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É possível plantar sem desmatar

Experiências mostram a viabilidade de cultivo sem derrubada de árvores

MAURÍCIO MONTEIRO FILHO


Agnaldo Lima: "Bagunça que
dá vida à terra"
Foto: Maurício Monteiro Filho

Desmatamento zero, aquecimento global e seqüestro de carbono são expressões popularizadas pela crise ambiental planetária, que, infelizmente, não fez o mesmo com as soluções para esse quadro. Uma delas, no entanto, cuja origem pode ser encontrada nas técnicas tradicionais de cultivo, vem despertando interesse no país. Trata-se dos chamados sistemas agroflorestais (SAFs) – uma maneira de produzir no campo com diversidade, mantendo a mata nativa de pé.

Agnaldo Vicente de Lima é um dos produtores brasileiros que embarcou nessa modalidade agrícola. "Quem chega aqui, acha uma bagunça", vai logo dizendo, à entrada de sua terra. Ele fala do aparente caos de espécies vegetais que povoam seu lote no Assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Sepé Tiaraju, em Serra Azul, região nordeste do estado de São Paulo. "Mas essa é uma bagunça que dá vida à terra", justifica.

Como ele, agricultores de norte a sul do país, especialmente de pequeno e médio porte, estão aderindo a essa verdadeira revolução que pode ajudar a atenuar a preocupação global com os descaminhos do meio ambiente e principalmente frear as taxas de desmatamento que já respondem por um terço das emissões nacionais de carbono.

Mais tecnicamente, o professor Ivan Crespo, da Universidade Federal do Paraná, define SAFs como "formas de uso múltiplo da terra com a presença de espécies arbóreas e agrícolas, com ou sem a criação de animais". Segundo ele, a virtude desses sistemas é atender bem a critérios produtivos, ambientais e sociais.

Crespo, que é também presidente da Sociedade Brasileira de Sistemas Agroflorestais (SBSAF), diz que essas características permitem que eles tenham as mais diversas aplicações. Do ponto de vista do meio ambiente, uma importante vantagem da agrofloresta é possibilitar a recuperação de áreas degradadas e matas ciliares – aquelas que margeiam rios e riachos. Além desse benefício, os SAFs podem atrair animais e aves e reduzir os riscos de variações bruscas de temperatura e de regime de ventos, e prevenir a erosão.

Fabiana Peneireiro, engenheira agrônoma, acrescenta que a agrofloresta, ao contrário da agricultura convencional, "torna o solo cada vez melhor". Segundo ela, a monocultura muitas vezes se assemelha a uma "mineração", ao passo que os SAFs retomam o objetivo primordial dos cultivos: a convivência harmônica com a natureza. "A terra não foi feita para ser explorada, mas para ser cultivada", argumenta. A opinião de Fabiana escora-se numa larga experiência em agrofloresta. Ela fez sua dissertação de mestrado com base nos trabalhos do pioneiro em SAFs Ernst Götsch, que há mais de 25 anos trabalha com o tema.

O lote de Agnaldo é uma prova concreta das vantagens do sistema. Esgueirando-se entre as plantas, ele percorre a terra enumerando dezenas de espécies frutíferas e arbóreas que ali convivem em perfeita harmonia: manga, caju, açaí, acerola, coco-anão, mamão, abóbora, banana, caqui, lichia, mandioca, flamboyant, pau-d’alho, angico. Ou a mamona, a partir da qual Agnaldo pretende produzir biodiesel para consumo no próprio assentamento. A lista poderia continuar por páginas e páginas. Tudo isso em apenas cerca de meio hectare.

Agnaldo explica que a lógica dos SAFs é que as plantas beneficiem umas às outras, criando um ambiente em que todas possam se desenvolver plenamente. Seguindo esse raciocínio, ele substituiu os fertilizantes e todo tipo de insumo por espécies que possam fazer o papel de "adubos verdes". É o que acontece com o feijão-de-porco, por exemplo. O depósito de suas folhas e sementes no solo garante o abastecimento de nutrientes necessário para que as outras plantas cresçam.

No caso do terreno de Agnaldo, essa função era essencial. "Isto aqui era a estrada por onde passavam os caminhões carregados de cana-de-açúcar", conta ele, relembrando os tempos em que aquelas terras constituíam a Fazenda Santa Clara, que pertencia à Usina Nova União. Por isso, o solo estava completamente degradado.

Essas associações vegetais, conhecidas como consórcios, são a base dos SAFs. Apesar da recente seca extrema e da luz solar agressiva, característica da região onde está o PDS, Agnaldo garantiu a sobrevivência de sua lavoura usando uma de suas "parceiras naturais" (como ele chama as plantas que possuem qualidades benéficas ao sistema): as bananeiras. Além de tê-las espalhado por todo o lote, ele distribuiu as cascas de seus caules pelo terreno, para que desprendessem a umidade que retêm e mantivessem o suprimento de água. "Na ciência agronômica, existe a convicção de que há competição entre as espécies. Os SAFs acabam com essa certeza", afirma ele.

Outra constatação de que na agrofloresta prevalece a cooperação é uma árvore que exala um cheiro peculiar, também presente no lote de Agnaldo. A espécie em questão, originária da Índia, é conhecida como nim e funciona como defensivo contra pragas e insetos. Com isso, elimina-se também a necessidade de investimentos em produtos químicos que façam esse papel. Ou mesmo em sementes transgênicas em que esteja incorporada a resistência a pragas.

Olhando para suas árvores crioulas – "iguais às dos tempos dos nossos antepassados" –, Agnaldo estima que logo estará colhendo os frutos de seu trabalho. "O salário vai ser gordo", anima-se ele, que é também presidente da Associação Comunitária do Assentamento PDS Sepé Tiaraju (Agrosepé).

Vizinha de Agnaldo no Sepé Tiaraju, Maria Madalena Concheta acabou de plantar 300 novas mudas de árvores frutíferas para iniciar seu próprio SAF. Moradora do assentamento há três anos, ela explica o motivo de ter optado pela agrofloresta: "A gente viu a roça dos vizinhos dando certo", diz ela, referindo-se ao lote de Agnaldo.

Amante do verde, Madalena conta que, mesmo na época em que morava na cidade, buscava cultivar pés de frutas, ainda que num pequeno terreno de 250 metros quadrados. "Tinha até um de pêra, que é difícil de dar. Eu botava água para gelar e despejava na raiz da árvore para ela crescer", conta.

Agora, Madalena, que antes dependia de seus cultivos de abóbora, mandioca e milho para sustentar as sete pessoas que vivem em sua casa, vai poder contar com uma diversidade maior de produtos, entre os quais laranja e figo.

E ela exprime o que os próprios técnicos da ciência agronômica já reconhecem sobre os SAFs. "Quando eu era criança, na lavoura, esse manejo todo, que eu achava muito ruim para capinar, já era agrofloresta. Só que não tinha esse nome", rememora. E completa: "Foi meu pai que me ensinou que numa pequena terra a gente pode colher muita variedade".

Retorno às origens

A experiência vivenciada pelos assentados do Sepé Tiaraju é também realidade em diversas outras partes do Brasil. E não poderia ser diferente na Amazônia, onde o desmatamento gerado pelo avanço da fronteira agrícola com a introdução da pecuária e da monocultura de soja e a própria expansão populacional são ameaças à floresta difíceis de debelar. Como os cultivos baseados no processo de derrubada e queima não têm se mostrado capazes de garantir harmonia entre os produtores e o meio ambiente, a agrofloresta vem se apresentando, de leste a oeste da mata, como solução para os agricultores da região.

"Na realidade, toda produção que se aproxima das técnicas tradicionais de manejo é um SAF. É assim com os caiçaras em São Paulo, com os lavradores do vale do Ribeira. O modo de produzir das comunidades mais antigas da Amazônia é baseado na agrofloresta", declara Flávio Gandara, professor do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP).

Osvaldo Kato, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Amazônia Oriental, conta que, durante as décadas de 1970 e 80, sistemas semelhantes aos SAFs foram difundidos na Amazônia. Naquela época, porém, eles estavam vinculados a planos de estímulo à borracha – Programa de Incentivo à Produção de Borracha Vegetal (Probor) – e ao cacau. Essas iniciativas estavam voltadas para a produção mais intensiva desses gêneros, e por isso restringiam a associação com uma grande variedade de espécies.

Atualmente, entretanto, a prática dos SAFs vem sendo impulsionada de maneira mais organizada pela Embrapa. Entre os imigrantes japoneses da região de Tomé-Açu, no Pará, a agrofloresta se tornou uma alternativa para aumentar a produção de suas terras, que estavam muito voltadas para o plantio de pimenta-do-reino. Nelas, foram incluídos cultivos de cacau, açaí e guaraná. Kato estima que, na região, haja atualmente entre 8 mil e 10 mil hectares ocupados com SAFs.

Professor de mestrado em agricultura familiar na Universidade Federal do Pará, Kato realizou um levantamento em municípios do nordeste desse estado e constatou que os SAFs estão sendo bastante praticados. É difícil precisar esse incremento em números, uma vez que a implantação do modelo atual é relativamente recente. A difusão desses sistemas, no entanto, especialmente entre agricultores familiares, tem surpreendido os especialistas.

O aumento é evidenciado pelo próprio Congresso Brasileiro de Sistemas Agroflorestais, organizado pela SBSAF. Segundo Crespo, em 1989, quando foi realizada a primeira edição, foram apresentados por volta de 20 trabalhos. Em 2006, ano do último congresso, o número saltou para 700, com pesquisas de todo o país, da América do Sul e de diversas outras nações.

De acordo com ele, dos milhares de empreendimentos baseados em SAFs que estão sendo conduzidos no Brasil, a maior concentração encontra-se na região norte. "Isso se explica pelo fato de que lá está a vegetação modelo para a agrofloresta, que nada mais é do que uma maneira de imitar a mata e sua biodiversidade", justifica.

Atualmente, Kato acompanha cerca de 80 famílias de produtores por meio dos projetos da Embrapa em que está envolvido. "Por volta de 90% delas estão adotando os SAFs", calcula. Seu desafio agora é expandir esses sistemas para as regiões sul e sudeste do estado, onde estão os maiores problemas fundiários e ambientais do Pará, além da maior incidência de trabalho escravo do Brasil.

Do outro lado da floresta, a Embrapa Amazônia Ocidental, sediada em Manaus, também tem acompanhado boas experiências com SAFs. A mais expressiva delas é um projeto iniciado em 2005 que os colocou como alternativas de desenvolvimento sustentável para as 127 comunidades localizadas 5 quilômetros ao norte e ao sul do gasoduto Coari-Manaus. "Foi feito um diagnóstico para atender as necessidades de cada uma. Algumas trabalham para a subsistência, outras mais voltadas para o mercado. E isso exige arranjos específicos", explica Silas Garcia Aquino de Sousa, agrônomo da Embrapa Amazônia Ocidental. Em 2005, um levantamento identificou 120 experiências em agrofloresta só nos arredores de Manaus.

A partir desse histórico de sucesso, Kato é categórico: "Acredito nos SAFs". Silas pondera que "esses sistemas não são a salvação da Amazônia, e sim uma alternativa", enfatizando, porém, a capacidade que eles têm de fixar o homem no campo, além de sua possibilidade de se adequar às exigências do Protocolo de Kyoto, pelo fato de seqüestrarem carbono, ou seja, de serem arranjos florestais que consomem mais carbono do que produzem.

Agrofloresta na luta pela terra

Outro potencial estratégico dos SAFs é ajudar a tornar sustentáveis assentamentos de reforma agrária. Dez deles, também próximos de Manaus, serão alvo de experiências desse tipo.

No caso do Sepé Tiaraju, essa associação entre agrofloresta e reforma agrária mostrou-se promissora. Para honrar o herói indígena que batiza o assentamento, as 80 famílias hoje ali instaladas empreenderam uma verdadeira batalha que durou quatro anos desde o acampamento, em abril de 2000, até 2004, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) adquiriu 797 hectares de uma propriedade da Usina Nova União para a implantação do primeiro PDS do estado de São Paulo.

Por se tratar de um modelo de assentamento que visa à sustentabilidade, o Incra firmou um convênio com a Embrapa Meio Ambiente para a implantação de um núcleo experimental em uma das áreas coletivas do Sepé Tiaraju. Lá, os assentados receberam as primeiras noções teóricas em SAFs e puderam colocar em prática os ensinamentos. "A Fazenda São Luiz fez minha cabeça", conta Elias Souza, sobre uma das atividades realizadas pelo núcleo: uma visita à sede da organização não-governamental Mutirão Agroflorestal, pioneira na área.

Depois de 14 anos dedicados à luta pela reforma agrária, Elias diz ter adquirido consciência ambiental com a militância, e se declara um eterno amante da natureza. A paixão até o inspirou a se tornar jardineiro. Hoje, ele ostenta espécies quase extintas da mata atlântica, como o jaracatiá, e até plantas nativas da caatinga, como o mandacaru, em seu terreno. "A Embrapa convenceu a gente a adotar o SAF, mas sem impor nada", conta ele.

Por experiências como as de Agnaldo, Madalena e Elias e a recente aquisição de mudas para a implantação de SAFs por quase todos os assentados, o Sepé Tiaraju tornou-se uma referência nacional de respeito ao meio ambiente.

Outro fator que contribui para isso foi um termo de ajustamento de conduta (TAC) assinado entre os assentados e o Ministério Público Estadual (MPE) de São Paulo. O documento estabelece, para o PDS, uma reserva legal, isto é, a porcentagem de cobertura florestal que deve ser mantida, de 35%. Isso significa 15% a mais do que o mínimo legal para a maioria das regiões do país, excluída a Amazônia, onde esse índice é maior.

Um dos principais objetivos dessa exigência é a recarga do Aqüífero Guarani, maior reserva subterrânea de água doce do mundo, que possui pontos de afloramento justamente na área do PDS. "Acredito que podemos chegar a 70%. A agrofloresta permite que a mata seja produtiva", especula, otimista, Agnaldo.

Há, ainda, uma parceria entre o Sepé e os promotores do MPE sediados na vizinha Cravinhos, por meio da qual 30 mil mudas serão doadas às famílias do assentamento até dezembro deste ano.

Clarissa Chufalo Pereira Lima, assistente de desenvolvimento agrícola do Incra, avalia que a alta consciência ecológica dos assentados e o sucesso do PDS contribuíram para que eles fossem vistos com outros olhos em toda a região. "Já houve muita resistência à presença deles, mas isso está mudando", afirma. Clarissa conta que até os internos do presídio de Serra Azul, vizinho ao assentamento, tinham preconceito contra os lavradores. "Hoje, no entanto, eles exigem que a comida servida na cadeia venha do PDS", afirma.

Política pública sustentável

A difusão da agrofloresta pelo território nacional acabou por ecoar no setor público. Sinalizando que o governo vai finalmente dedicar a devida atenção aos SAFs, está praticamente pronto para ser lançado o Plano Nacional de Silvicultura com Espécies Nativas e Sistemas Agroflorestais (Pensaf).

Elaborado por uma equipe interministerial composta pelas pastas de Meio Ambiente (MMA), Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Desenvolvimento Agrário (MDA) e Ciência e Tecnologia (MCT), o plano ainda não tem data para ser publicado. Seu lançamento inaugurará, no entanto, a primeira política pública concebida para estimular experiências de pequeno e médio porte em SAFs, especialmente com ênfase em espécies nativas. Está previsto investimento de R$ 90 milhões em crédito, disponibilização de insumos, assistência técnica, capacitação e pesquisa ao longo dos dez anos de vigência do Pensaf.

De acordo com Bernardo Machado Pires, que pertenceu à Gerência de Reflorestamento e Recuperação de Áreas Degradadas, vinculada à diretoria do Programa Nacional de Florestas do MMA, o Pensaf procura atuar em duas frentes principais: incentivo à produção e estímulo à recomposição de áreas degradadas.

Do ponto de vista econômico, a idéia é aumentar a geração de renda a partir de florestas, dentro da lei, naturalmente. Hoje, esse enorme potencial é subestimado: apenas 5,5% das matas brasileiras têm funções produtivas, embora 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) advenha do setor florestal.

Quanto à recuperação de áreas degradadas, os maiores esforços deverão ser direcionados à recomposição de matas ciliares. O principal obstáculo à revitalização desses ambientes é a ausência de mudas nativas, cuja utilização é enfatizada pelo Pensaf nos empreendimentos por ele beneficiados. Por essa razão, pontos de coleta de sementes nativas serão criados. "Não se pode recuperar plantando eucaliptos", explica Bernardo.

Crespo avalia o Pensaf como uma grande conquista, que se iniciou em alguns estados pioneiros, como Pará, Rondônia e Paraná, que já contam com políticas locais de incentivo aos SAFs há alguns anos. A seu ver, o processo chegou ao nível federal quando o governo se sensibilizou com os sistemas de produção que pudessem atender preceitos ecológicos, o que os SAFs fazem perfeitamente.

Na opinião de Gandara, no entanto, uma crítica possível ao plano diz respeito a problemas na concessão de financiamentos a produtores que optem pela agrofloresta. "A liberação de créditos ainda não é compatível com a dinâmica dos SAFs." Segundo ele, isso ocorre porque o retorno dessas lavouras é mais demorado. Crespo concorda: "Falta informação aos bancos, que ainda utilizam o parâmetro da monocultura no momento de conceder empréstimos". 

 

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