Postado em
Ossos do ofício
Acidentes do trabalho atingem mais de 1 milhão de pessoas anualmente
MARCELO SANTOS
Flávio Peralta: "Se tivesse seguido
as normas..." / Foto: arquivo pessoal
Equipado com um par de luvas furadas e um detector de tensão que não funcionava, o eletricista Flávio Lúcio Peralta, que trabalhava como terceirizado para a Companhia Paranaense de Energia (Copel), subiu no poste onde deveria trocar um transformador de alta tensão. Não houve tempo de realizar o trabalho, pois um choque elétrico de 13,8 mil volts o deixou pendurado pelo cinto de segurança até que a equipe de resgate o tirasse de lá. Como resultado, ele teve os dois braços amputados e queimaduras por todo o corpo. "Se tivesse seguido as normas, saberia que a rede estava ligada. Mas a gente nunca pensa que algo assim vai acontecer", diz Peralta, que desde então se dedica à conscientização dos riscos no trabalho através de palestras com o sugestivo título "Perigo: Alta Tensão".
Em 2006, acidentes com trabalhadores do setor de energia elétrica, como o que aposentou precocemente o jovem eletricista quando ele tinha apenas 29 anos de idade, foram responsáveis pela morte de 93 trabalhadores, além de ferir outros 1,7 mil. A maioria dessas ocorrências, segundo César Vianna Moreira, gerente de segurança e saúde no trabalho da Fundação Coge – entidade que congrega empresas do setor elétrico brasileiro –, acontece com eletricitários de companhias subcontratadas durante a etapa de distribuição de energia. "As empresas acabam terceirizando as atividades de linha de frente, as mais arriscadas."
A fundação publica anualmente as Estatísticas de Acidentes no Setor Elétrico Brasileiro. "Não existe, em nenhum outro segmento, um levantamento do total de vítimas e das causas dos acidentes. Esse detalhamento, que nos ajuda a nortear um trabalho de prevenção, também acaba nos deixando expostos às críticas", diz Moreira, reclamando que o setor é um dos mais lembrados quando o tema são os acidentes no trabalho.
De fato, os poucos números oficiais relativos a esse assunto vêm das estatísticas da Previdência Social, que publica um anuário sobre os agravos aos trabalhadores. Em 2005, por exemplo, foram registrados 491,7 mil acidentes, com 2,7 mil mortes; 155 mil pessoas permaneceram afastadas por incapacidade temporária por um período superior a 15 dias, das quais 13,6 mil sofreram lesões permanentes e não puderam mais retornar a seus postos de trabalho. Grande parte dos casos refere-se a ferimentos e traumatismos do punho e da mão, com mais de 60 mil ocorrências.
Sub-registro
Parece muito? De acordo com Marco Antonio Gomes Perez, coordenador-geral da área técnica de saúde do trabalhador do Ministério da Saúde, a contagem oficial de uma morte a cada duas horas e de um acidente a cada minuto no país está subnotificada. "Acreditamos que esses números sejam, no mínimo, três vezes maiores."
São considerados acidentes do trabalho aqueles que ocorrem durante o serviço (típicos) ou no trajeto entre a residência e a empresa, além das doenças ocupacionais. De acordo com dados de 2006, quando foram registradas cerca de 504 mil ocorrências, os acidentes típicos representaram 80% do total, os de trajeto 14,7%, e as doenças ocupacionais 5,3%.
Perez explica que os dados referem-se apenas aos trabalhadores com carteira assinada e que, por isso, estão cobertos pela Previdência Social. "Sem registro, não há como caracterizar um acidente do trabalho. Daí vem a subnotificação." Ele cita como exemplo os empregados da construção civil – metade dos quais, segundo estimativas do próprio sindicato das empresas do setor, é informal – e os motoboys. "Somente na cidade de São Paulo morre um motociclista por dia, e a maioria deles está na informalidade. São números que não chegam às estatísticas."
Se, por um lado, a informalidade restringe o acesso à cobertura previdenciária – segundo Perez, apenas 30,4% da população economicamente ativa tem carteira de trabalho assinada –, a falta de dados confiáveis impede que se faça um trabalho eficiente nas áreas de risco. "O Sistema Único de Saúde (SUS) vem procurando fazer com que os acidentes e doenças do trabalho tenham maior reconhecimento pelos profissionais da área, uma vez que grande parte dos atendimentos não gera informações sobre a saúde do trabalhador."
A preocupação é compartilhada pela médica Maria Maeno, pesquisadora da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), instituição ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego e voltada para o estudo das condições dos ambientes laborais. "Os médicos, tradicionalmente, não se preocupam em diagnosticar a origem ocupacional da doença. Eles tratam a enfermidade, mas não a relacionam com a causa", afirma. Em sua opinião, é preciso que os profissionais da saúde tenham consciência do papel social que exercem. "Quando identificam a origem ocupacional do agravo, o trabalhador passa a ter uma série de direitos. Além disso, torna-se possível traçar um quadro mais real dos motivos de afastamento", acrescenta.
De acordo com Maria Maeno, um dos setores que mais afastam trabalhadores por doenças ocupacionais é o bancário. "O ritmo intenso de atividade, a pressão a que estão submetidos, o enxugamento do quadro de funcionários e as ameaças de penalização levam os bancários a adoecer com muita freqüência."
Custo
O setor bancário teve 25 mil empregados afastados entre 2000 e 2005 devido a lesões por esforços repetitivos (LER), o que representou uma despesa de R$ 981,4 milhões para os cofres da Previdência Social. "O custo de um acidente do trabalho tem um conjunto de dimensões muito grandes. Só a Previdência Social gasta mais de R$ 4 bilhões por ano com benefícios vinculados a esse tipo de ocorrência", afirma Helmut Schwarzer, secretário de Previdência Social do ministério.
Segundo o sociólogo José Pastore, as decisões nesse campo são tomadas levando-se em conta dois fatores: as despesas com os acidentes e doenças profissionais, de um lado, e os custos de sua prevenção, de outro. Especialista em relações do trabalho e desenvolvimento institucional, professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP) e pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), Pastore fez um estudo para avaliar a magnitude desses gastos, tomando por base a situação em 2004. Suas análises mostraram que, naquele ano, o país teve uma despesa de R$ 23 bilhões com acidentes e doenças profissionais. "É uma cifra colossal, que teria um resultado muito melhor se fosse aplicada em investimentos produtivos – sem falar na dor humana provocada por essas ocorrências", diz ele.
Outro cálculo, realizado pela equipe do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Estadual da Bahia, apurou que em 2000, somente entre os baianos, a Previdência Social gastou R$ 8,5 milhões com 30 mil benefícios decorrentes de acidentes de trabalho. Segundo a professora Vilma de Sousa Santana, que coordenou a pesquisa, houve uma perda de aproximadamente 500 mil dias de trabalho por conta dos afastamentos.
Na Universidade de Brasília (UnB), a professora do Departamento de Saúde Coletiva Anadergh Barbosa Branco, ao analisar dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) de 2004, apurou que a média de idade das cerca de 228 mil pessoas que se aposentaram por invalidez permanente era de 50 anos. No caso das doenças mentais – as que mais abreviam a vida útil do trabalhador – a perda estimada foi de 17,5 anos de trabalho.
Quando o tema é acidente de trabalho, os setores mais afetados são construção civil, mineração e agroindústria – principalmente a produção de álcool e açúcar. Um estudo realizado pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e pela Fundacentro entre a população envolvida em atividades rurais demonstrou que 43% dos acidentes ocorrem na cadeia produtiva da cana-de-açúcar. De acordo com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ribeirão Preto (SP), Silvio Donizetti Palviqueres, quatro cortadores de cana, todos sindicalizados, morreram na região em 2007. "Não podemos dizer que foi devido ao trabalho, uma vez que alguns já poderiam apresentar outras doenças", tergiversou o sindicalista – é sabido que os trabalhadores perdem até 8 litros de água e outros fluidos corporais durante um dia de jornada, quando chegam a cortar até 15 toneladas de cana. "Aqui, a maior parte dos trabalhadores é registrada e é onde se paga um dos melhores salários do estado. Por isso muita gente vem para cá."
Já na construção civil, somente na cidade de São Paulo, ocorreram 20 acidentes fatais de janeiro a setembro de 2007. Um dos casos que mais repercutiu na mídia foi a queda de uma grua montada no cruzamento das Avenidas Juscelino Kubitschek e Nações Unidas, duas das principais vias da capital paulista. O saldo dessa ocorrência foi a morte de quatro operários e ferimentos em outro. "Procuramos conscientizar trabalhadores e empresários para evitar que situações como essa se repitam", explica Haruo Ishikawa, diretor do Setor de Relação Capital-Trabalho do Sindicato da Indústria da Construção Civil paulista, o maior da América Latina.
Fibra do diabo
Se, por um lado, o setor da construção civil investe na prevenção de acidentes, por outro, é o grande responsável pelo consumo do amianto ou asbesto (uma fibra mineral utilizada em aproximadamente 3 mil produtos, entre os quais telhas e caixas-d’água, painéis, tubulações, conexões e pisos), substância classificada como cancerígena pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
De acordo com o Ministério da Saúde, a construção civil é responsável por 91% do uso do amianto produzido no Brasil, um mercado que movimenta R$ 2 bilhões por ano. "São 6,5 mil trabalhadores que têm contato direto com essa substância cancerígena. Estimamos que 4 mil trabalhadores já tenham adoecido por culpa da indústria do amianto", diz a auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego Fernanda Giannasi, principal nome na luta pelo banimento desse material no país e fundadora da organização não-governamental Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea).
Apelidado de "fibra do diabo" por entidades como a Abrea, o amianto tem sua utilização regulamentada por lei desde 1995. "Somos favoráveis ao uso controlado do amianto crisotila, nos termos da legislação vigente", rebate Rinaldo Mancin, diretor de Assuntos Ambientais do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).
O "uso controlado" refere-se a uma série de condições para a extração do amianto e a produção e a aplicação de materiais em que ele está presente. A principal é que apenas o tipo crisotila, também conhecido como amianto branco, pode ser utilizado (existem também as variações amosita, ou "amianto marrom", e crocitolita, conhecida como "amianto azul" – ambas proibidas). Além disso, as empresas devem manter sob controle a emissão de fibras no ar durante toda a cadeia produtiva do minério. Segundo o executivo do Ibram, no entanto, os riscos ao trabalhador da indústria do amianto podem ser evitados "com o uso de práticas de saúde ocupacional".
Nessa babel de interesses, é a saúde do trabalhador que está em jogo. "Quando uma pessoa entra numa empresa, planeja um futuro, uma vida digna. O funcionário nunca imagina que vai encontrar a morte no ambiente de trabalho", lamenta Fernanda Giannasi.
![]() | |