escreveu livros sobre o império implodido, mas a idéia dela é que haveria sublevações nas repúblicas soviéticas da Ásia central, que se separariam. Para ela o colapso não viria do centro, daquela maneira e naquela velocidade.
Termino com uma frase de Alfred Whitehead: "The business of the future is to be dangerous" – a função do futuro é ser perigoso. Isso garante a todos nós longo emprego e muita diversão. 

 

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